O assassino do escritor

Acompanhe a seguir os principais trechos da conversa de Raimundo Carrero com José Castello e a platéia do projeto Inventário das Sombras, promovido pelo Sesc/Curitiba.
Raimundo Carrero: “A questão sexual mexe e faz o autor sentir como se houvesse uma relação sexual entre ele e o texto”
01/10/2002

Raimundo Carrero transita nas sombras. Não deseja aparecer, luta pela invisibilidade. Não anseia as luzes. Após decretar a morte do escritor — não no sentido literal, é claro —, empenha-se em solidificar uma obra de força singular, na qual destacam-se Somos pedras que se consomem, As sombrias ruínas da alma e Sombra severa. Sempre com a premissa de que quem “manda na narrativa são os personagens e não apenas o autor. O deus onipresente”, Carrero percorre um lodaçal com um archote em punho a iluminar frestas, por onde seus personagens empreitam-nos. Estes — construídos para o desconforto das almas mais exigentes —, para Carrero, são reis e vassalos neste mundo de escuridão.

• Por que você escreve?
Essa pergunta é muito curiosa. É a pergunta mais surpreendente do escritor. Por que eu escrevo? Já ouvi essa pergunta algumas vezes. Não sei bem a resposta. Mas já ouvi outras perguntas curiosíssimas, também: se você não fosse escritor, seria o quê?

• E você seria o quê?
Eu me irritei tanto com essa pergunta…

• Mas eu insisto: você seria o quê?
Uma vez eu estava em um colégio de freiras e me fizeram essa pergunta, num mesmo dia, umas dez vezes. Perguntavam: “se você não fosse escritor, seria o quê?” E eu disse: “Estuprador”. Não agüentei, fiquei irritado. Não sei o que seria se não fosse escritor… Na infância, pensei remotamente em ser médico. Mas não deu tempo para muita coisa, não. Aos oito anos, além de ter início a minha carreira, eu já era músico. Eu tocava “retinta”, um clarinetezinho pequeno que faz os floreios da música. Eu comecei a ser músico com nove anos. Fui músico de rock até os 20 anos. Era um saxofonista razoável, acompanhava Roberto Carlos, Wanderley Cardoso… Tocava em baile. Gostava muito. Baile é bom que a gente se empolga!

• A música não chegou nunca a tomar a frente da literatura?
Eu me sentia extremamente limitado como músico. Eu era um bom leitor, mas não um bom criador. Quando eu tinha partitura, eu lia muito bem. Até era capaz de inventar. Mas não de ser um grande inventor, ser um bom músico. Recentemente escrevi um livro, Ao redor do escorpião… Uma tarântula?, e, de repente eu me descobri tocando saxofone. Eu estava tão entusiasmado que era como improvisar, como inventar.

• E isso é um componente próximo de sua literatura, porque seus livros são fragmentados, cheios de cortes de cena bruscos, com muita interferência de autores que você admira… De repente vem um parágrafo de Italo Calvino citado… Esse fragmento, essa improvisação, é uma marca sua…
Na verdade, não são citações, mas a minha tentativa de chamar as vozes de outros autores — chamo de vozes narrativas. Eu trago para dentro da narrativa as vozes que eu preciso. E eu cito por honestidade e por técnica. Alguns autores fazem isso mesmo, burilam a frase de quem copiam e não dizem. Eu gosto de buscar essas vozes narrativas que possam dar ao meu texto não só o sentido “sinfônico” da melodia (trazer o solo, a montagem musical), mas muito mais o improviso. Quando você tem um tema de uma música ou uma frase, você começa a trabalhar em cima dela. Quando eu faço a citação, faço uma montagem, de forma que ela é uma espécie de frase musical com a qual eu posso brincar. Isso me dá uma alegria muito grande. Comecei a fazer isso no Viagem no ventre da baleia, que foi um livro muito curioso e muito doloroso na minha vida. Eu estava passando por uma crise religiosa. Foi um momento muito cruel. Estava tentando compreender a carne, o comportamento sexual, através do comportamento místico. Que é mais o menos o que aconteceu na literatura. Nada é muito novo. Na Idade Média os grandes poetas já pensavam nisso. Na verdade, o que fazemos o tempo todo, é camuflar o sentido do sexo… essa coisa tão buliçosa que faz a gente mexer muito com a vida. Nesse terreno, Freud tem razão — como tem razão também Jung a respeito do inconsciente coletivo —, mas a questão sexual mexe e faz o autor sentir como se houvesse uma relação sexual entre ele e o texto. Para mim é parecido com isso, pelo menos. Talvez por isso as pessoas sintam tanta força no meu texto.

• Então, quando você escreve, está metaforizando uma relação sexual.
Com certeza. Isso acontece fisicamente. Já me surpreendi até me masturbando.

• Você tem uma relação de paixão pelo seu texto?
Sim. De paixão, de amor, de carinho, de força. É um abraço, uma língua corporal.

• Portanto é uma relação contrária a de escritores que dizem que escrever é um ato de sofrimento…
É uma grande festa. Como diz Flaubert: “A literatura é uma orgia completa”. Tem toda uma função de prazer. Não tem solidão, não. Na verdade, a grande vantagem da literatura é que você está em comunhão com a alma de toda a humanidade no instante em que escreve. Se você quiser ser um escritor para apenas ter um nome na capa, com certeza será um extraordinário fracasso. Você pode publicar cem linhas, cem páginas ou um milhão de páginas. Se você não tiver essa sensação de luta corporal com o texto e sobretudo com o leitor, não irá muito longe.

• Quando você escreve, imagina um leitor em particular? Para quem está escrevendo, com quem você dialoga quando escreve?
A mulher do momento. A gente escreve para quem ama. Beethoven escreveu uma frase bonita: “Eu componho para Deus”. Quando a gente escreve, escreva para quem ama… E até para o nosso inimigo: “Olha aí, filho da puta, eu sei fazer e você não sabe!” Se não for essa paixão, essa loucura, que diabos você está fazendo com a literatura? Tratando a literatura como algo formal? E olhe que eu sou muito formal: estabeleço planos de personagens, faço esquemas, uso metáforas, personagens metafóricos…

• Como você começa a escrever?
Primeiro eu faço anotações mínimas. Até porque sou muito supersticioso — passo o tempo todo brigando comigo mesmo, por causa disso. Mas eu não anoto muito o romance, porque, em geral, quando anoto demais, o perco. Quando escrevia Sombra severa, estava em um momento muito curioso e severo de minha vida… Vou abrir meu coração: eu me casei muito cedo, com 20 anos. E mesmo casado, arrumei uma namorada — que, por acaso, era uma prostituta. Quando eu estava nesse embate, vi que não era justo o que estava fazendo. Mas também não conseguia sair daquele jogo. Comecei a refletir muito a respeito do adultério, o pior de todos os pecados. Eu chamo de tríplice pecado: você peca contra você mesmo, contra a figura amada (sua mulher), e contra seus filhos (e, portanto, contra a humanidade). É um pecado danado de cruel. Você sabe que o pecado de Davi, na Bíblia, foi o adultério. Quando ele viu a mulher nua, perdeu o controle. Obrigou-a a ter relações sexuais com ele. Pegou o marido dela e mandou para a batalha para ele morrer. E ele não morria. Deus, então, mandou um profeta que disse que aconteceriam coisas terríveis na casa dele. O filho dele seduziu uma mulher muito linda. Mas ele armou uma cilada, chamou-a para o quarto e a estuprou. E ela foi enjoada por ele. A coisa mais terrível do sexo é o enjôo. Ele a matou. Eu trabalhei a idéia do romance As sementes do sol a partir daí. Quando comecei a trabalhar, decidi as metáforas todas. Meu personagem chamava-se Davi. A mulher dele, Estela (do latim, estrela). Na primeira cena, ela se suicida (o suicídio é uma questão muito dolorosa na minha obra, eu não gosto nem de falar. Censuram tanto as minhas idéias sobre o suicídio… Acho o suicídio a mais bela arte. É um grande gesto de amor e de arte. Mas façam de conta que não ouviram, depois podem chegar em casa e realizar esse belo gesto de amor e vai ser um grande problema para mim). E aí eu montei o meu romance em cima disso. Chama-se As sementes do sol por causa disso: as sementes projetavam o amor e o ódio. Depois escrevi Viagem no ventre da baleia, que na verdade é uma autobiografia precoce, acompanhado de algumas imagens. Os personagens: padre Paulo (a metáfora do apóstolo), Miguel (guerrilheiro) e Jonas (o que viaja dentro da baleia). Fui adiante, com Sombra severa, que é a briga entre dois irmãos. Aí passei a usar outras metáforas e outros personagens: Judas, Abel e Sara.

• As metáforas você busca na religião, também…
Sinfonia para vagabundos, por exemplo, é uma reflexão sobre Jesus Cristo. Os personagens são Natalício, Deusdete e Virgínia (Cristo, Deus, Maria). Mas se você pegar todos os meus livros, não vai encontrar essa reflexão da religião. Vai encontrar uma literatura densa, elaborada, trabalhada por um jovem sertanejo (esse jovem pegou bem, né?). Se você pegar um livro meu e procurar isso, não vai encontrar. Ali é o abraço de Deus com Deus. É de autoridade para autoridade. Sou eu e Deus, ele lá e eu cá.

• Para a maioria das pessoas, a religião é um caminho de acesso a Deus. Para você, a literatura é esse acesso…
E é um embate, não é simplesmente você concordar ou discordar. É uma briga para tentar compreender o homem e o mundo. Principalmente se você está preocupado com a literatura do nordestino… Nós nordestinos, trabalhamos na literatura de documento, durante muito tempo.

• Você está totalmente longe do regionalismo. Por isso você é uma voz muito isolada e ímpar na literatura nordestina e brasileira. Você não está preocupado em fazer um retrato do nordeste, sobre as questões do nordeste.
De jeito nenhum. Passam por aí, também, momentos fundamentais da literatura do nordeste. Na verdade, a literatura nordestina é bem ligada ao documento. Até porque o nordeste estava dentro do movimento modernista, que é o movimento mais contraditório que eu já vi: negava e amava o Brasil. Falava em formas literárias artísticas elaboradas, sofisticadas, mas ao mesmo tempo estava dentro dos problemas sociais. tanto é que a obra mais emocionada é Macunaíma — que é mais regionalista que a obra de Gilberto Freire. Aproxima-se do homem regional brasileiro e procura interpretar uma visão brasileira que já vem de José de Alencar. Quem conhece um livrinho chamado Como e porque sou escritor, de Alencar? Na verdade, ele não está preocupado em fazer uma grande obra literária, e sim sobre o problema social do Brasil. Tanto é verdade que ele escreveu Iracema, que levanta a questão do índio; foi para o Rio Grande do Sul e escreveu O gaúcho; subiu, escreveu O sertanejo. Talvez ele não tivesse o aparelhamento intelectual de uma sociologia no romance. Ele não estava preparado para isso. Ele estava preparado para o autor que identifica o seu povo e reflete sobre isso. Ele dizia que andava a cavalo dentro do mato e procurava ficar ali escondido… Está ali nesse livro Como e porque sou escritor. Explica como nasceu esse desejo de interpretar o homem brasileiro. E aí chega Mario de Andrade, muito mais um estudioso do que um criador. Ele confessa, inclusive que copiou a obra de um alemão sobre a cultura brasileira. E disse que escreveu Macunaíma em seis dias, deitado em uma rede (é o próprio, não é não?). Faz uma revolução cultural, porque desloca a posição do personagem…

• E qual é a relação da sua literatura com a literatura modernista?
A minha, no sentido da reflexão, também levanta o problema formal. Reflete sobre a sociedade e sobre a própria obra de arte. Eu tive dois momentos que me favoreceram: o regionalismo e Ariano Suassuna. No regionalismo, a questão está em cima do momento social. Porque o regional é documental: você não reflete o homem, a não ser dentro do seu ambiente. Foi o Ariano que me ajudou a ver o mundo pelo regional, mas com a reflexão universal. Ele, muitas vezes, é confundido com regional. Mas ele não é. Usa a região para refletir. Meu pai espiritual, de literatura, foi Ariano Suassuna. Valeu muito mais do que uma universidade.

• Como é sua relação com Ariano Suassuna?
É confusa, às vezes. De um lado, eu concordo que a literatura brasileira precisa se proteger contra a globalização. Não se pode esquecer do Brasil do interior, do comportamento social… Ao mesmo tempo, eu tenho pontos contrários com Ariano, do ponto de vista formal. Ele não admite uma literatura psicológica, por exemplo. Enquanto eu escrevi com improviso de saxofone dentro do texto… Acho que a literatura pode ser um pouco jazz. Estou até trabalhando um pouco nisso em uma oficina de literatura no Recife. Se é permitido dizer, eu vivo disso. Então, a minha discordância com Ariano é nesse sentido. Para ele, não há nenhuma brecha para a cultura americana, em qualquer nível.

• Ele é purista, coisa que você não é…
Não. Pelo contrário. O Brasil e qualquer outra cultura pode e deve ser influenciado por outras culturas. Não devem prevalecer as outras culturas.

• Quanto vendem seus romances? Quais as tiragens, qual vendeu mais?
Sou um escritor que tem uma carreira bastante longa. Não ainda tão velhinho, mas com carreira longa… Estou preparando um curso de velhice, até porque me preparei para ser velho aos 50 anos. Para mim, 50 anos era um marco na velhice. Quando eu conheci meu pai, ele tinha mais de 50. Meu pai tinha 50 anos quando eu nasci. Eu me preparei para morrer aos 50 anos. Eu queria ter uma terrinha, botar um chapeuzinho de palha… Acabou-se a vida. Mas o que foi que você perguntou mesmo?

• Sobre as vendas…
Tem um mito de que eu não vendo. Mas o que é vender, eu não consigo entender? Os editores dizem que eu não sou um autor de grandes vendagens. Tudo bem. Veja: o meu primeiro livro, A história de Bernarda Soledade, tem três edições; A dupla face do baralho foi traduzido para o inglês e tem duas edições; Sombra severa tem três edições; Sinfonia para vagabundos tem três edições. Então como é que eu não vendo? Se não vende, não tem de ter outras edições. Isso para mim é curioso. Eu não faço idéia de quantos livros meus foram vendidos. Sou extremamente irresponsável a respeito de minhas vendagens.

• Você vive de direitos autorais?
Não. Vivo de um emprego que tenho na prefeitura de Recife. Sou coordenador do núcleo Recife Responde. Todas as críticas sobre a prefeitura, divulgadas nos jornais, rádios e televisões são encaminhadas a minha equipe para que sejam respondidas e discutidas. É um emprego que paga um salário baixo. Já tive outros empregos também. só não consegui ser gente, mas o resto… Nunca vivi como escritor. Só quando morei em Iowa, nos Estados Unidos. Participei de um programa de intercâmbio de escritores. Mas de vendagem de livros, não. Até porque tinha o diabo da inflação… Na verdade, os direitos autorais, no Brasil, são ridículos. Ganhamos 10%, mas nem todas as editoras pagam isso (a maioria paga 5%). Então, um livro que se venda a R$ 10, a gente ganha R$ 1. Para viver mais ou menos bem, tínhamos de vender uns 5 mil livros. São pouquíssimos os escritores que vendem 5 mil. Agora, a alegria que me causa ser lido é muito bom. Outro dia, um rapaz aqui de Curitiba, o editor do Rascunho, Rogério Pereira, me disse num e-mail que, num domingo de manhã, parou, sentou e leu o meu livro. Fiquei arrepiado. Nunca imaginei ninguém sentando lendo um livro meu… Nunca imaginei alguém passar duas, três horas preocupado com um livro meu. Achava que as pessoas só passavam o olho, mas pensar em mim… Em Pernambuco sou muito ligado com o político Miguel Arraes. Fui secretário dele. Ele dizia que era muito emocionante ganhar uma eleição. Perguntei que tipo de emoção. E ele: “Imagine saber que 100 mil pessoas acordaram de manhã pensando no seu livro”.

• Você faz oficinas, está formando novas gerações de escritores. Como você os avalia? Você acha que escrevem por escrever ou têm outra visão?
Quando começa o curso eu digo logo: “Se quer passar por aqui para arrumar emprego, desista. Isso não é um curso de corte e costura”. Possivelmente vai sair sem emprego. É um curso de desemprego. Não sou o Serra nem o Lula para prometer emprego. Ofereço desemprego… Mas é curioso, porque tenho alunos há cinco, seis anos… Eles vão ficando lá, gostam… E eu adoro porque eles estão pagando, também…

• Mas o que eles escrevem?
O público é muito heterogêneo. Tem de 18, 19 anos em diante, até 80. Já cometi algumas indelicadezas, alguma maluquice. Porque eu tenho uma marca registrada: a estupidez, eu digo cada besteira… Eu quero dizer e não me controlo. Sou tão sincero na minha vida… Outro dia estava conversando com uma aluna de 70 e poucos anos e o marido dela tem 80 anos. Dizia assim: “Fulana é boa aluna, mas fulano, não espero nada dele porque tem 80 anos”. E o marido: “Então, não espera mais nada de mim? Eu não aprendo mais nada?” Mas tenho muito bons alunos que escrevem coisas maravilhosas. Eugênia e Maria tiveram uma idéia magnífica: começaram a escrever cartas uma para a outra… Uma das alunas, Lurdinha, está publicando um romance muito bonito: Bandeira dilacerada. Outro dia, minha namorada — e não estou casado, de forma que não pratico o adultério, que fique claro — me disse: “Você já pensou que está formando gerações de escritores?” Senti uma dor alegre, por causa da responsabilidade. Estamos lançando um jornal da oficina em que procuramos discutir aspectos da literatura. No primeiro número vamos discutir uma coisa chamada: “morte ao autor, viva o personagem”. Chegamos à conclusão de que quem deve escrever o romance é o personagem. Também discutimos outras coisas…. Aquela coisa antiga de que adjetivo não presta, de que advérbios terminados em mente devem ser evitados… Não devemos usar adversativas… No Brasil, um país de formação barroca, usamos muitas adversativas: mas, porém, contudo… Existe uma regra? Não. Alguns personagens precisam de adjetivos. Outros não precisam… Vamos encontrar a pulsação narrativa — o pulso do personagem que corresponda à questão do caráter.

• Não se pode escrever com idéias fixas, portanto. Mas a crítica literária também acaba se comportando assim, fixando regras…
Eu fiz uma loucura em Sinfonia para vagabundos. Trato cada personagem de acordo com o seu pulso: o tempo verbal. Para Deusdete, só o presente; para Natalício só o passado; para Virgínia o condicional. De forma que pode-se encontrar uma frase assim: “Deusderte pára o táxi, Virgínia sairia pela porta e Natalício arrastou o saxofone”. Fica uma maluquice? Fica. Não é assim em um improviso de sax? Por que eu não posso inverter adjetivos, jogar com as vírgulas… Num texto em que eu quero dar densidade, de força, em vez de usar adjetivos, posso usar vírgulas.

• Cada livro, cada romance, tem suas próprias regras…
Não há como você determinar muitas coisas na hora de escrever um romance. Planejar o máximo possível sim, mas na hora do romance algumas emoções vão solicitar coisas diferentes. Quem conhece a literatura sabe que ela está impregnada de teoria. Desde o formalismo no começo do século 20, até a leitura mais recente, com simbiótica… Tem que aprender, tem de estudar. Ninguém é escritor porque acha que a literatura cai do céu. Não. É escritor porque estuda, porque sabe usar as suas armas. Diálogo pode pedir travessão num momento e não pedir nenhum sinal gráfico em outro. Depende de como você usa. Quem lê Saramago, por exemplo, percebe que ele não usa um monólogo interior, mas dentro do texto coloca a voz do personagem transformando a primeira letra da fala do personagem em maiúscula. Esse mesmo esquema usa o Rubem Fonseca. Isso não significa que você não está fazendo uma obra de qualidade. Significa somente que você optou. Quando estou montando um texto, por exemplo, se tiver de sair do texto para botar um travessão, vou atrapalhar. Vou roubar do leitor o que ele tem de melhor, que é o texto.

• Como você analisa a visão de Saramago, no livro O evangelho segundo Jesus Cristo?
O livro é muito bem escrito, mas a visão não presta. A reflexão que ele faz a respeito de Cristo leva em conta a materialidade de Cristo e não o deus, o místico, o grandioso. Não tenho dificuldades em ler e apreciar a qualidade artística. Mas com todos os defeitos, eu fico com A última tentação de Cristo, de Niko Kazantzakis, um grego, grande autor só conhecido por aqui por causa do filme do Martin Scorsese. O Saramago me incomoda porque transforma Cristo em um objeto material. Quando eu falo dessa questão religiosa, pode ser que eu seja tomado por valores muito antigos… Mas acredito que a própria igreja não é cristã. Porque não acredita no amor. Se você não acredita no pleno amor, há uma ingenuidade no pensamento. Só há uma maneira de pensar nisso: através do poder do amor e não através do poder material que a igreja católica e a igreja evangélica estão tentando montar. Quando você faz isso, está negando todo o espírito cristão. Quando Cristo pregava, dizia aos apóstolos: “Não levem nem as sandálias, porque vocês serão recompensados”. Isso é muito bonito. Quando você pensa em uma igreja poderosa, vaticanista, ou mesmo na teologia da libertação, tudo é uma visão equivocada. Só quem ama é capaz de mudar o mundo, e a teologia da libertação prega a mudança pela justiça. E a justiça não é o amor.

• Você tem uma relação tensa com a igreja. Mas freqüenta?
Freqüento. Obedeço ao arcebispo, mas não concordo com o que ele faz. Não posso, por exemplo, comungar. Porque sou divorciado. E isso é uma das coisas mais extraordinárias, estar em comunhão com Deus. Sou proibido. E proibido pelos homens, e não por Deus. Isso é uma coisa dos homens, em nenhum momento Deus ou o Espírito Santo estiveram aí. Isso é uma punição e em Jesus Cristo não há punição. Muito pelo contrário. Mas essa é a visão de Saramago, que acredita que somos matéria. Somos só em parte. Mas vocês estão falando com um homem confuso… Eu não acredito na eternidade… Não precisamos disso. Imagine, daqui a bilhões de anos, Cristo separando quem pecou e não pecou. Que bobagem. Isso é coisa de homem. Está todo mundo salvo. Se não fosse assim, Jesus Cristo veio para acabar com o pecado e, então, ele falhou… Há um problemão aí. Como é que fica agora?

• Essas idéias que você tem vêm de leituras ou são bem pessoais?
As duas coisas. Essa questão da salvação é muito grave. As pessoas ficam tentando justificar. Se avisam a todos que está todo mundo salvo, aí o pecado rola solto! Aí pega fogo. Mas é verdade, isso é teológico. O que é que Jesus Cristo veio fazer aqui? Acabar com o pecado. E tem pecado? Tem. E agora? As pessoas têm de entender que os códigos de vida estão no papel e não em Deus. O que não significa que deva transformar esse mundo numa Sodoma e Gomorra, numa falta de respeito… Amar significa respeitar. Eu não consigo imaginar sexo como pecado. Em nenhum lugar da Bíblia está dito isso. Há o pecado da desobediência. Não há punição para o sexo, nem no antigo nem no novo testamento. E o povo era brabo. Veja quando o anjo veio a Sodoma e Gomorra e as pessoas decidiram que queriam fazer sexo com o anjo. E Jacó: “Não faça uma coisa dessas, não. Eu lhe dou as minhas filhas, mas o anjo, não”. Mas quiseram o anjo. Mesmo em Sodoma e Gomorra, o pecado não era o sexo. Era a corrupção, que é o desapego do amor. Corrupção, entre outras coisas, sexual.

• Em Sobra severa, há a presença de outra face do misticismo, que são as cartas, além dos personagens bíblicos. Há até uma citação cigana. E a igreja católica condena um pouco as outras religiões. Como essas coisas convivem tão bem em sua obra?
O jogo de cartas procura discutir a ascensão e queda homem. É uma reflexão sobre o homem. Começa com uma epígrafe de Henry Miller, sobre a traição, que era um tema que me atormentava. Nesse período, estava tão atormentado que terminei interno em um hospício (que não era bem um hospício, era uma casa muito boa). Fiquei um mês lá e só pensava em Deus. Acabei usando esses elementos para ajudar a desvendar o homem. A princípio, meu personagem ia ler estrelas, e não cartas. Mas não haveria visibilidade para as metáforas que eu queria.

• Qual a sua relação com a cultura popular?
Minha questão com a cultura popular se aproxima muito com a de Ariano, no sentido em que a cultura seja discutida não necessariamente como sociologia ou documento da literatura. Deve tomar esses aspectos e transcender para ser interpretada como manifestações do mundo e não de uma região. Trago todos os aspectos “regionais” da cultura popular na minha obra, mas procuro transcender no sentido de refletir a condição humana. Esses elementos me dão condição de transformar minhas metáforas em matérias vivas, plausíveis, fortes e definitivas.

• Você tinha um projeto de escrever um livro em referência à vida de Santo Antônio. Como está?
Estou fazendo. Em As sombrias ruínas da alma, usei uma anotação que, na verdade, era uma pequena novela de Santo Antônio. Durante 15 páginas, escrevo a história dele: do momento em que decidiu ser um místico até sua morte, aos 36 anos. Ele foi tão importante, tão fundamental, que foi proclamado santo seis meses depois de sua morte. Mas a pesquisa para fazer esse livro tem demorado muito. Aqui no Brasil é difícil. Procurei até agora encontrar os Sermões de Santo Antônio e não acho. Sou exigente, então quero saber como, no tempo de Santo Antônio, eram as roupas e a alimentação, por exemplo. Esse seria o maior romance da minha vida, com umas 500 páginas.

• Você está escrevendo alguma coisa agora?
Sim. Terminei de escrever um romance chamado Ao redor do escorpião… Uma tarântula?. E estou escrevendo um segundo volume — será uma trilogia. Chama-se Em tudo a solidão em nada. Tudo o que a gente faz vira solidão. A gente só faz porque está só. É a história de um saxofonista que começa a se incomodar com o mundo e se tranca numa catedral para não ser incomodado. Mas justamente por ele estar em uma catedral, ele começa a ser incomodado. As pessoas passam a ver nele um santo, passam a venerá-lo. E ele só vê um lugar para ficar realmente isolado: o confessionário. As grandes autoridades da cidade, sem que ele saiba que está falando, fazem confissões… Está em fase de anotação. Esse romance nasceu de um conto grandioso chamado Padre Sérgio, de Tolstoi.

• Você vincula misticismo à religiosidade?
Essa questão é muito ampla e polêmica. Só há um caminho: obedecer Jesus Cristo sinceramente. Mas aí você diverge da humanidade. A humanidade é muito material. No simples ato de dar uma esmola, você questiona sobre se o cidadão vai beber ou não com aquele dinheiro. Mas esmola não se questiona. Você dá ou não. E depois, é preciso dar esmola? Do ponto de vista religioso, não. Mas do ponto de vista prático é. Tem aquele dito: Primeiro ensina-se a pescar. Mas enquanto ele não aprende a pescar, ele morre de fome? A questão toda é a radicalização do amor. Ou a gente parte para brigar e definir isso, ou aceita o materialismo. Aceita todo esse conjunto de, por exemplo, abuso do erotismo. Não tenho nada contra a mulher e o homem nus. Sou contra o negócio: jogar para negociar o corpo, o que você tem de mais belo, aí não… A única coisa que nos acompanha até a morte é o corpo.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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