O velho safado, a adúltera e a lésbica

A libido de um mundo que sempre bate à porta
01/09/2002

O velho safado é safado mesmo. Mais que isso, é decrépito. Aos 77 anos, alimenta-se mais de remédios do que de comida. Seu verdadeiro alimento é o da alma, ainda que podre. A alma podre sobrevive da lascívia, ou uma nesga dela. A nesga é servida em doses homeopáticas pela bela nora. Sensual, ex-bailarina de boate, ela explora o pobre e podre velho enquanto o marido, filho dele, vai para o trabalho.

A relação entre o velho safado e sua nora é um eterno embate de lascívia, um duelo de titãs da promiscuidade. Difícil dizer qual deles é parente mais próximo do rato. Para o velho, há alguns atenuantes, entre eles, a própria velhice. Nada mais resta ao velhote que a espera da morte, como ele reconhece. “Creio que o fenômeno seja comum à maioria dos idosos, mas a verdade é que nenhum dia se passa sem que eu pense em minha própria morte.” O velho, no entanto, tenta extrair o máximo do pouco de vida e energia que lhe restam. “Não tenho nenhuma intenção de me apegar à vida, mas uma vez que continuo vivo, não posso deixar de sentir atração pelo sexo oposto.”

Ele não é nenhum galã da terceira idade como Sean Connery. Pelo contrário, consegue ser mais feio que a cara e a obra de Décio Pignatari. “Tenho consciência de que sou um velho enrugado, repelente. É verdadeiramente estranho o aspecto de meu rosto quando removida a dentadura. Não me resta nenhum dente, nem gengiva. Se fecho a boca, os lábios se unem e se achatam, e sobre eles pende o nariz quase até a borda do queixo. Não posso deixar de me espantar com o meu próprio rosto. Nenhum ser humano, nem mesmo um macaco é tão feio”, admite o personagem.

Já a nora, repito, é gostosona, ex-bailarina. Passa o dia em casa, à toa. Sua única ocupação é deixar o sogro louco para lhe extorquir o dinheiro reservado para a própria sepultura, que ele sonha em construir para a morada final. Além da infinidade de remédios diários, a saúde precária do velho sobrevive graças aos afagos permitidos pela jovem. Mas se encontramos na doença e na caduquice justificativas para o comportamento do velhote, nada há para absolver a nora.

Engana-se quem pensa que ela age por compaixão. Primeiro, enquanto o marido trabalha, não é apenas o sogro que freqüenta o banheiro da casa quando ela se lava com a porta aberta. Um amigo da família também tira sua casquinha. Tudo que a nora permite ao velho é por puro interesse. Cada movimento tem seu preço. Começa com um beijo abaixo do joelho. O diálogo para que ele aconteça é característica marcante desta obra.

— Só encoste o lábio, não use a língua.

— Beijar sem usar a língua é pedir demais.

— Quem falou em beijo? Só estou lhe permitindo tocar-me com os lábios, uma atividade à altura de seus anos, vovô.

— Podia ao menos desligar o chuveiro.

— Não, o chuveiro tem de estar ligado para eu lavar o pé logo em seguida. Se demorar, fico com nojo.

Percebe-se aí que as vontades do velho nunca serão completamente atendidas. Não apenas pela incapacidade física do safado, como pela total falta de desejo da nora por algo mais que o dinheiro do sogro. O adultério nunca se concretiza com o velho.

A adúltera
A adúltera, na verdade, é personagem de outra obra do mesmo autor. Obra tão lasciva quanto a anterior, mas com maior complexidade psicológica. A adúltera, antes de ser adúltera, fazia par com o marido num casamento insosso e quase mudo. Mas os dois travavam um duelo intenso por meio de seus diários. Ou pensavam que travavam, pois nenhum deles tinha certeza que suas anotações eram lidas pelo outro. O livro é conduzido pelas páginas dos diários do casal, intercaladas e testemunhadas, a princípio, apenas pelo leitor. O sexo sem graça do casal só é aquecido por umas doses de conhaque, que deixam a mulher inconsciente em seu torpor, permitindo ao marido avançar em carícias antes inexistentes na relação mais do que convencional. Um dia, em seu êxtase, a mulher deixa escapar um nome masculino que não consta na identidade do marido, o nome do namorado da filha do casal. Mas a filha não está interessada no rapaz, deixando o caminho livre para a mãe. Sorte dos diários, que assim vão tendo suas páginas enriquecidas.

