Eternidade urgente

Versos de Carpinejar são um grito contra a superficialidade da poesia
Carpinejar: cotiano ampliado
01/10/2002

Abro a gaveta e a voz se exala, se estende: do ralo da pia, da mala do carro, do buraco da fechadura, das falhas no muro, de fendas, de frestas, de furos. É a voz das coisas deixando-se nomear; embora “melhor seria recuar no silêncio”. O recuo acontece, no percurso ao inverso — da vida à morte: “Cantamos como animais da escureza./ Os cílios não germinaram./ Falta plantio em nossas bocas, vegetação nas unhas,/ estampas e ervas no peito./ Suplicamos graves e agudos, espasmos e espanto,/ compondo esquina com a noite”.

Esse cantochão é para os que se encontram no universo paralelo: “Abandonei meus mortos pelo caminho./ Os ombros são escassos./ O verão terminou com um bocejo do oceano,/ tenho uma longa devastação pela frente”.

Tudo cabe no ritmo sincopado de um latejo, de uma pulsação, “o batimento cardíaco do salto/ apesar do repouso”. A intervalos regulares — que podem durar no espaço imaginário de uma tatuagem na pele ou na sedimentação de pintura eternizando-se nos milhões de anos de uma gruta pré-histórica.

Não é função da literatura (o poeta evita mencionar a poesia) promover o entendimento, a não ser que venha acoplado ao sonho: “A literatura não prestou para me entender./ Como uma árvore à beira da maré,/ estou comovido de espuma,/ inclinado a não perder o rumor/ de tua barca se aproximando devagar./ Vais amarrar tua âncora,/ puxar-me de volta ao rumo / e despovoar mais uma vez / o ventre de minha mãe”.

Seu percurso é o da paixão, jamais o da razão: “Seguir quem está perdido” — prega no Novíssimo Testamento. Daí a oração nada ortodoxa, o apelo a Deus de seguir transviado do bom senso proverbial: “Se perdoar é esquecer, me espera o pior:/ serei esquecido quando redimido./ Não me perdoes, Deus. Não me esqueças./ O esquecimento jamais devolve seus reféns.

Esse Novíssimo Testamento em que o poeta pede demissão a Deus “por justa causa” deixa margem a que o leitor imagine uma Madalena (contraponto daquela do Novo Testamento), que diz: “Não há como recuar depois de arder alto./ Fui lançado cedo demais às cinzas”.

Se “depois da morte tudo pode ser lido”, no viver é que se escreve e se reescreve o texto como devir, análogo do aleatório, do indeterminado, de onde se gera a criação. Impossível é improvisar na volta, quando a trajetória já se cumpriu. Mas o poeta prefere existir em um tempo próprio, possível de ser viajado na memória do mundo físico: “Na eternidade, ninguém se julga eterno./ Aqui, nesta estada, penso que vou durar/ além dos meus anos, que terei/ outra chance de reaver o que não fiz”. É que o percurso da volta, deixando para trás “a claridade que não se repete”, enquanto se vai “cumprindo esquina com a noite”, sonha em ser, pela linguagem, o lugar das descobertas, mesmo se na vida ultrapassou o espaço da busca, o frêmito da primeira vez: “Somos reacionários no trajeto de volta./ Quando estava indo ao teu encontro/ arrisquei atalhos e travessas desconhecidas./ Acreditei que poderia sair pela entrada./ Ao retornar, não improviso”.

A consciência de existir no tempo é tão forte que desperta no poeta a angústia de chegar cedo demais a uma definição (ou à eternidade da perfeição, quando então não haveria mais lugar para o novo? No mesmo caso, isto é, o das definições indesejadas, estariam também o perdão e sua conseqüência, o esquecimento (trecho já citado)). Daí o apelo:“Não me apanhes em trânsito./ Não apresses o julgamento./ Diminuo a velocidade da voz.// Há o temor de partir durante as refeições,/ dormir morrendo, morrer dormindo,/ sem digerir a vida”.

Ao intitular seu livro Biografia de uma árvore, Fabrício Carpinejar não se preocupa em criar uma verossimilhança. Não se importa de ir (maneira solerte de despistar o biografismo de autor?) na contramão da semântica. É um ser vegetal? Ou quem sabe um parente do homo photosynteticus, produzido por simbiose, como prevêem Lyn Margulis e Dorion Sagan num hipotético “supercosmos” futuro? Seja como e onde for, a voz lírica ecoa: “Enquanto te espero,/ sou chamado ao portão. Não respondo. O nome ajuda a envelhecer”.

A preocupação explícita com o fingir poético desvenda a relação entre a escrita e o viver: “Entardeço sem ênfase./ Não sei fechar um livro/ ou vedar uma frase.// As confissões são inventadas./ Meus personagens foram maiores/ do que o enredo”.

Lição para os poetas em trânsito, ou que têm pressa de serem julgados (ou se julgam…) definitivos: “O texto atravessa muitas mortes/ até virar testamento”.

Mais sábio parece ser ocupar-se da possibilidade de não ser perfeito: “A morte me perturba,/ terei o sofrimento/ de não corrigi-la/ antes de ser publicada”.

Mesmo se há versos cujo teor tanto se adapta à forma que podem valer como testamento aos atuais ou futuros candidatos a poeta: “Cantar não é desabafo,/ mas puxar os sinos/ além do nosso peso,/ acordando a cúpula de pombas”.

Biografia de uma árvore
Fabrício Carpinejar
Escrituras
103 págs.
Maria da Paz Ribeiro Dantas

É poeta e ensaísta.

Rascunho