Tempo, tempo. Mano velho, como o chama uma musiquinha pop.
O tempo é o entrave em O anônimo célebre, o mais recente livro de Ignácio de Loyola Brandão, que com ele celebra também seus 50 anos de jornalismo. Não é só o tempo, porém, que atrapalha a obra (ou eu deveria dizer o produto?) do autor; há uma dose de panfletagem que causa um desconforto em quem o lê. Além disso, ver um autor que critica tanto as celebridades e a autocelebração dando entrevistas no Programa do Jô para divulgar o produto (ou deveria dizer a obra?) constrange-nos. Seria o caso de usar aquela palavrinha arcaica, hipocrisia?
Não. À primeira vista a atitude de Loyola, um homem inegavelmente famoso, discutir, atacar as celebridades (mundo do qual faz parte) e ao mesmo tempo ir ao Programa do Jô não é hipocrisia. Até porque partimos do pressuposto básico da literatura, de que o autor nem sempre transpõe para o papel o que ele, autor, pensa. Pensar no narrador como um personagem é difícil, ainda mais para um livro quase todo escrito em primeira pessoa e marcado pelas elucubrações de um homem que se mantém anônimo durante todo o tempo, mas se faz necessário. Caso contrário, começa-se a achar que as histórias são, antes de qualquer coisa, confissões, o que não reflete a realidade. Descarta-se, portanto, a denominação de “romance hipócrita” para O anônimo célebre e, por conseguinte, para Loyola, autor e não personagem de si. Continuem, então, a vê-lo divulgar seu livro por toda a mídia sem o menor embaraço: está apenas fazendo o seu papel — muito provavelmente mais por uma obrigação contratual do que por mera vaidade.
O problema mesmo de O anônimo célebre é o tempo. O livro é de uma efemeridade assustadora. Não me admiraria que um leitor, daqui a uns cinco anos, não compreendesse nada do que ali se fala. Afinal, Loyola faz questão de situá-lo no tempo, ou melhor, de encarcerá-lo num tempo finito e muito restrito. O anônimo célebre, pois, não transgride a morte, a passagem dos anos e dos séculos. É um livro que, digamos, contemplado à luz do agora, quando vocês lerem este texto, já terá sido passado.
Este problema com o tempo não é exclusividade de O anônimo célebre na extensa bibliografia de Loyola. Até mesmo seus consagrados Zero e Não verás país nenhum assim o são por pertencerem a uma geração de livros que tratam da subversão, da intimidação, do medo, da agressividade, enfim, de todas estas palavras que sempre usam para qualificar o período em que o Brasil viveu sob o regime de ferro da ditadura militar. De um tempo. Tanto é assim que, acabada a ditadura, a literatura de Loyola parece ter perdido o chão. Ele mesmo assume esta postura ao afastar-se da literatura durante boa parte da década de 80, quando se dedicou a livros de viagem, de contos infanto-juvenis e a livros infantis (exceção feita ao romance O beijo não vem da boca, de 1986) para voltar a escrever um livro que merecesse realmente a atenção somente em 1995, com O anjo do adeus (ainda assim um romance de qualidade suspeita).
Costumo dizer — e sou bastante combatido por isso — que foram dois os males da ditadura para o Brasil. O primeiro é a ditadura em si; o segundo é toda uma legião de artistas que se fizeram somente por sua causa. Nela prosperaram, viraram ícones de uma então contra-cultura e acabaram na democracia virando mitos falsos ou inconsistentes. Loyola, com Zero e Não verás país nenhum, pertence a este time, que conta ainda com outros nomes, como Carlos Heitor Cony e Fausto Wolff (são os dois nomes que me ocorrem por ora). Não que estes escritores, assim como Loyola, não tenham seus momentos de iluminação, por assim dizer. O Cony de O ventre, por exemplo, não se parece em nada com o Cony de Pessah: a travessia; o Fausto Wolff de O campo de batalha sou eu não se parece em nada com o de À mão esquerda, um grande romance da década de 90, subvalorizado. Loyola também teve lá suas iluminações e a maior delas foi o confessional Veia bailarina, de 1997, um dos livros mais tocantes que já li, por conta de sua honestidade intelectual. Em Veia bailarina, Loyola não deu de costas para o medo da morte, como é comum entre os escritores (e, em geral, entre todos os seres humanos que dela escampam em algum momento da vida); pelo contrário, relatou tim-tim por tim-tim o horror que é entrar numa sala de cirurgia com vida sem saber o que o vai lhe acontecer. Confesso que chorei feito um bebê neste livro.
O Veia bailarina, contudo, não é o objeto de análise deste texto, e sim O anônimo célebre. Voltemos a ele, pois. O romance, que retoma a mania, o hábito ou simplesmente a característica de Loyola de usar de recursos gráficos extra-literários (não chega a ser um Valêncio Xavier, claro), conta a história de um suposto ator que está escrevendo um manual de como ser famoso. Ele se sente atormentado porque um tal de Ator Principal teria roubado seu “papel no mundo”. À parte este “probleminha profissional”, ele vive um romance conturbado com uma tal de Letícia. Com ela troca cartas e confissões. Isso durante dois terços do livro, porque na segunda parte descobrimos que o ator não é exatamente um ator. Esta surpresa, contudo, está longe de ser uma grande revelação para o leitor experiente. Loyola usou do recurso mais fácil possível para encaixar as peças de seu romance. Ficou faltando, no entanto, uma, sobre a qual falarei mais tarde.
Entre a narrativa de como quer exterminar o Ator Principal, que lhe tirou o papel no mundo, este anônimo faz uma verdadeira devassa no jornalismo cultural ou, qualificando (sub-qualificando) melhor, no jornalismo de fofoca, que se alimenta exatamente da vida de artistas, em quais áreas forem. Imediatamente ligamos as elucubrações do narrador à condição atual da televisão brasileira (não é um problema que afete somente a televisão, mas nesta ele fica mais evidente; veja só: até o problema quer estar em evidência…). Gente que fica famosa do dia para a noite e cai no ostracismo com a mesma velocidade (vide Big Brother, Casa dos Artistas e demais reality shows). Não há mais personalidades que atravessam décadas; no máximo, alguns anos — e isso se der sorte ou se souber muito bem como manipular a imprensa.
Ignácio de Loyola Brandão é jornalista. Conhece jornalistas. Sabe como a imprensa funciona e se alimenta deste lixo todo. É com esta autoridade que ele condena o mundo de falsos célebres e toda a indústria criada para eles surgirem e desaparecerem. Um mundo de gente que pensa que tem a eternidade pela frente, quando, no máximo, terá alguns minutos no Jornal Nacional anunciando sua morte. Nada mais triste do que isso: ver os apresentadores do Jornal Nacional dizendo que Fulano de Tal, que fez a novela tal no início da televisão, morreu de pancreatite aguda provocada pelo alcoolismo (se bem que eles nunca dizem isso; na tevê, as pessoas sempre morrem de falência múltipla dos órgãos ou insuficiência respiratória ou cardíaca. Aids? Nenhuma artista jamais morre de Aids).
O modo como ele aponta para a efemeridade da fama é o que mais incomoda um leitor que não está atrás somente de uma análise superficial do presente. Porque Loyola o faz de modo panfletário e aleatório. Como uma “metralhadora-giratória” — alguém me lembra do lugar-comum. E, ao atirar para todos os lados, acaba acertando o próprio pé, porque ele, Loyola, também é uma celebridade, como falei no início deste texto. Nossos olhos vão se cansando de um discurso umbigocêntrico e falsamente reflexivo. Duvidamos da autoridade de Loyola (e isso é gravíssimo, no final das contas) para, ao término, constatarmos que o que acabamos de ler, todas essas 379 páginas de apontamentos, acusações, divagações, elucubrações, dúvidas e certezas não passam de uma grande crônica, que no muito renderia uma boa coluna de jornal.
Aqui voltamos à questão inicial: tempo. Loyola se perde no tempo, no seu próprio tempo. Ao tentar fazer dele literatura, falha; apenas o transporta para o papel, sem o filtro do escritor. No bom escritor, no ótimo escritor, esta análise do seu tempo resultará num livro anacrônico. E a Beleza, ora, a essência da Beleza é ser imune ao tempo.
Não que um livro bom não possa estar localizado num determinado momento histórico. Ler Thomas Mann, por exemplo, é impossível sem localizá-lo no Entre-guerras; entre os contemporâneos, Phillip Roth e Paul Auster são alguns que usam em seus livros figuras públicas que, no futuro, uma ou outra nota de rodapé redime. Imagino uma reedição de O anônimo célebre daqui a, digamos, cinqüenta anos — simplesmente ilegível.
O “crime” maior do livro, no entanto, ainda está por vir. É a tal última peça de que falei e que não se encaixa na engrenagem toda. Vamos lá: estou alegre e contente na página 377 do livro. Viro a página e caio no vazio da página 378. Ótimo. Então leio a derradeira, a 379, na qual consta apenas uma frase e uma nota de rodapé. A frase é “De que vale o horizonte se estou no Beco? Letícia repensando Manuel Bandeira”. A nota de rodapé, contudo, anula todo o resto do já — a esta altura — frágil livro. Ela é a prova derradeira de que se trata de uma obra (novamente: produto?) escrita às pressas (mais ou menos como este texto; meu editor não pára de ligar para me cobrar), por mais que Loyola tenha afirmado, em entrevistas, que a idéia do romance já havia lhe ocorrido há alguns anos.
Loyola, meu caro, na vida, a inverossimilhança é aceita, até mesmo desejada; na arte, contudo, a inverossimilhança é imperdoável.*
*Não explicito esta questão da inverossimilhança porque seria contar o desfecho do romance; ao ler O anônimo célebre, contudo, o leitor entenderá do que estou falando