O marido não se importa em ouvir o nome alheio na cama, pois a transa fica cada vez melhor com o conhaque e o delírio da mulher. Pena que não era só delírio. Ela realmente queria o namorado da filha no lugar do marido, como relata em seu diário. O marido então, em busca da excitação suprema, aproxima o rapaz da esposa. A intenção é mostrar a ela o quanto a ama. Satisfaz os desejos dela, nem que para isso tenha que dividi-la com alguém. E o diálogo continua mudo. Somente os diários vão sendo carregados com a história. O marido tranca o diário num armário, mas deixa a chave sempre à vista, quer mesmo é comunicar-se com a mulher, revelar seus desejos, transparecer suas angústias. O caminho escolhido é errado e sem retorno. A mulher vicia no sexo à tarde com o amante. À noite, com o marido, o maior atrativo é fazer a comparação com os prazeres que teve de dia. Isto a excita. Isto, e não ele. De alguma forma, tudo vai ficando claro para o marido. Ele não resiste e sucumbe. “Nos amamos, nos entregamos, nos enganamos e caímos nas armadilhas que armamos, até que um de nós fosse destruído”, reflete a mulher ao comparar os dois diários. É um retrato da vida do casal, que não existiu na realidade. Com a anuência de ambos, as vidas saltaram para as páginas de dois diários que, juntos, viraram uma única ficção.

A lésbica
O marido do diário, aquele que perdeu a mulher para o namorado da filha, foi menos esperto e infeliz que o marido da lésbica, agora em outra obra do mesmo autor. Este, sim, soube tirar proveito da amizade cada vez mais profunda que a mulher tinha por uma jovem muito bela. Ele não só entendeu a atração que a mulher sentia pela jovem, como passou a sentir o mesmo.

Tudo se iniciou com muita pureza. Uma amizade singela, uma admiração da jovem pela amiga mais experiente, casada. Os encontros passaram a ser freqüentes, o triângulo amoroso começou a tomar forma, ganhou voracidade e acabou em tragédia.

Aqui, assim como a mulher do diário, que de inocente esposa transforma-se em alma perversa, a jovem deslumbrante revela-se ardilosa e sarcástica, à medida que sente aumentar a paixão da amiga casada, com o consentimento do marido. A amizade inocente dá lugar a tramóias egoístas.

Novamente a lascívia é marcante, como nos livros anteriores. Mas, por mais paradoxo que possa parecer, é uma lascívia poética, que parece dar permissão ao desejo convencionalmente proibido. “A maninha é casada, de modo que eu também vou me casar com você, mas o amor entre marido e mulher é uma coisa, e o amor entre duas mulheres, uma coisa totalmente diversa”, diz a jovem.

A sexualidade de um velho doente, o adultério de uma dona de casa tradicional, o triângulo amoroso com um vértice lésbico. Nada mais Nelson Rodrigues nessas histórias, nada mais Oscar Wilde. Até poderiam ser, não fossem pequenos detalhes geográficos. Por conta disso, o velho é o senhor Utsugi (Diário de um velho louco; Estação Liberdade; 2002; 204 págs.), a adúltera se chama Ikuko (A chave; Companhia das Letras; 2000; 134 págs.) e a lésbica é Sonoko (Voragem; Companhia das Letras; 2001; 240 págs.). Todos personagens do japonês Junichiro Tanizaki, merecida e finalmente lançado no Brasil. Finalmente, porque são obras de 1928 (Voragem), 1956 (A chave) e 1962 (Diário…). Merecidamente porque Tanizaki, morto em 1965, foi um dos maiores escritores de “literatura em língua japonesa” do século recém-passado.

O detalhe “literatura em língua japonesa” é para se evitar um conceito fechado de literatura japonesa. A literatura de verdade é universal. Tanizaki escreve em japonês, mas é universal. Para se extrair o melhor de sua obra, deve-se primeiro destituir-lhe da nacionalidade, o que foi intencionalmente feito no início deste ensaio.

Aliás, o primeiro passo para se ler qualquer autor estrangeiro deve ser tentar esquecer que ele é estrangeiro. Não é uma regra fácil de ser seguida. Ainda mais se o escritor for de uma cultura tão distinta de qualquer outra, como a japonesa. É muito grande a tentação pela busca de estereótipos daquilo que imaginamos ser oriental. O erro começa pela superficialidade com que se pode conhecer uma cultura estrangeira, sendo um estrangeiro. O equívoco se dá na anulação daquilo que a literatura pode oferecer de mais sagrado, aquilo que a coloca como uma arte superior a todas as outras, a universalidade.

A literatura de verdade é interior, trata da essência do ser humano. Essa essência é universal. Carrega sim, alguns adereços, inerentes aos diferentes lugares e culturas, mas, no fundo, a grande característica dos seres humanos é, justamente, ser humano.

Repito, é grande a tentação de se buscar estereótipos de cultura japonesa quando se lê a obra de Junichiro Tanizaki. Isso não significa que quem o fizer não vai encontrar. Vai sim, e muito. Nada mais natural, já que o autor é japonês e as características nativas não deixam de ser um atrativo em seus livros. Mas perde-se muito quando se deixa levar por esses detalhes que devem ser vistos apenas como adereços na literatura estrangeira. A busca maior e mais compensadora deve ser por aquilo que nos iguala, que torna os personagens universais. Estes aspectos afloram feito sakura na literatura de Tanizaki.

Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho