Doze apóstolos e nenhum santo

Quais os livros que marcaram nossa vida? Os mais sábios e os que pretendem aparentar sabedoria escolhem os clássicos: Dante, Homero, Vírgílio, Goethe e outros capítulos da régua histórica
01/08/2002

Quais os livros que marcaram nossa vida? Os mais sábios e os que pretendem aparentar sabedoria escolhem os clássicos: Dante, Homero, Vírgílio, Goethe e outros capítulos da régua histórica. Não precisam argumentar: os clássicos nunca são contestados. Não haverá o risco de omissão de um nome próximo e a gafe de denunciar as verdadeiras leituras. É raro alguém admitir que os livros marcantes são aqueles da época, do momento, os que ainda não receberam a beatificação e, de repente, não produzirão três milagres poéticos para entrar no cânone. A regra é mostrar uma pureza, uma dieta infalível, sem a contaminação dos acontecimentos e a tentação das gorduras. O que dá a falsa impressão de que a literatura brasileira deve ser formada de uma turma que não arrisca mudar de cardápio e se impor à aventura de um nome ainda ilhado de referências teóricas. Ninguém quer errar, falhar, mudar de opinião, como se a vida não fosse um produto híbrido e contraditório. A vaidade ainda espessa a névoa e atrapalha a visão. O escritor consagrado parece compor sua obra já pensando no índice onomástico de sua biografia. Os prêmios polpudos esquecem os versos ou apenas cumprem homenagens quase póstumas. Os poetas contemporâneos são os que precisam esperar amadurecer, os que ainda têm muito futuro pela frente.

Contrariando os prognósticos, o Rascunho mergulha em doze lançamentos poéticos. Dezenas de autores estão aparecendo com novas publicações, no embalo dos centenários de Drummond, Murilo Mendes e Cecília Meireles. A maioria são jornalistas e artistas, na faixa dos 20 aos 40 anos, ligados à produção cultural. Todos comunicam seu mundo, expressam ao menos a topografia de uma rua e o hálito de uma cidade, firmando uma linguagem que rivalize ou produza silêncio, que aperfeiçoe antecedentes e trabalhe influências até que desapareçam no canto. Deixando a euforia de lado, a disseminação de novos nomes não significa enraizamento editorial do gênero, como é possível concluir apressadamente. As tiragens estão cada vez menores, chegando ao despojamento em alguns casos de 200 exemplares, número que atende somente a distribuição entre os críticos. Tornou-se mais fácil publicar o livro, sem dúvida, porém é mais difícil vencer as barreiras regionais e assegurar uma distribuição nacional. Selos menores como Ciência do Acidente, Alpharrabio, 7 Letras, Nankim Editorial, Scriptum e Azougue persistem em compor a maioria de seus catálogos com poesia, comprando briga com os cambistas para subir os livros das arquibancadas inferiores às cadeiras das megalivrarias. Como diz Italo Calvino, “é clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo”. Que assim os pequenos acontecimentos sejam visíveis.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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