Cem anos atrás nascia o maior poeta brasileiro de todos os tempos, Carlos Drummond de Andrade. Naturalmente sem saber, nascia antes que morresse o outro gênio total de nossa precária civilização letrada, Machado de Assis, falecido em 1908 (essas contas deixam a gente meio baratinado, mas dão uma clara idéia de nossa impressionante juventude). Na vida mental de uma língua essas passagens de bastão só são visíveis a longo prazo — agora, por exemplo, com cem anos estendidos, podemos ver que depois de Machado só Drummond alcançou as alturas máximas da expressão literária no país, o que envolve realizar obra madura em seu campo de atuação e participar com relevo na configuração da cultura, patamar mais sutil e mais amplo que o meramente literário.
Tudo isso é quase um truísmo, claro. Não se requer esforço para diagnosticar o papel central de Machado e de Drummond na cultura brasileira (quanto a sua divulgação em outras línguas, mal agora a coisa vai-se configurando). Mas nossa vida cultural dá a sensação de tanta precariedade, de tanta fragilidade, de tanta vulnerabilidade, que não custa evocar essas seguras considerações na abertura de um comentário sobre uma nova tentativa de interpretação em torno da obra de um dos dois gênios literários nacionais. Estamos falando de Coração partido, livro recém-lançado por Davi Arrigucci Jr., em edição belíssima da Cosac & Naify, livro que se incorpora a melhor fortuna crítica do poeta de Itabira.
Arrigucci empreende um percurso interpretativo em três estágios, cada qual em longo desenvolvimento, cada qual centrado em um poema de Drummond: primeiro entra na tela o freqüentadíssimo Poema de sete faces, poema que abre o primeiro livro do poeta, no remoto 1930, poema lido por todo sujeito que alcança o Ensino Médio no país. Em segundo, a bronca cresce, e cresce de certo modo para baixo, porque o poema nuclear do capítulo é o também consagrado (e minerador) Áporo, espécie de unanimidade crítica — até os concretistas o saúdam como um enorme, denso, irrecusável acerto. Em terceiro e final, a boa percepção de Arrigucci o leva a centralizar um poema nem tão famoso, nem tão comentado, Mineração do outro, poema de tema amoroso que, como muitas vezes ocorre em se tratando de Drummond, não recusa a dimensão filosófica.
Aliás pode-se dizer que esta espécie de companhia estreita, o amor com a reflexão, constitui uma senha geral da abordagem da análise. Já na abertura do livro diz o autor, apresentando sua tese geral sobre Drummond: “Seu lirismo, sem prejuízo da mais alta qualidade, nunca foi puro, mas mesclado de drama e pensamento”. Daí por diante Arrigucci procura acompanhar a dinâmica de tais dimensões naqueles três poemas, tendo ao fundo o conjunto da obra e passeando por talvez todos os níveis possíveis de análise, dos mais formais aos mais abstratos, da pura matéria literária à dura tarefa da representação do mundo.
Naturalmente pode-se apresentar algum reparo ao livro. No caso deste leitor aqui, há uma primeira consideração crítica: neste livro como em outros do autor, tem-se a sensação de estar diante de uma aula exuberante, sem dúvida interessante pela capacidade de associação interna e externa, aula que porém transcorre num clima de relativa anomia epistemológica. Dizendo de outro e mais simples modo: Davi Arrigucci encanta no varejo, mas decepciona no atacado — pelo menos para este leitor aqui, leitor que espera da crítica, para além da agudeza de percepção e da erudição analítica, um esforço de validação de suas considerações interpretativas para além do circuito estrito da forma, numa direção que incorpore um senso forte de autocrítica (isto é, que considere as limitações do alcance da tarefa crítica, seja por sua parcialidade inevitável, seja por sua rarefação no circuito da leitura) e ao mesmo tempo procure desenhar as ligações entre a arte e a vida.
Bem, é talvez apenas a racionalização do desagrado esta restrição, que de resto se poderá estender a muito do que se faz no mundo da crítica — e disso não escapam, muito pelo contrário, as enormidades que se praticam em nome de procurar sem qualidade aquelas ligações entre a arte e a vida. De todo modo, no livro de Arrigucci esta sensação de anomia está o tempo todo no ar. E isso fica agravado, no presente caso, por uma característica estranha, mas reconhecível no estilo do autor: o andamento duro e (mais uma vez para este leitor) sem encanto de sua prosa, particularmente no primeiro dos três grandes capítulos, Humor e sentimento, com parágrafos muito curtos, que picotam o andamento do raciocínio sem ganho de clareza ou de densidade. (Pode parecer picuinha deste leitor, mas tanto me incomodou a aborrecida presença de alguns maneirismos de linguagem que parei para contar: até a página 69 são 13 ocorrências de “na verdade0” e sete “com efeito”, casos ambos de um traço retórico ligeiramente autoritário; será fruto de alguma origem verbal do texto?)
Mas é de ver que o livro melhora substancialmente em seu transcurso, com um segundo capítulo muito mais articulado que o primeiro, e um terceiro claramente melhor que os anteriores, em expressão e em fundo. Neste, as qualidades de Arrigucci estão na melhor forma — a leitura miúda das linhas e entrelinhas, a observação dos movimentos do poema em relação ao conjunto da obra, a evocação das alusões do poema em direção à tradição e mesmo o estabelecimento de nexos entre arte e vida. Aqui, mesmo o procedimento não-cumulativo, descosturado do texto fica secundarizado, em favor da vitória da boa análise.
De um crítico assistemático (melhor talvez seria dizer “não-sistêmico”), mas de alto nível, como é o caso de Arrigucci, creio que se pode dizer que seu melhor é a capacidade de indicar ao leitor dimensões tópicas de seu objeto, especialmente dimensões tópicas antes inaudíveis, imperceptíveis. No caso de Coração partido, o leitor ganha isso, não menos que isso — e não vamos diminuir o valor de tal ganho, ainda mais quando se trata de pensar um gênio, um raro gênio que temos à disposição em nossa própria língua, o centenário Carlos Drummond de Andrade.