Encontrando Alasdair Gray

Lanark, uma saga escrita durante 25 anos, inaugurou a nova literatura escocesa
Alasdair Gray, autor de “Lenark – uma vida em quatro livros”
01/10/2002

Alguém disse que uma boa história faz o ordinário parecer estranho e o que seria visto como estranho tornar-se ordinário e aceitável. Essas duas visões me parecem corretas.

A faxineira abre a porta e sai carregando um balde de latão e um grande esfregão. Tem olhos amendoados e cabelos pretos — 20 anos no máximo — (a descrição de Carmen cabe com perfeição na orgulhosa cigana, exceto pela pele de porcelana). Dois pequenos duendes dormem encostados no balcão da Alitalia. Parecem gárgulas de brinquedo, não fossem pelas unhas prateadas. O ronco espanta dois policiais para o nosso lado.

— O que eles querem comigo? — Jamil cochicha ao mesmo tempo em que cruza os braços e esconde a nudez de seu tronco.

— Quer ler alguma coisa para se distrair? — digo enquanto tiro da bolsa Lanark: uma vida em quatro livros.

Entrego para Jamil e, do bolso traseiro, tiro uma nota de vinte e três dólares

(— Poderia trocar para mim? — peço ao policial de nariz adunco.)

manchada de vermelho e cheia de rabiscos.

— Pode ser em notas de sete? — ele sorri sem tirar os olhos das costelas expostas de meu amigo.

Quando eu era criança e decidi escrever a minha história, eu achava que seria um fantasiador escapista na linha das Mil e uma noites. Mas ao começar a trabalhar, o que apareceu para mim, como base, foi minha simples vida diária. Então, chegando à adolescência, eu comecei a ler livros adultos: O retrato do artista quando jovem, de Joyce, David Copperfield, de Dickens. Eles fizeram fantásticas e terrificantes aventuras sobre o que é crescer em cidades como Dublin, do final do século 19, e Londres do início de novecentos. Eu pensei: “Isso também é bom”.

Com algumas moedas no bolso vamos até a máquina de café. Acho graça que um dos duendes corra até nós ao ouvir o som dos grãos sendo moídos. Seus olhos vermelhos e amarelos dançam nas órbitas.

— Olha! Eles estão me seguindo.

Só então percebo que Jamil se refere aos duendes.

— Acho que estamos em Barcelona, digo. Onde mais encontraríamos duendes de Lorca?

Gostaria de dizer que compreendo sua situação, mas estaria mentindo. A bela paisagem branca além das vidraças me dá idéia do que falar.

— Se fosse uma terra sem luz do sol estaríamos em Uthank, um dos mundos de

Lanark é uma daquelas novelas que você começa a ler e se vê obrigado a continuar. Cada parágrafo é amarrado ao outro pelos mais variados recursos. Desde a interrogação policialesca até a simples quebra do diálogo. Ao retomar o fio na linha seguinte, em vez de simplesmente dar continuidade ao enredo, acrescenta-se mais uma descrição, mais um elemento, mais algo que engrandece o contexto ou cria novas vias de desenvolvimento.

Pensando bem, com os capítulos funciona do mesmo modo.

Meu primeiro livro, Lanark, foi publicado pela Canongate, uma pequena editora de Edimburgo que ficou feliz que eu fizesse todo o design. Eles teriam que pagar caso a tarefa fosse dada a qualquer outro. Os editores, não eu!, receberam o prêmio de design do Scottish Arts Coucil, como melhor design de livros de 1981.

Hoje pela manhã, Jamil entrou no box do banheiro de sua casa para tomar banho. Ao sair, enrolado apenas na toalha branca e felpuda, estava no depósito de produtos de limpeza de um aeroporto. Um estranho em uma terra estranha…

— Olha aquele grupo de bailarinas dançando Coppélia — digo tentando mostrar que absurdos acontecem por todos os lados…

— É uma performance.

Performance [Ingl.] S. m.

  1. Atuação, desempenho: 2
  2. Espetáculo no qual o artista fala e age por conta própria. [Cf., nesta acepç., performer.]
  3. Qualquer atividade artística que, inspirada nas artes cênicas, se apresenta como evento transitório, e que pode incluir dança, música, poesia, e até mesmo cinema, ou televisão, ou vídeo.
  4. Esport. O desempenho de um desportista (ou de um cavalo de corrida) em cada uma de suas exibições.

— É, pode ser…., percebo que nada que eu diga pode transformar a estranheza de sua situação. Vamos tomar um café?

Um dos duendes acorda e nos segue.

Inicialmente, em Lanark, eu estava querendo escrever uma tragédia. O personagem principal passa em seus exames e cai imediatamente na solidão, fome e desemprego ou uma forma disso. Eu redirecionei a idéia. Eu estava hábil para fazê-lo, principalmente porque eu sou mais uma figura cômica do que trágica.

Só percebo a besteira de pagar um café para o duende meia hora depois, vinte chutes depois, trinta filha-da-puta depois. Não que o bichinho tenha me atacado com as unhas prateadas, mas a flatulência….

— Tem cheiro de capivara.

— Capivara? Você sabe o cheiro que capivara tem?

— Meu irmão é veterinário no Mato Grosso do Sul.

— Ele está certo — diz um homem com jeito de cientista louco, inclusive com cabelos, bigodes e cavanhaque brancos. — O cheiro é bem esse, se bem que parece mais morrinha de dragão-de-comodo.

Jamil enrola o dedo indicador nos fios soltos de sua toalha branca e felpuda.

— Quem é o senhor? — pergunto.

— Gray, Alasdair Gray.

Hoje nada me espanta, assim, digo com solene tranqüilidade.

— Estou com um livro seu em minha bolsa. Uma tradução brasileira.

— Brasileiros? Então, quem sabe, você pode me dizer se conhece o livro que eu achei no bolso da minha capa de chuva? Viver é prejudicial à saúde, de Jamil Snege.

Jamil arregala os olhos e,

(Novelas: Tempo sujo, Como eu se fiz por si mesmo, Viver é prejudicial à saúde. Poesia: O jardim, a tempestade. Contos: A mulher-aranha, Ficção onívora, Os verões da grande baleia branca, Como tornar-se invisível em Curitiba.)

na gana de conferir com as mãos, pisa no rabo do duende e leva uma mordida.

Eu fiquei inconsciente de qualquer ajuste, exceto no momento de reescrever sentenças para que o som ficasse mais fácil aos ouvidos. Quando o ouvido não tinha problemas eu assumia que tudo estava tão bom quanto minha capacidade permitia. Em um local, onde eu queria uma descrição exoticamente colorida, acima de meus poderes, eu plagiei passagens de Edgar Allan Poe.

A enfermaria é maior do que seria de se esperar em um aeroporto. Tem paredes brancas com mais de quatro metros de altura, armários de metal escovado e vidros bisotados, mesa de atendimento ladeado por escadas de quinze degraus e belos tapetes azul turquesa.

— Deve ser pelos atentados do ETA — justifico esquecendo que Barcelona é na Catalunha.

Alasdair me olha curioso, o que me dá ganas de continuar a fanfarronear, mas sou salvo pelo trinado do celular.

— Fica tranqüilo que está pronto, só faltam detalhes. Desligo e me volto para Alasdair. Rogério Pereira perguntando sobre o que estou digitando agora.

— Sei como é — Alasdair faz uma careta de cumplicidade.

Enquanto esperamos que o duende seja retirado da canela de Jamil, eu e Alasdair conversamos sobre uma possível independência da Escócia. Como bom separatista, seus olhos brilham com o assunto, e fica visivelmente chateado quando

(— Vai ser muito estranho um Reino Unido separado.)

falo sem pensar.

— Quer dizer que seu amigo é o autor deste belo livro? — ele muda de assunto.

— É considerado o grande escritor desconhecido do público.

— Sei como é isso. Passei 25 anos escrevendo Lanark. Eu estava procurando escrever um grande livro, que muitas pessoas gostassem de ler. Conseguir isso levou muito tempo porque eu procurei fazê-lo feito todos os livros que eu mesmo gostei de ler. Eu queria escapar para um mundo mais excitante do que aquele que eu conhecia, como o que você tem em Alice no país das maravilhas.

Todos os livros que eu que eu menciono no epílogo de Lanark me influenciaram. No final está uma lista que eu roubei da… eu li tanto quanto eu pude de Thomas Hardy a Dickens, e mais tarde eu descobri Scott, ainda que não tarde o bastante, e Stevenson.

No momento da retirada do duende, Jamil tem um súbito ataque de reticências.

— E se esse monstrinho for meu daemon?

Imediatamente sou levado pelo ímpeto de buscar uma motivação para o que se passa.

— Pode ser que você aí, pelado, esse bicho, esse lugar em lugar nenhum signifiquem alguma coisa…

— Bobagem — Alasdair balança a cabeça. — Todos temos uma tendência fatalista querendo aflorar. As coisas simplesmente acontecem, por mais absurdas que sejam.

Ultimamente eu tenho sido um escritor residente, e quando pessoas que odeiam o aborto trazem-me poemas antiaborto, eu não fico discutindo com eles

— há aspectos do aborto que eu odeio…

eu digo: em seu poema de 400 linhas chamado “Eles matam bebês aqui”, seu conteúdo principal poderia ter sido mostrado em 10 ou 15 linhas. Todo o resto está repetindo a mesma coisa, e este seria um poema melhor se você dissesse isto em poucas e boas palavras.

Corroborando a fala de Alasdair, duas bailarinas entram acompanhadas pelos policiais. Não deixamos de notar as marcas de sangue que deixam pelo chão.

— O que aconteceu? — pergunto à médica.

— Bailarinas também menstruam — ela diz com sarcasmo.

Alasdair, Jamil e eu nos entreolhamos descrentes

— Pronto, mais um sonho desfeito.

— Realidade demais mata.

— É verdade…

e, dispensados, saímos da enfermaria e caminhamos até o limite sul do grande prédio e ficamos os três olhando pela gigantesca vidraça.

— Com esse clima os aviões devem estar nos hangares — Jamil diz.

Eu e Alasdair concordamos.

— Você não está com frio? — Alasdair pergunta a Jamil. Eu posso emprestar minha capa de chuva.

— Aí vão pensar que sou um exibicionista.

— É verdade — Alasdair concorda.

Eu suponho que se você vê o ato de escrever com sendo um pouco como uma doença, um doutor que tem a cura para qualquer doença será uma péssima pessoa. Você tem que entender o estado mental, corporal e os sentimentos de quem você está supostamente ajudando. Se eu encontro alguém que está voltado a escrever histórias que, sob meu ponto de vista, parecem-me como uma forte propaganda conservadora, eu não vou tentar convertê-lo para o Socialismo. Eu vou trabalhar explicando a ele, como eu sempre faço, como há certas tendências que se repetem… O ponto é que muitas pessoas que querem escrever não fazem isso de acordo com uma única agenda política, porque se eles agem assim, eles estão direcionando-se à política.

Após um rápido pigarrear, Jamil ajeita a gaze e o esparadrapo na canela. É quando noto como o curativo é tão branco quanto a toalha, e como isso causa um forte fascínio nas pessoas que circulam ao nosso redor. Suponho que leia ali um aviso de algo perigoso, arriscado, que ultrapassa as banalidades cotidianas. A gota de sangue que escorre ajuda.

— Eu me preocupo com a lavra da palavra, talvez pela minha dificuldade em construir enredos…

— Jamil, você é um poeta! — Alasdair brada subitamente chamando ainda mais a atenção sobre nossas figuras.

Uma sineta toca. Todo o aeroporto se cala. Uma sereia passa dentro de um aquário com rodas. Sempre pensei que fossem bonitas, mas, talvez exceção, essa é terrivelmente feia. Penso que é só um sonho ruim, tudo.

— Pois é — Jamil coça a careca — Hilda Hilst me escreveu dizendo que após ler O jardim, a tempestade, ela sentiu vontade de voltar a escrever. Foi na época em que eu e o Fábio Campana estávamos pensando em reeditar suas obras completas…

Alasdair se interessa. Eu, já conhecendo a história, peço licença e vou novamente até a máquina de café.

Eu nunca encontrei uma definição de pós-modernismo que me desse uma idéia clara do que seria isso. Se a característica principal é o autor que descreve a si mesmo como um personagem de seu trabalho, então Dante, Chaaucer, Langland, e Wordsworth são pós-modernos, assim como Joyce é meramente moderno.

A distância, vejo Alasdair mostrar alguns desenhos feitos com bico de pena. São trabalhos cheios de detalhes. Penso em Willian Brake, não tanto pela verossimilhança, mas pela associação do artista gráfico com o literato na mesma pessoa. Seguindo a idéia, lembro que

— No Brasil não há mais que dez mil pessoas envolvidas diretamente com literatura.

— Você é um otimista, Fernando Monteiro me diz enchendo sua xícara.

— Fernando, aquele poema no final do filme Os vivos e os mortos, de John Houston, parece que é de Yeats, só não sei a obra.

— Não é Elliot?

Procuro em meus bolsos minha caderneta de anotações.

— Para falar a verdade não tenho certeza — guardo a caderneta. Estou com o Jamil e o Alasdair Gray, ali naqueles bancos. Quer se juntar à gente?

— Não dá — Fernando aponta o pequeno duende preso aos seus fundilhos. — Preciso ir até a enfermaria. Só parei para dar um oi.

Após nos despedirmos com um forte abraço, sinto um tremendo cansaço. Meus olhos ardem e escorre uma insistente coriza de meu nariz. Supondo ser causada pela brancura da paisagem ao redor, decido investigar o que acontece lá fora. Não digo nada a Jamil ou Alasdair, apenas me dirijo ao saguão de saída e, sobre o tapete, vejo que uma luz verde acende. Mais dois passos estou…

Eu uso uma variedade de tipologias quando isso torna a história mais clara. Então, em Poor thing, as cartas de Bella e Wedderburn são impressas em itálico, um tipo baseado na escrita manual. Em 1982, Janine — uma novela em monólogo interior — o narrador tem um ataque nervoso convertido em três colunas de diferentes tipologias que cobrem a mesma página, cada linha traz um pensamento, ou sentimento relacionando a guerra com o resto. Eu não sei como eu cheguei a fazer isso, mas desde que um monte de pessoas compra esses livros eu acho que elas sentem mais prazer do que dor.

…estou esbaforido e, agora, frustrado. Pelo sistema de som do aeroporto ouço que vou ser obrigado a esperar um pouco mais.

— Merda!

Sento em uma das belas cadeiras do saguão. Ao meu lado, uma senhora acaricia uma fina estola de marta enquanto ouve deliciada o neto contar a história de pequenos fantasmas que circulam pelos céus catalães. Segundo o garotinho, seriam almas boas que socorrem pilotos em apuros.

Rio pensando que devem ser o Pequeno Príncipe e Saint Exuperry. Súbito, antes que possa dizer qualquer coisa, sou obrigado a me desviar da bolsada que vai direto contra meu rosto.

— Ooooooopssss!

A velha me olha como se tivesse lido meu pensamento. Eu não duvido. Sumo na direção de um grupo de turistas japoneses e suas invariáveis máquinas fotográficas e filmadoras (será que Walter Benjamin supôs a reprodutibilidade em escala nipônica?). Eles tiram fotos de Jamil e Alasdair, cada um carregando o seu duende, ou gárgula, ou daemon, sabe-se lá.

A única percepção consciente de meu próprio estilo aconteceu na Escola de Arte, nas férias de verão de 1953, quando eu comecei a tentar escrever Lanark. Depois de dois meses eu terminei o primeiro capítulo do Livro 1; eu tinha finalmente encontrado uma voz calma, madura e adulta. Depois disso, eu sempre pude encontrar essa voz na escrita, quando eu trabalhava nesse sentido. Minha voz falada é normalmente afetada e infantil.

Lenark – uma vida em quatro livros
Alasdair Gray
Record
655 págs.
Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho