Alguns temas literários são difundidos equivocadamente desde as primeiras letras até o ensino superior. Difícil apontar se por má-fé ou ignorância, os erros vão sendo propagados e acabam aceitos como verdade, sem questionamento. Raras são as iniciativas, a exemplo de Affonso Romano de Sant’Anna, que por meio de seu Barroco — do quadrado à elipse (Rocco, 2001) desmitificou o tópico. Outro assunto que costuma ser analisado inadequadamente é o modernismo. E agora em 2002, nos 80 anos da Semana de Arte Moderna, é mais que bem-vinda a reedição de O modernismo, que Wilson Martins publicou originalmente em 1965, rebatizado como A idéia modernista.
O autor vasculhou jornais, revistas, periódicos, cartas e obras editadas na época, apresentando uma contribuição realmente original sobre o assunto. Ao analisar as conjunturas sociais e espirituais, Martins constatou que o modernismo foi reflexo da insatisfação da vanguarda intelectual brasileira diante do esgotamento do parnasianismo e do simbolismo — apontando influências que justificam o estilo da época.
As então novas tecnologias, como cinema, avião e automóvel, proporcionariam uma nova noção de tempo. E este olhar inédito estaria visível na prosa, na poesia e nas artes de uma forma geral. A linguagem literária moderna, caracterizada por frases curtas, sem adjetivos, com ritmo e veloz, explica-se como conseqüência do impacto que a máquina exerceu no ser humano e, naturalmente, na sua maneira de se expressar.
Wilson Martins desmitifica a idéia de que a Semana de Arte Moderna teria sido um episódio ruidoso de proporções gigantescas — imagem disseminada até hoje nos mais variados meios. O evento que abalou a literatura brasileira se resumiu a três festivais, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, tendo como palco o Teatro Municipal de São Paulo, onde os artistas realizaram performances verbais, musicais e exposições. Foi apenas isto: um evento, um fato. E, como todo acontecimento, teve boa e má receptividade, tanto de público como de crítica.
A idéia modernista propõe uma discussão sobre o tema a partir do estudo das obras representativas e dos autores fundamentais. Obras representativas são aquelas que comunicam, antes de mais nada, características modernistas — obras que preferiram, por exemplo, ser vanguarda a ser obras-primas. São elas: Paulicéia desvairada (1922); A escrava que não é Isaura e Pau Brasil (1925); Retrato do Brasil, Macunaíma e Martim Cererê (1928); Cobra Norato (1931) e Casa-grande & senzala (1933). Além da indefectível análise detalhada de cada um dos títulos citados, Wilson Martins atentou para um detalhe cronológico, no que se refere à publicação dessas obras representativas. “Ao fim de cada período de três anos, a escola muda sutilmente de pele, sem renegar as suas origens, mas também sem aceitá-las e antes anunciando o futuro do que prolongando passado.”
Os autores fundamentais são, naturalmente, aqueles que não podem ser omitidos quando o assunto em pauta é o modernismo. Ao avaliar cada um desses protagonistas, Wilson Martins indica, por exemplo, que Mário de Andrade foi uma presença e que todas as facetas de sua personalidade eram complementares, diferente de Oswald de Andrade, que se perdia na dispersão. Manuel Bandeira é definido, a exemplo de seu poema, como um tísico, e também poeta, profissional. Martins ressalta que Graça Aranha, o chefe do modernismo, não produziu nenhuma obra modernista.
O ensaio discute a relevância das revistas, os “ismos” que o movimento gerou, e explica que o herói modernista, o fracassado, o homem sem nervos e de pouca ação, foi uma resposta à tendência mundial que disseminava a idéia do atleta alegre. Martins desfaz um grande equívoco, esclarecendo que Monteiro Lobato foi injustamente identificado como um inimigo dos modernistas, devido a um artigo — “lido mais no título provocativo e polêmico do que no texto” —, quando outros autores, que atacaram o modernismo com muito mais violência, posteriormente entraram no movimento por uma ou outra porta. Atento, o crítico detectou que, muito mais do que um movimento, o modernismo foi um clima, que propiciou liberdade criativa e experimentalismos nunca sonhados até então.
A idéia modernista, ao lado de outros títulos do autor, como História da inteligência brasileira e A palavra escrita, é um daqueles livros fundamentais — leitura obrigatória — para compreender a literatura e o imaginário nacionais.
“Sempre me senti mais moderno do que modernista”
• O que foi o modernismo?
Vasto movimento de ordem intelectual, o modernismo foi a forma que tomou entre nós o clima de renovação social e política subseqüente à Primeira Guerra Mundial. Foi o período que os franceses posteriormente chamaram de “entre duas guerras”. O processo começara nos início do século 20 (o Manifesto Futurista é de 1909, e Picasso já trabalhava em Paris desde 1904), sofrendo, entretanto, abrupta interrupção em 1914. No Brasil, como na Europa, é possível identificar desde 1916 os primeiros sinais do que viria a ser, seis anos mais tarde, a Semana de Arte Moderna. O modernismo introduziu a modernidade entre nós, com tudo o que isso significa nos costumes, nas idéias políticas e sociais, para nada dizer das novas concepções literárias.
• Estudar o assunto a partir de obras representativas e de autores fundamentais foi apenas uma das muitas boas e ousadas idéias do livro. Além do mais, o senhor desmitifica a Semana de Arte Moderna. Como o livro foi recebido, em sua primeira edição, em 1965?
O livro teve cinco edições posteriores, implicando ter sido bem recebido pelo “leitor desconhecido” e, ao que se pode presumir, pelos professores de literatura nas salas de aula. Contudo, é de notar que historiadores e críticos costumam guardar sobre ele um discreto silêncio…
• Analisando de 2002, 80 anos depois da Semana de Arte Moderna, qual o legado do modernismo para a cultura brasileira, sobretudo para a literatura?
É um legado enorme, bastando dizer que impôs a idéia de vanguarda como norma de criação. É dele que data a nossa poesia chamada moderna, com Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, para citar apenas os dois grandes troncos de que derivaram todos os outros. A renovação do romance, nos anos 30, é ainda um dos seus legados, particularmente no que se refere às técnicas narrativas e à temática social de inspiração política (no caso, esquerdizante, como era a moda do momento). Acrescente-se à vigorosa estante dos estudos brasileiros, a partir de Retrato do Brasil, com o ponto alto em Casa-grande & senzala e os demais livros de Gilberto Freyre. A crítica literária também se renovou nas mesmas perspectivas, com Álvaro Lins e Antonio Candido, que, no consenso não escrito do momento, tinham vindo “substituir” Tristão de Athayde e tomar-lhe o lugar.
• Tendo participado da equipe da revista Joaquim, o senhor se considera um modernista? Qual a influência do modernismo em Wilson Martins?
Comecei a interessar-me por literatura na década de 1930, ainda como estudante secundário, como se chamava naquele tempo. A essa altura, o modernismo já havia ganhado a sua batalha. Nesse sentido, sempre me senti mais moderno do que modernista, na medida mesmo em que o próprio modernismo já havia se transformado em moderno, sem qualquer ismo qualificativo.
• Aos 81 anos, Wilson Martins continua em plena atividade. Estamos em setembro de 2002, e até agora o senhor já publicou A crítica literária no Brasil — dois volumes (Francisco Alves/Imprensa Oficial do Paraná), Pontos de vista / vol. 14 (T.A. Queiroz) e A idéia modernista. E recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, em reconhecimento de sua produção. O senhor já se deu conta de que construiu uma obra de suma importância para a cultura brasileira?
É uma pergunta embaraçosa, já que não me compete avaliar a importância do que fiz, nem em que medida acrescentou alguma coisa à cultura brasileira. Digamos que trabalhei e trabalho com essa intenção, procurando obedecer aos princípios fundamentais de objetividade e rigor, o que recebeu a sanção entre todas honrosas do Prêmio Machado de Assis.