Amin Maalouf é um destes escritores ditos multiculturais. Filho de libaneses católicos ortodoxos gregos, ele mora na França e escreve em francês. Este detalhe, que é praticamente insignificante a nós, meros leitores de traduções, é também o responsável pela fama de Maalouf, apontado como um excelente e isento (como se isso fosse possível) observador da história.
O primeiro livro de Amin Maalouf lançado no Brasil foi As cruzadas vistas pelos árabes (Brasiliense). Segue a tradição de certos livros históricos revisionistas, ou seja, tenta defender um novo ou diferente ponto de vista sobre um episódio já cristalizado nas cartilhas escolares. Árabe católico ortodoxo grego, o embate pessoal de Maalouf neste livro é evidente. E é este olhar meio promíscuo, assim uma mistura de água e óleo, que dá um sabor a mais ao romance. Já alguém disse que romances históricos servem para disfarçar a incapacidade de imaginação do escritor. Na obra de Maalouf, no entanto, acontece exatamente o contrário: a história ressalta elementos imaginativos do escritor. E isso se deve, explicitamente, à mistura entre as culturas ocidental e oriental visível em seus romances.
Que não se assuste o leitor que achar que o mundo árabe é cheio de gente perversa e que a redenção literária do muçulmano seria uma praga política semelhante à pregação politicamente correta que se vê nos Estados Unidos. Ao contrário de outro escritor visto com olhos especiais pela crítica, V.S. Naipaul, por sua cultura globalizada e, sobretudo, por seus ataques ao mundo árabe, Maalouf tenta conciliar estas duas culturas hoje em choque e o faz de modo a ficar em meio ao fogo cruzado, sem tomar partido. Maalouf é uma espécie de Suíça da literatura multicultural, não defendendo nem atacando; apenas contando histórias, que é para isso que serve a literatura. A não ser, claro, que o leitor esteja atrás de libelos. Neste caso, melhor nem adentrar no colorido e ao mesmo tempo austero mundo de Maalouf.
É impossível falar do novo livro do autor, O périplo de Baldassare sem comentar dois de seus cinco livros editados no Brasil: As cruzadas vistas… e, principalmente, O rochedo de Tânios, ganhador do Prêmio Goncourt de 1993 e que vendeu um milhão de cópias somente na França. No Brasil, por falta de divulgação e tudo o mais, Maalouf é ainda bastante desconhecido, infelizmente.
Costumo dizer que, na arte contemporânea, há duas quase-verdades: filmes dinamarqueses e literatura árabe. Com exceções, claro, você pode encontrar um filme dinamarquês na locadora e pegá-lo sem receio de se divertir; o mesmo serve para os livros de autores árabes, que podem ser comprados às cegas. A tradição literária árabe dá o melhor de si já no anônimo As mil e uma noites, muito falado e pouco lido. Ah, sim, o que dizer da Bíblia — melhor exemplo da tradição literária do deserto? Amin Maalouf não renega esta tradição e mostra em As cruzadas vistas pelos árabes, um olhar não contaminado pela histeria contra o islamismo que culminou, para o mundo da literatura, com o Nobel concedido ao irascível V.S.Naipaul.
Agora, cor mesmo pode-se ler em O rochedo de Tânios. O livro é uma história de amor imperdível, cheio de cenas absolutamente desconcertantes pelo lirismo e pela riqueza. O romance parece se acender e, mais!, parece soar como sinos dispostos em almofadas pelo chão de algum palácio. Não é à toa que o livro tenha vendido tanto. Trata-se de uma daquelas obras extremamente bem cuidadas, que se lê demoradamente pelo prazer de se virar página após página.
O objeto deste texto, contudo, é O périplo de Baldassare, livro que muito se assemelha ao Samarcanda, também do autor. Em O périplo…, Maalouf retoma o tema de um livro perdido que deve ser encontrado por um motivo qualquer. No caso, o livro que Baldassare e seu séqüito procuram traz o centésimo nome de Deus, que seria capaz de livrar o seu portador dos suplícios do Apocalipse. O livro se passa às vésperas e durante o ano de 1666, apontado pelos esotéricos da época como o ano em que os justos e os ímpios seriam julgados.
Tudo começa com a afirmação do ceticismo de Baldassare. Ele é um genovês instalado há muito no Líbano, onde possui uma requisitada loja de curiosidades. Dentre estas curiosidades, muitas são livros, outras são estátuas antigas, amuletos e bricabraques. Certo dia, aparece em sua loja um comprador interessado no livro O centésimo nome. Baldassare nega a existência do livro e também trava com o comprador uma discussão sobre este tipo de superstição, na qual ele não acredita. Tudo muda, porém, quando subitamente Baldassare tem em suas mãos o livro do centésimo nome. Antes, contudo, que consiga lê-lo e ter para si a suposta salvação, aparece um membro da corte da França, que descobre o livro e acaba por comprá-lo.
