Como desperdiçar 500 páginas

Resenha do livro "A casa das sete mulheres", de Letícia Wierzchowski
Letícia Wierzchowski, autora de “A casa das sete mulheres”
01/09/2002

Misturar realidade com ficção é recurso pra lá de gasto. O resultado no mais das vezes é um livro “grosso” e ficamos por aí. Outras características são: pretensão desmedida e talento incomum para encadernar o “nada” capaz de desperdiçar a chance de acrescentar uma vírgula que seja de relevância à ficção ou à história. Porém quando se trata de autor(a) gaúcho(a) o caso se torna ainda mais grave, visto que a queda por um pastiche é prerrogativa da intelectualidade pampeana, com raríssimas exceções. Alguns tentaram imitar Érico Verissimo e desistiram, mas depois Luís Antônio Assis Brasil deu pra formar discípulos e atualmente a prole polui as combalidas letras brasileiras com seu nhém-nhém-nhém mudo. Os autores gaúchos já ultrapassaram o tempo regulamentar de soltar as rédeas do regionalismo, cortar as amarras da patética devoção a Borges e oxigenar cérebros na tentativa mais que saudável de encontrar personalidade própria.

Percebo que tal ranço é exclusividade dos que por lá sorvem seus amargos dias, pois o gaúcho, já antigo habitante de Copacabana, Fausto Wolff com O lobo atrás do espelho (Bertrand Brasil, 2000) presta uma inteligente, ácida e magnífica homenagem ao Rio Grande, o verdadeiro e o utópico, enquanto os ditos romances históricos na sua maioria cuidam de enaltecer um reacionarismo bárbaro como é o caso dos livros que se ocupam da Revolução Farroupilha.

Leticia Wierzchowski, que tem em sua biografia uma mancha indelével que atende pelo título de [email protected], perpetrado junto com seu marido, publicou outros títulos que se não atingiram o status de maravilha, conseguiram ser pelo menos honestos. Digamos que são documentos que atestam o esforço da autora no rumo do aprendizado. Mas tinha uma pedra no caminho, A casa das sete mulheres, pedra pesada de mais de 500 páginas a serviço da superficialidade.

O Rio Grande do Sul é o cenário, exaustivamente descrito, onde sete gaúchas da família do General Bento Gonçalves, confinadas na Estância do Brejo, desfiam seu repertório de mágoas, angústias, amores impossíveis, loucuras e os preconceitos mais deploráveis, enquanto a “guerra dos farrapos” consumia dez anos da vida gaúcha.

O episódio Revolução Farroupilha é dos mais patéticos, de prático mesmo restaram muitos mortos liderados por um caprichoso refém de seus sonhos impraticáveis, ruas, monumentos, praças e cidades batizadas com os nomes dos heróis derrotados.

As mulheres da família do general monopolizam a narrativa e Letícia desperdiça um sem fim de oportunidades que permitiriam fugir às armadilhas do rançoso lugar-comum. A autora arranjou espaço inclusive para um fantasma, Steban, que surgia de entre os livros para seduzir Rosário, sobrinha de Bento, que o leitor num “hercúleo esforço de memória” concluirá já na página 49 que seu destino é a loucura. Alguém falou déjà vu?

A autora não economizou pieguice e tampouco mediu escrúpulos ao lançar mão dos clichês gauchescos. Respectivamente: “…e viu o Cruzeiro do Sul como a jóia sobre o veludo negro da noite.” e “De cima do lombo do cavalo, o mundo tinha outro gosto.” Convenhamos!!!

A melancolia natural do pampa gaúcho e a estupidez de uma guerra dividindo os personagens em fortes, os soldados, e fracos, mulheres e crianças, todos unidos pela angústia e o medo. Talvez o mesmo medo tenha impedido a autora de questionar, por exemplo, uma das bandeiras da revolução, a libertação dos escravos. Ao mesmo tempo em que pretendia a abolição, com meio século de antecedência, colocava os negros na linha de frente do exército de Bento Gonçalves, os famosos bois de piranha, mas Letícia faz vista grossa. Em dado momento, relata o encontro de Bento Gonçalves, preso em Salvador, com outros maçons. E daí, o que isso interessa, que importância tem o fato de alguém ser maçom? É bom? É ruim? Tanto faz? Se tanto faz, por que o destaque? E se é relevante, por que não desenvolve?

Superficial ou sobrenatural? Qualquer um ou ambos cabem perfeitamente na TV ou no cinema, mas na literatura que se preze… faça-me o favor!!!! Os personagens, em sua maioria, são talentosos videntes, premonições pululam pela tristeza infindável do pampa, seja um sonho, uma estrela, uma dor, qualquer sinal se transformando em certeza. “O resto é silêncio.”

A casa das sete mulheres é o fiel retrato da abjeta literatura dos panos quentes, na qual tudo é morno, sonolento… O romance da clausura, das frustrações e das resignações. As mulheres arrastam sua existência e…esperam… esperam… esperam… pelo seus homens… pelo fim da guerra. Enquanto a pasmaceira tece sua teia, algumas dessas mulheres brigam, deliram e até conseguem aperfeiçoar o sofrimento. Rosário, apaixonada por um fantasma, enlouquece e se mata, Manuela é abandonada por Giuseppe Garibaldi que preferiu Anita, mulher fora dos padrões de submissão capaz de acompanhá-lo em suas aventuras e lutar de igual pra igual. Mariana, irmã de Mauela, grávida de um peão filho de uma índia charrua com um uruguaio, foi trancada no quarto pela mãe para esconder a gravidez. Perpétua, sobrinha de Bento, e seu amor quase impossível por Inácio, cuja esposa morreria nos últimos dias de 1837.

Manuela de Paula Ferreira, sobrinha de Bento Gonçalves, narra grande parte da história, escrevendo seu diário que vai da infância a velhice, mas não fosse a indicação de “Cadernos de Manuela” nem o mais atento leitor perceberia a diferença quando entra em cena o narrador ou o próprio Bento. Tudo sai do mesmo punho. Personagens rasos, primários, os sentimentos de Bento e Garibaldi no campo de batalha são os mesmos de D. Antônia e Perpétua na Estância do Brejo. Desperdício, bobagens, resquícios do traumático [email protected] em mais uma modorrenta saga gaúcha. Dez anos de guerra, besta como todas as guerras, dez capítulos da mais genuína monotonia, descrições de tempo e paisagem que TV e cinema não suportariam.

Apesar do peso, o livro de Letícia tem a utilidade dos famosos cordões amarrados nos dedos encarregados de acordar lembranças ou compromissos. Tempo de reler O tempo e o vento, escutar o CD do Vitor Ramil: “…Garibaldi delira/ puxa no campo um provável navio/grita no mar farroupilha/ fica na tua…”

Milongas, espanhol e português na mesma frase, o chimarrão, lareira, cusco, zaino, será que a gauchada ainda se interessa por isso?

Enfim A casa das sete mulheres vai virar novela, série ou mini-série da Globo, pouco importa o formato, talvez tenha sido concebida com essa finalidade. Agora, só falta cair nas mãos do Lexotan Fernando Carvalho para as vendas de Dormonid e Dalmadorm crescerem como rabo de cavalo, como se diz lá na terra de Bento Gonçalves.

E quando o tempo exigir escolhas, leiam Fausto Wolff, pois Fausto já leu tudo.

A casa das sete mulheres
Letícia Wierzchowski
Record
516 págs.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho