O rio

Conto de Ivan Junqueira
Ivan Junqueira, autor de “O outro lado”
01/09/2002

O rio é uma língua bífida
que lambe não só a fímbria
das gargantas que a constringem,
mas, também, porque lasciva,
suas mais profundas vísceras.

Lambe até o lodo e o limo
das frinchas onde se enfia
na terra que, concubina,
abre a úmida vagina
ao seu lúbrico apetite.

Na infância não vi o rio,
mas só praias e penínsulas,
lagoas e alvas restingas
onde o sol e a maresia
inundavam-me as narinas.

Só depois, lá pelos quinze,
é que vi rugir o rio,
com suas súbitas iras,
seus pêlos em desalinho,
seu caráter ínvio e ríspido.

Era o sensual Paraíba,
com águas cor de ouro antigo
e bois nas margens furtivas
que devagar se moviam
quando as cheias as tangiam,

empurrando à superfície
toda sorte de iguarias:
almas penadas, espíritos
malignos, ermas pupilas
de afogados e facínoras,

a lembrança da menina
que sorria entre os caniços,
abrindo-me as coxas lívidas
que ardiam como dois círios
à escura soleira do hímen.
Ó rios de minha vida:
os que cruzei sem ter visto
e os que fluem, com mais tinta,
no pélago das retinas
de quem agora os recria!

Não vi o Eufrates e o Tigre,
ou o esfíngico Nilo,
esse que corre por Biblos
e se derrama em estrias
às bordas de Alexandria.

E não vi, no Middle East,
o irascível Mississipi,
de que T. S. Eliot disse
ser um deus castanho e altivo,
cuja cadência se ouvia

nos verdes quintais de abril,
no aroma das uvas híbridas,
no berçário dos meninos
e no óleo das lamparinas
que o duro inverno aqueciam.

De mãos dadas a esse ritmo,
vi o Tâmisa poluído
na Londres dos anos vinte;
vi-lhe as garrafas vazias
e as migalhas de comida,

um rato a esconder-se, esquivo,
em meio às ervas daninhas.
E ouvi também, mais longínquo,
o riso que, ressequido,
do turvo rio se erguia.

E vi mais: o halo das ninfas
que dali se haviam ido,
e os amantes da rainha,
que com ela percorriam
o Tâmisa até Greenwich.

E o que dizer desse rio
que em dois hemisférios cinde
a rendilhada Paris?
O que dizer desse cisne
que Baudelaire viu um dia,

tão ridículo e sublime,
a sujar as plumas límpidas
nas lajes do Sena esguio,
onde, entre náuseos detritos,
ia, aos tombos, se ferindo?

Sobre o Arno, o grave e humilde
Ponte Vecchio se equilibra.
Ali, Dante viu Beatriz,
mas nele o amor que cintila
é o de Francesca da Rimini.

Ali, Galileu, suicida,
quis saltar fora da vida,
mas, sábio, disse-lhe o rio
que, além das águas, lá em cima,
o céu também se movia.

É pouco o que eu sei do Vístula,
mas não do Neva, expansivo,
cujos orgiásticos dígitos
em São Petersburgo criam
uma rede de arteríolas.

Cúpulas de ouro faíscam
onde Pedro e Catarina
cravaram fundo as raízes
de uma Rússia cuja estirpe
se enrola nas próprias cinzas.

E lá mesmo — duro epílogo —
uma bala sem arbítrio
matou Puchkin e a poesia.
Mas esta, bem mais que o rio,
corre ainda em meus ouvidos.

Em Salzburg ondula um rio
cujo azul lembra o matiz
da mais difusa opalina.
É Salzsach, dizem os austríacos,
o seu nome de batismo,

e, quando o vi, algo tinha
daquele timbre apolíneo
das árias e sinfonias
que Mozart, em agonia,
escreveu como quem brinca.

Ó Tejo, ó tágides minhas!
Ó Camões sôbolos rios
que por Babilônia singram
e sangram todo o lirismo
de que vive e morre a língua!

Ó rio que viu Ulisses
fundar a velha Olisipo,
que depois Lisboa vira,
muito embora não o digam
a Odisséia e a Ilíada!

Mais que o Tejo, todavia,
é o Sor que me fala ao íntimo,
quando, azul, todo se estica,
entre sobreiros e olivas,
no louro Alentejo acima.

Pois foi ali, numa quinta
— ou herdade, como dizem —
que eu, já de morte ferido,
descobri enfim o enigma
do que chamam ars antiqua,

ou seja, a que não cobiça
ser laureada ou aplaudida
por sua exímia alquimia,
mas tão-só fruir de si
e do prazer de estar viva.

Mas bem antes desses rios
aos quais aqui me refiro,
um houve que, desde o início,
anda em minha companhia
como o cão que o cego guia.

Falo, enfim, daquele rio
de cujas águas alígeras
ninguém sai igual a si
ou àquilo que está vindo
a ser, mas não é ainda.

Tudo se move. Esta é a sina
de todos, este o castigo
que nos coube, como a Sísifo:
o de sermos o princípio
e o fim, na mesma medida.

Por isso louvei os rios
que não começam nem findam
e que estão sempre fugindo
dessa fraude que os quer hirtos
como alguém que já não vive.

Rascunho