Sérgio Sant’Anna é uma figura mansa, o rosto sulcado, necessário, palavras somente lavas. Autor, entre tantos outros, de Confissões de Ralfo e A senhorita Simpson (adaptado ao cinema com Bossa Nova), está relançando Junk-box, com gravuras, vinhetas e artefatos do imaginário de Sebastião Nunes. A reedição ganha mais sentido do que na época de seu lançamento, em 1984. Permite rever sua importância estratégica de mudança de ares, propiciando o fortalecimento de inventores como Valêncio Xavier e Manoel Carlos Karam. O volume negro passa a ser a senha de um dos temperamentos transgressores da literatura brasileira: o riso do terror, a comicidade intensa, densa, organicamente ligada ao drama. São poemas que combatem o lirismo tradicional, fazendo uma espécie de hermenêutica e deboche do hermetismo. Também podem ser lidos como um golpe literário no estado da poesia, ironizando o militarismo universitário e as teses acadêmicas. Sant’Anna oferece a matriz do seu sarcasmo. O que está diluído em obras anteriores, aqui aparece concentrado, escandaloso.
Recortes musicais, zombatórios, que atacam até o próprio autor. Nada escapa de sua ironia aos costumes. Nem Camões. As cópias superam as versões originais. É uma estética eclética, composta dos desastres da língua. “A Junk-box é um produto híbrido/ (comprei uma em Manaus)/ misto de lata de lixo, máquina do tempo e Junk box”. A máquina dá sentido para a tração verbal do autor carioca. As cenas são rápidas, feitas aos goles, movidas a cuspidas metálicas. O processo funciona pela “fertilização através de moedas”. A montagem responde a um ritmo ágil, de paradas bruscas. Encadeamento de diálogos fraturados, com alto teor onírico. Há uma profusão criativa de referências pop, destilando uma poesia cômica e simultaneamente severa. Ocorre um resgate do sentido de viagem de Oswald de Andrade (com uma desgarrada dissociação ambicionada pelos concretistas). Percurso realizado na forma literária e intertextual pela destruição do cânone. Além da travessia física, com meditações ferinas de Paris, Londres, Minas Gerais e Rio de Janeiro. “Copacabana era orquestra de pesadíssimos metais”. Evoca neste sentido o oswaldiano João Miramar, carregado de um pessimismo maior e de um estilo ainda mais telegráfico e lacônico. Um Miramar envelhecido e sábio, institucionalizado no pânico, deliciando-se com os fracassos de suas causas. Tanto que o subtítulo — Uma tragicomédia nos tristes trópicos — é levado ao pé da letra, convertendo subliteratura em artigo de devoção.
Junk-box funde auto-ajuda, programas de viagem, torres de aeroportos, profecias e zodíaco. Figura como um manual de instruções para o desuso. Não é preciso marcar página, prevalecendo a descontinuidade e irregularidades características da leitura de jornais. O que vigora é a anomalia, o grotesco. As palavras são idéias desfalcadas da origem, o que fornece o ritmo de circo e recital nonsense. Não representa uma cultura marginal, mas a margem oral do cotidiano que renova a cultura.
“Escreveram-se, nos últimos anos, poemas demais com a palavra
pedra.
Poemas brancos, vítreos, secos, lacônicos como um
pigarro.
As imagens de rios lentos, o sertão, montanhas mineiras
garimpo.
Sua forma era contra o discurso, o longo, restando o vocábulo
ou quase.
Tornou-se uma regra, como ir à missa, ou moda como ser
magro.
Como se alguém para conhecer da fruta
a semente
lhe arrancasse a casca, lhe devorasse
a carne.
E depois, olhando ao redor, o vazio, o pasto
o barro
traçasse da fruta, no solo, apenas o lugar comum
geométrico.
Ou riscasse na pedra a própria palavra
pedra.
Talvez buscando nela a fixidez do que não se torna
podre.”
A literatura de Sérgio Sant’Anna é prato a quilo. O excesso acentua a qualidade do paladar.