Subitamente, Baldassare vê-se na obrigação de reaver o livro. Para tanto, conta com a ajuda de dois sobrinhos, um deles muito erudito e outro mais boêmio. Juntos, empreendem uma viagem pela Europa Ocidental atrás do livro. Junta-se a eles uma mulher, Marta, que está atrás de um documento que prove que seu marido sumido está morto, a fim de que ela possa se casar novamente. Romance e aventura — é isso que o livro promete e dá.
Ao leitor cuidadoso, contudo, Maalouf oferece muito mais. E a primeira grande qualidade do livro está na pintura do cenário. Já meu colega de Rascunho Wilson Sagae diz que um livro bom, realmente bom, é aquele no qual o autor consegue construir um cenário verossímil. Tem razão. Livros cheios de elucubrações vagas são, quase sempre, fruto de uma mente incapaz para a literatura. Há que se pensar até mesmo em obras supervalorizadas, como o caso do Ulisses, de Joyce, que se passa num cenário restrito, mas inegavelmente bem construído, que é a mente perturbada de seu protagonista. O mesmo não acontece, por exemplo, no livro por mim resenhado na edição de setembro do Rascunho, O anônimo célebre, de Ignácio de Loyola Brandão, um romance marcado por elucubrações que não se definem no espaço.
Maalouf, por sua vez, constrói o restrito mundo do século 17 de modo, se não exato, ao menos rico em detalhes que dão ao leitor uma sensação inequívoca de estarem inseridos naquele meio, naqueles cheiros e cores todos de Constantinopla.
Os personagens de Maalouf também são um deleite para o leitor. Ele os constrói de modo a ressaltar antagonismos muito próximos. Por isso, os conflitos entre parentes, muitas vezes entre pais e filhos, e a mistura religiosa em aldeias e clãs, são evidentes. Servem para transformar as diferenças culturais, principalmente as religiosas, em um fenômeno mais individual e, portanto, passível de uma análise menos dada a generalizações e preconceitos.
Maalouf diz que, na França, sofre algum tipo de racismo por sua ascendência árabe. A França é hoje um dos países que mais discutem o racismo e a xenofobia no mundo, tanto pela quase eleição de Le Pen, candidato da extrema-direita, quanto por fenômenos literários mesmo, como o já citado V.S. Naipaul e Michel Houellebecq, que recentemente sentou-se no banco dos réus, acusado de difamar o islamismo em seu livro Plataforma (Record). O embate entre religiões está também presente em O périplo de Baldassare. Há, sim, um ódio latente, mas o que se sobressai é a tolerância. Não é à toa que Maalouf situou boa parte do romance em Constantinopla, cidade que fazia as vezes de Nova York no século 17, por seu cosmopolitismo. A tolerância maior, no entanto, é visível no romance entre Marta, muçulmana, e Baldassare, católico. O affair se desenrola sem que haja menção à conversão de um ou outro à religião alheia. Prevalece mesmo o amor entre os dois.
Maalouf procura, ainda, ressaltar aspectos positivos do islamismo, ao contrário da corrente atual, que defende a religião de Maomé como absolutamente retrógrada. Ora, qualquer pessoa bem informada sabe que os árabes foram responsáveis pela introdução, na Europa, de várias tecnologias. Que, no século 20, o Islã tenha optado por um fundamentalismo pautado na exaltação de valores passados é outra história, uma história que deveria ser varrida para debaixo do tapete da própria civilização muçulmana.
Aliás, vale ressaltar ainda outro ponto importante em O périplo de Baldassare: a coincidência entre os misticismos cristão e muçulmano, representada pelo objeto de desejo do romance, ou seja, o livro O Centésimo Nome. No Corão, estão listados noventa e nove nomes de Deus; na Bíblia, ao contrário, há apenas um nome para o Todo-Poderoso. Às vésperas do esperado Apocalipse, contudo, estas diferenças teológicas se dissipam e tanto cristãos como muçulmanos buscam o centésimo nome de Deus. Maalouf, deste modo, apazigua diferenças tidas por muitos como irreconciliáveis entre os cristãos e muçulmanos.
É a tal coisa: na hora do aperto, reza-se com um terço em uma mão e uma maspaha em outra.