Doce vício

Flávio Carneiro constrói personagem viciado pela leitura e o joga no mundo dos detetives; sempre muito bem acompanhado, é claro
Flávio Carneiro: agradável romance policial
01/09/2002

Sempre imaginei como é que as pessoas que escrevem contos ou romances policiais conseguem tantas idéias inusitadas e dão tantas voltas para contar uma história sem se perder. Será que deixam o pensamento assim, meio solto, e acrescentam várias situações bizarras no meio? Ou será que já têm tudo delimitado, tudo pronto na cabeça, antes de botar no papel?

Quis experimentar. Tentei fazer um texto, digamos, policial. Descobri que sou péssima nisso. Provavelmente porque, além de ter lido poucas histórias desse tipo, o texto policial como conheço não sai com facilidade. A tela ficou em branco durante, pelo menos, meia hora. Queria começar minha resenha sobre o romance O campeonato, de Flávio Carneiro, com uma história policial também. Mas o que saiu foi uma bizarrice sem tamanho.

É preciso ter muito talento para escrever alguma coisa decente no gênero policial. Não bastam amontoados de clichês — embora sempre haja um detetive por correspondência, de chapéu, terno bem alinhadinho, cara de sabichão e uma mulher de vestido provocante, luvas, pose de indefesa. Ao fundo, uma daquelas músicas de suspense enquanto a fumaça do cigarro do sabichão se desfaz no ar, em aros simétricos. As coisas se perdem, se não houver um mínimo de coerência e de técnica ao escrever.

Confesso: não sou leitora de livros policiais. Assim como não assisto a muitos filmes desse estilo. Nem Rubem Fonseca li muito. Aliás, não ter lido Rubem Fonseca foi um grande obstáculo para mim, ao mergulhar na história de Carneiro. É que o livro do escritor goiano é baseado em um dos contos de Fonseca. Tem, inclusive, o mesmo nome. Peço, desde já, desculpas aos leitores dessa resenha. Deveria ter me aplicado mais e lido o conto. Mas não o fiz. Minhas impressões, portanto, serão apenas sobre o romance de Flávio Carneiro.

É muito agradável, digo de cara. Bom para ler em um dia de chuva, debaixo dos cobertores. A história me seduziu já na primeira página: “Isso é uma tortura, pensei. Ele quer me torturar. Quando comecei a trabalhar na biblioteca, a primeira coisa que o diretor me disse […] foi: não é permitido ler durante o expediente. […] trabalhar numa biblioteca e não poder ler? Sacanagem.” (pág. 9)

É o seguinte: André é um rapaz de 26 anos que adora ler romances policiais. Adora mesmo. Detesta quando o interrompem no meio de um parágrafo e consegue formular todas as hipóteses para solucionar um caso fictício. Mas tem um problema. Não consegue parar em emprego algum. Justamente porque lê demais. Toda a hora. (Conheço gente assim, que lê até em pé, no ônibus lotado.) Bem, André tem um amigo, o Gordo, que é, como ele, um leitor compulsivo (mas aberto a outros tipos de leitura também, não tão fanático quanto André). Os dois são inseparáveis. Tanto que o amigo gulosão é o único a saber que o tarado por livros policiais resolveu fazer um curso de detetive por correspondência. Tira o diploma e tudo. Afinal, não há como não se sair bem, tendo como mestres Poe e Fonseca.

Como em toda boa história policial — pelo menos as que eu li — o primeiro caso do detetive já foi um abacaxi. Um milionário excêntrico, depois de procurar vários detetives gabaritados, decide contratar André para descobrir o paradeiro do filho de 15 anos, Pedro. O guri estava sumido havia semanas. André resolve aceitar o caso, porque a grana é boa e é uma forma de conseguir uma certa independência. Afinal, ele não agüenta mais o irmão mais velho, Augusto, enchendo sua paciência para que arrume um emprego e que pare com essa história de ficar lendo o tempo inteiro. Sua namoradinha, Raquel, até pediu, com o aval do irmão, para que ele consultasse um psicólogo. O mais fera de todos: Epifânio de Morais Neto. Queriam que ele se curasse dessa coisa de ler o tempo inteiro. O tal psicólogo era uma espécie de guru de auto-ajuda, dos ricos, chiques e famosos. Ouviu o que ele tinha a dizer e, sabiamente, para curá-lo da obsessão pela leitura, o mandou ler um de seus livros…

Toda essa aporrinhação piorou depois que os pais de André morreram, em um acidente de ônibus — estavam indo para Aparecida do Norte, em uma excursão, o veículo se desgovernou, caiu num rio. Só quem tomava conta dele era Raquel, ciumenta que só ela. Nem tanto de outras mulheres. Dos livros, mesmo. Era uma concorrência desleal. E, depois que o cara virou detetive, a coisa piorou. Era bonita, a Raquel. Mas não o suficiente para que, entre uma leiturinha e outra, André conseguisse resistir aos encantos morenos de Mariana, colega de profissão. Claro, todas as histórias policiais têm belas mulheres. Sempre os detetives são irresistíveis e acabam a maioria dos capítulos na cama com alguma delas. Ou algumas, dependendo do sex appeal. O romance de Carneiro não é diferente. São três as mulheres na vida do pobre André: Raquel, Mariana e Lívia, uma ninfeta de 15 anos que conquista o coração volúvel do detetive, no final das contas. O que não impede, é claro, que o mocinho sonhe com as belas coxas da vizinha, a voluptuosa viúva Dona Carmem. Santinha pela manhã, um vulcão em erupção à noite.

Sem mais conversa — O mais interessante, nessas histórias policiais, é o envolvimento de quem lê com a narrativa. Não há como o leitor não se entusiasmar e formular suas próprias hipóteses para o caso. Todos aprenderam, assistindo aos desenhos do Scooby-Doo, por exemplo, que as coisas nem sempre são como parecem. Nem as pessoas (no desenho, depois de analisadas todas as provas, os adolescentes sempre descobriam que o fantasma era, na verdade, um outro personagem secundário qualquer. Como o dono do parque de diversões, por exemplo). Por isso, todas as pistas são importantes.

Sendo assim, para não estragar o prazer de quem se interessar em ler a narrativa de Flávio Carneiro, não contarei mais detalhes sobre o livro. Apenas cito o que já vem na contracapa: é uma história alucinante sobre jovens virgens, empresários ricos, mulheres sedutoras e gurus decadentes. Mas quem já leu o conto homônimo do Rubem Fonseca (está no livro Feliz ano novo) tem boas chances de saber do que se trata o romance.

A narrativa de Carneiro é bastante simples, corriqueira. Agradável. Apresenta vários ingredientes para que o leitor não fique enfadado: reviravoltas, humor, ação, romance. “Caminhei até o quarto, passei pela cozinha, banheiro. Ninguém. […] Estava achando estranho não ver nenhum sinal de Raquel. Que ela não tivesse me esperado, tudo bem, era previsível, mas que não houvesse quebrado nada […] era estranho, muito estranho. […] Fui até a mesinha do telefone e não pude evitar o grito de terror. Um exército de formigas, abomináveis, fazia um banquete sobre, debaixo, dentro de pedaços de páginas de um livro cortado em pedacinhos. Um dos pedaços identifiquei de imediato: fazia parte da capa de um livro meu. Não um livro qualquer, nada mais nada menos que a primeira edição de O Falcão Maltês, do Dashiell Hammett […]” (pág. 77).

Flávio Carneiro é goiano, doutor em literatura brasileira pela PUC do Rio de Janeiro. Publicou diversos livros de ficção, como Lalande, Da matriz até ao beco e depois. Atualmente, é professor de literatura brasileira na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e colabora com o Jornal do Brasil e O Globo. É casado com a escritora Adriana Lisboa (autora de Os fios da memória).

PS. Para o caso de alguém estar interessado, eis a historieta “policial” que consegui fazer.

“Ele chega em casa, acende a luz, joga as chaves sobre a mesa redonda, tira os sapatos. Um pé fica na sala, outro no corredor que dá para o quarto. Arranca a camisa e se joga na cama com o estrado quebrado. Fica encaixado no buraco que se formou no colchão velho herdado da tia-avó — que descanse em paz, a pobre. Fica quieto. E se deixa levar pelos devaneios que tomaram conta de sua cabeça desde que aquela mulher de 40 anos, belíssima e educada entrou no escritório. Acha que está sendo traída pelo marido, uma figurinha mais que carimbada das colunas sociais da cidade. Paga o que for preciso para conseguir provas de que o socialite conta carneirinhos em outras camas que não a dela. Já sabia que ele, com seus 60 anos, já tinha escapulido uma vez, quando era casado com uma outra mulher. Teve uma filha bastarda. Era bonita a mocinha, parece que tinha casado havia pouco tempo. ‘Foi procurá-lo esses dias. Disse que a mãe estava mal e pedia para que ele a visitasse. Desconfio de que ele tenha voltado a se encontrar com a velha, o miserável’, dizia a bonitona. ‘Ele chega em casa exausto, toma banho, vai para a cama e dorme. Ronca, ronca, meu Deus, como ronca!’, disse a bela para ele no escritório. ‘Faço de tudo para que ele me note, detetive. Para que a gente possa… você sabe…’. Sim, ele sabia. Ou imaginava, pelo menos. Fazia tempo que não chovia em sua horta, como diria o velho pai. Empolgou-se ao imaginar a cena da mulher tentando seduzir o marido. ‘Aquele tapado!’. Esfregou os olhos. Tentou pensar em outras coisas. Na estratégia para encurralar o velhaco, por exemplo. Olhou no relógio. Estava quase na hora do showzinho do casal do 402. Toda noite era a mesma coisa. Às 20h30, em ponto, começava o barulho. E os gemidos. Eles não poupavam ninguém. Tinham uma vitalidade absurda. Eram novinhos, recém-casados. Ele, moço boa pinta, cabelinho sempre arrumado. Ela, linda, sempre sorrindo. Oito e meia. Tec, tec, tec, tec, tec… batida seca. ‘Agora, os gemidos’, pensou. E lá estavam eles, os gemidos, ultrapassando as fronteiras das janelas. Tec, tec, tec, tec, tec… batida seca, gemidos… Silêncio. ‘Ok’, pensou. Mas, de repente, outro barulho. Como se um deles tivesse caído da cama. Silêncio. Mais um pouco de barulho, como se alguém estivesse sendo arrastado. Silêncio. Barulho de serra, daquelas grandonas. Rec, rec, rec, rec, rec… pou, pou, pou. ‘Que diabos…’. Silêncio. Ploc, ploc, ploc. Descarga. Schhhhhhhhhh. ‘Será?’ Fez mil e uma conjecturas. Afinal, era um detetive. Mesmo que com um curso feito por correspondência. ‘Um: ele ou ela, de saco cheio, resolveu que era hora de cometer um assassinato. Só para ver qual era. Serrou a vítima em pedacinhos e jogou tudo na privada. Não, são muito novinhos e têm umas carinhas de anjo que Deus os livre! Além do mais, quem iria jogar um corpo, picadinho, no vaso? Dois: um deles caiu e o outro, para resolver o problema, resolveu serrar os pés da cama, que era muito alta. Da próxima vez o tombo seria menor. E, depois, foi ao banheiro. É… ao banheiro. Três: brigaram, ele a empurrou, ela caiu… Mas e a serra? Para que a serra?’. Ainda estava pensando nisso quando escutou a campainha. ‘Péééééé’, era daquelas histéricas e não das bonitinhas de desenho animado que fazem ‘ding dong’. Abriu a porta. Deu de cara com o moço, nu, só de alpargatas. Cabelo impecável. Faca em uma mão, um dedo anular de mulher — com aliança — na outra. Chorava feito uma criança. ‘Adoro esse dedo dela… tão lindo com nossa aliança, meu nome gravado… nem acabei de pagar, o carnê está na gavetinha da sala… tive de fazer isso… tirei o anel à força… a vadia me traía… veja bem, me traía com um velho abichalhado que aparece rodeado de mulheres nos jornais… eu vi… não queria, mas eu vi’, e furou os olhos.”

O campeonato
Flávio Carneiro
Objetiva
358 págs.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho