Entrevista com Fernando Monteiro

Entrevista com Fernando Monteiro
Fernando Monteiro: fora do “álbum de figurinhas brasileiras”.
01/08/2002

• Por que você escreve?
Lamento começar dando uma resposta bem mais simples, talvez, do que as já ouvidas neste seminário: eu acho que a gente escreve porque a gente lê. Lembro até aquela frase de Borges: “Ler é uma atividade posterior e mais refinada do que a de escrever”. Concordo — e vejo a todos nós, primordialmente, como leitores. A leitura é uma dilatação da consciência, e responde por uma das razões mais fortes para se escrever e promover esse “dilatar da consciência” do leitor… e também do autor, no processo da escrita. Fernando Sabino diz que o escritor escreve para aprender a escrever. Num texto mais antigo, esse aprendizado, para ele, não era só o da escrita — mas algo totalizante, um “escrever para aprender” tudo: a escrever, a viver. Ele chega a lamentar ter “aprendido demais” o caminho da mina e ter perdido, por isso, a necessária inocência que talvez liquide, com o passar do tempo, inclusive o (precioso) “leitor” remanescente no escritor. Quando o aprendizado se completa, o escritor de fato perde algo do “estado de graça” e pode até se lamentar como “poluído” pela sabedoria da escrita. Esse elogio da leitura que estou fazendo não é uma coisa de “charme”, da boca para fora. Talvez eu preferisse ter preservado a minha condição de leitor…

• Eu acho que você preservou. A primeira coisa para um leitor, em seus livros, é a idéia de que você — como autor — coloca-se um pouco fora dos livros, numa posição de ignorância semelhante à dos leitores, que é o oposto de tudo que domina a literatura voltada para o mercado — ou para a história literária. Fale um pouco dessa posição em que você se coloca como escritor.
É provável que eu faça isso até de forma inconsciente, tentando preservar, sim, a zona de “ignorância” — implícita da resposta anterior — com a qual se trabalha na literatura. Porque a gente escreve sobre o que não sabe exatamente (ampliando aquela resposta de Sabino), para ficar sabendo. Basta pensar no prazer que existe mesmo para o romancista, creio, que trabalhe com rígidos esquemas: ainda assim, acredito que seu maior prazer ele obtém daquelas zonas de sombra onde nunca sabemos o que vai acontecer com as personagens por exemplo. Elas se desenvolvem e, se são verdadeiras, escapam ao controle, exatamente ali onde é mais misterioso o prazer (meio maldito) do ato de escrever. De minha parte, posso dizer que tenho uma imensa pena de sair de cada universo ficcional onde começo a me mexer, quando inicio um romance. É como se fosse uma vida dupla, e tenho vontade de ficar ali, madrugada adentro. Sair daquele mundo pode ser uma coisa extremamente penosa para mim — como na consciência desdobrada do sonho. Nas cenas que descrevo, quase que ouço o rumor da chuva, sinto os cheiros ou a quentura de uma poltrona onde esteve sentada uma personagem vestida de vermelho. Muitas vezes preciso ser arrastado da frente do micro, por minha mulher, porque o dia vem nascendo…

• Como é o seu ritual para escrever?
Para mim, é um caso meio de “possessão”, como se vê. Eu entro no clima do livro, sou absorvido por ele. Mas, o meu processo é rápido, ao mesmo tempo. Levei seis meses para escrever O grau Graumann. Foi o mais rápido (e o mais longo levou um ano e meio). A múmia do rosto dourado do Rio de Janeiro levou um ano.

• Você impõe horários? Precisa ficar sozinho?
Não me incomodo com nada, quando escrevo, porque de fato eu entro no ambiente descrito pelo livro, e, quando estou desenvolvendo a ação, é uma verdadeira evasão do entorno, conforme já disse. Então pode ter som, pode ter gente falando — é claro tem que ter algum respeito mínimo —, mas uma televisão ligada, por exemplo, não interfere em nada, no meu total alheamento.

• Um livro para você começa por uma imagem, começa por uma história, por um personagem?
Em A cabeça no fundo do entulho, eu parti de uma simples visão: alguém saindo de um hotel. E a novela Átila em Roma — a primeira do livro — realmente começa com o personagem saindo de um hotel de Roma. Mas eu não sabia quem era aquele homem, onde ele estava e o que ia fazer fora do hotel. Ele pega um táxi — e então me ocorre que é um taxi romano, mas eu ainda não sei o nome do hotel, embora tenha julgado “ver” uma parte do letreiro acima da sua cabeça. E assim prossigo, acompanhando o homem que vai procurar o endereço de uma moça, na periferia confusa para além da via Aurélia, a fim de lhe comunicar a notícia de uma herança no Brasil — herança essa que eu não sabia qual era, nada (o que me obrigará a ajustar determinadas coisas, depois). Terminou sendo a herança — bastante complicada — de um lote de obras de arte saqueadas na Itália, no período da guerra…. Já O grau Graumann foi mais cerebral, em cima dessa expectativa brasileira, dessa necessidade de autenticação do Nobel, do Oscar, da Copa, que faz parte de nossa cultura.

• Como foi sua experiência com o cinema?
Eu sou de uma geração muito influenciada pelo cinema. Diziam até que o cineasta iria “substituir” a escritor — mas isso obviamente não aconteceu. Ao mesmo tempo que escrevia, cometia os primeiros contos e poemas, enquanto o cinema alcançava (nos anos 60) um brilho notável de expressão, com Antonioni, Fellini e Visconti, na Itália, e, na França, os cineastas da nouvelle-vague exibindo toda a sua inquietude. Esse foi o clima que permeou toda a minha geração. Em 68, tive uma experiência mais direta do cinema, como assistente de produção de A Compadecida de George Jonas. Ao fim desse ano, fui para Roma estudar comunicação durante 69 e 70, e tudo isso só reforçou a vontade de fazer filmes. Voltei para o Brasil no final de 70. Foi o perído em que escrevi teatro e comecei na poesia, retardatariamente. Em 69, escrevi duas novelas, cujos títulos sobreviveram, Como visões de Artur e O mantenedor de visibilidades, resgatados como títulos de livros atribuídos a Mauro Portela e a Lúcio Graumann, respectivamente, neste romance que acabo de publicar.

• O que te levou de volta à ficção?
Isso é uma coisa um tanto misteriosa. Eu voltei para a ficção como se fosse um vomitório… Em meados de 95, após décadas de poesia e cinema, senti a absoluta necessidade de voltar a escrever ficção, como alguma coisa que eu precisasse expelir, purgar, talvez mesmo “exorcizar” pela escrita. Caminhei desconfiadamente para o micro, a fim de começar a primeira narrativa (que viria a ser o Aspades, editado em Portugal em 1997), mas me animei logo que senti ter garrando em alguma coisa, nas primeiras páginas “vomitadas” (perdoem o mau gosto) como se toda a minha vida houvesse se encaminhado para o ato de começar aquele livro. Desde então, ainda não parei: foram cinco livros em cinco anos (três pela Record e dois pela Globo), embora as “desconfianças” básicas tenham se mantido.

• Quais são essas desconfianças?
Desconfiança para com o artifício da arte em si. É um traço que eu sempre demonstrei, talvez desde o início. Primeiro, foi a desconfiança da poesia (típica do apreciador da objetividade da ficção). Mas, para além de qualquer desconfiança instintiva, no caso da poesia, acima de tudo, é que eu simplesmente não a conhecia como deveria conhecer… o que só veio a acontecer depois de aderir ao gosto recifense pela expressão poética (muito mais do que pela ficção) e passar anos escrevendo e publicando só poesia (ganhei até um prêmio nacional, da UBE/Rio). Mas eu gostaria de me referir precisamente às desconfianças que subsistem — e que são as do homem mais maduro, que desconfia da literatura em geral. Na verdade, acho saudável que desconfiemos dela, dos seus modelos, dos seus patterns forjados ao longo dos anos. O edifício da cultura está cheio deles, a literatura está lá encastelada — onde é muito difícil a gente acrescentar um tijolinho sequer. No entanto, isso não deve inibir ninguém. A existência desse imponente edifício cultural, isto é, a consciência dele talvez até reforce a necessidade daquela “ignorância” essencial, com a qual se trabalha, no escuro, e que é imprescindível para avançar e manter a capacidade inventiva, ou pelo menos a imaginação poluída o menos possível pelas “literaturas” incrustadas na mente.

• A sua literatura põe em questão o papel do autor: o que leva uma pessoa a dizer que quer ser escritor, ficcionista e começar a escrever um romance.
Pois é. Acho uma grande responsabilidade isso, de dizer: “ei, eu tenho algo para lhe contar etc”. Minha tendência é ficar do lado do leitor, avisando-o sobre o engodo e os truques da ficção, pelo menos. Pode até se dizer que as minhas narrativas sejam — ou tentem ser — um desmonte disso, porque eu uso a técnica do afastamento, brechtiana, de “distanciar” para avisar sobre o encantamento ilusionista. A literatura, repita-se sempre, é um truque.

• E isso está no mercado. Você consegue ver como há discípulos de tal tendência. Dá para você fazer como se fosse a tua especialidade.
E um pouco mais do que isso, também. Eu chego a ter um certo pudor de começar a narrar, no sentido puramente romanesco, de alguma situação que possa se tornar inverossímil. Há, em mim, uma rejeição do puramente ficcional, como se eu procurasse a autenticação pela simples medida do não-acontecimento, do anticlímax. Não acho que seja à toa que está se lendo tanta biografia, tanta literatura factual — em busca do mesmo selo de “autenticidade” (que nem sempre se encontra, é claro, onde há “recriações”, duvidosas, dos fatos chamados de “verídicos”). Tudo, enfim, é texto — ou tudo se torna escrita, e eu pretendo continuar a escrever sobre a escrita, de certo modo, de trás daquele pano de cenário montado para o efeito do ilusionismo.

• Eu anotei um comentário do Fabrício Carpinejar e ele diz que parece que em seus livros existe um grande desgosto com os rumos da ficção brasileira contemporânea. Está certo isso?
Nós estamos com uma porção de falsos romancistas em ação, escrevendo sobre bagatelas e expondo vazio de imaginação e pensamento no lugar do mínimo mundo interior a apresentar, imprescindivelmente, por quem se diz escritor. Não é sem razão que, de uns tempos para cá,. apareceram os editores com idéias para serem desenvolvidas por tais escritores, em livros de encomenda e nas famigeradas “coleções temáticas” que vão preenchendo, com as novas necessidades de mercado, o lugar vago onde textos verdadeiros deveriam estar emergindo do fundo das consciências.

• Esse interesse pela biografia, pelo factual, fez bem ou fez mal?
Eu acho que fez bem, de certa maneira, ao menos por sinalizar sobre o cansaço do público que está procurando a “realidade real”, no que lê. Quando você não oferece uma boa fabulação, legítima, ao leitor, ele percebe o engodo, rejeita e vai procurar aquilo que o atenda em outro lugar.

Mas a biografia retoma os procedimentos do século 19: aquela coisa do inicio, meio e fim.
No mundo inteiro, a literatura parece não estar conseguindo mais manter o interesse do leitor e, então, apela para tudo. E há também o risco de ler literatura escrita para trás e não para a frente. Será que não estamos, todos, escrevendo para o passado, ignorando as pulsões daquilo que vem ainda? A crise da leitura é, talvez, uma crise de modelos — e não somente do “motor interno da atenção”, em nosso tempo. Os leitores estão treinados pelo cinema (mais ou menos no sentido daquelas seis propostas de Ítalo Calvino para este milênio), e ninguém pode esperar que eles mantenham um gosto pelo “dejà-vu”, pelo que já foi escrito e lido à maneira de outra época…

• Há também o jornalismo que resolveu, nas últimas décadas, que o correto era competir com a televisão e aí resultou nesse jornalismo sintético que só repete o que a televisão deu no dia anterior? Não estaria a literatura querendo competir com o cinema holywoodiano?
Provavelmente está, mas o caso me parece pior do que isso, e ninguém está tentando ir pelo caminho mais certo, que pode ser uma “terceira via” e um processo que reconheça as mudanças dos modos de recepção da literatura, sem querer no entanto fazer a imitação (aliás, impossível) do filme, de fora para dentro. Quanto à televisão, ela simplesmente já se apropriou de todas as seduções (e reduções) da narrativa, assim como agora parte para o imediatismo. A televisão não tem alma. É uma torneira despejando imagens cujo fluxo e intenções é apenas para se perder na semana seguinte.

• Tem muito roteirista de televisão escrevendo romance…
E da forma mais barata possível. Em consequência, eles terão os leitores que merecem, claro (e seus livros serão descartados como o guias da programação de TV, que ninguém guarda). O que essas pessoas — apressadas — procuram mais do que apressadamente é oferecer o produto de consumo mais rápido, a fim de embolsar grana e manter um certo padrão de vida. Não estão interessados em literatura como via de conhecimento, dilatação da consciência, nada disso. São literatos escrevendo para leitores de revista.

• A tua literatura é também uma reflexão sobre a verdade. Tem todo um jogo de acerto e erro, de mostrar e esconder, sobre as várias verdades. Isso é uma coisa muito contemporânea. A gente vive num momento em que as verdades são muito relativizadas, ou muito fanatizadas.
Isso se encaixa naquela tema da “desconfiança”. A desconfiança do simulacro da literatura, do conteúdo das várias versões da “verdade” (como em A cabeça no fundo do entulho), no meio da fragmentação de tudo — e, pior, do fragmento do fragmento, que é o material com que estamos tendo de trabalhar, no tecido do mundo contemporâneo e virtual, como um vitral partido. O “texto” desse mundo confunde a experiência e até a memória: você nem sabe se viveu determinada coisa ou se aquilo não será parte de algum filme escondido num canto da mente ? Acho que há aí qualquer coisa para se trabalhar em termos de temas — e formas — rigorosamente contemporâneos.

• Essa conversa que você está tendo aqui é uma conversa que você tem com outros escritores? Ou há dificuldades para esse tipo de diálogo?
Tenho total dificuldade, porque sei que as pessoas, em geral, não se mostram atentas para essa espécie de “pós-tudo”, digamos. E há mais uma coisa, um fator complicador da arte em nosso tempo: radicalizando um pouco mais, eu diria que já não é suficiente você escrever um livro, produzir uma peça teatral, fazer um filme. Não é mais o bastante, isso, mesmo que sejam bem vistos, bem “distribuídos” e coisa e tal — porque a questão também não é só a do alcance mecânico das coisas, agora). Trata-se, muito mais, de produzir significação, para além dos artefatos (livro, peça, filme) produzidos. É essa significação que vai garantir o interesse e validar uma arte nova que se anuncia e o mercado não está deixando que se perceba no fundo do túnel…

• O final do século 20 criou muito o personagem escritor: um sujeito que acha que basta ter publicado algum livro para assumir a postura de escritor. Muitas pessoas param nesse personagem e se esquecem do escritor. Pouca gente pensa nisso, não é?
Pouquíssima. Essa “tara” é própria de um tempo em que parecer é mais importante do que ser. Mais ainda: parecer é mais útil do que ser, porque não traz o compromisso nem as angústias de ser. Esse é um dos temas “ocultos” do Graumann, conforme você já observou, sobre o livro. O “Nobel” brasileiro demora (umas 40 páginas) a aparecer, mas quando afinal o leitor entra em contato diretamente com ele, Graumann torna patente o anticlímax da figura de um escritor desinteressado da literatura… E isso é o contrário do signo do nosso tempo cultural (não apenas pelo motivo físico, de doença etc). Além dessa coisa de ter que produzir — também — significação, não esqueçamos de que vale igualmente transformar, ou tentar transformar, a vida numa forma de arte, porque ela é tão, ou mais, importante do que a literatura (e isso eu acho que é outro tema posto por esse livro cuja aceitação está me surpreendendo).

• Fica muita gente escrevendo para crítica, escrevendo para os editores — para ter editor. Eu gostaria que você falasse da sua relação com os editores. Porque existe isso, agora, os editores querendo ser escritores, quase criando um personagem.
Essa é uma doença nova, que eu acho que vai fazer muito mal à nossa cultura literária, à médio prazo. Volto a dizer que um escritor só se define pelo seu mundo interior — que é nossa única certeza e especificidade. Dependemos dele para tentar produzir significações novas, que estão ainda nas dobras do futuro. Essas são as verdades que a gente escreve para prospectar, porta adentro de percepções modificadas. E o resto é perfumaria.

• Essa postura da interiorização está um pouco abalada. Um exemplo é o pedido cada vez mais freqüente pra os escritores escreverem um livro infantil.
E não só aqui no Brasil. No avião para cá, vim lendo a biografia do Steinbeck e mais uma vez fiquei admirado da perfeito conhecimento, pelo escritor, dos seus limites e capacidades. Isso lhe permitia saber a medida exata do quanto acertara num livro, mesmo em vista de alguma crítica arrasadora. Havia uma espécie de compromisso dos escritores daquela geração, consigo mesmos, com os seus temas. Por outro lado, havia uma crítica atenta, afinada (ou desafinada) com eles, enquanto liam os seus livros e peças de teatro. As obras de Steinbeck, Faulkner, Fitzgerald, Thomas Wolfe e outros eram respostas efetivas a um modo de ser e ver, na América. Hoje, com a televisão, o norte-americano — como o brasileiro — não tem nenhuma preocupação com isso, e a vida expressa nos livros corre meio por fora, como parte de percepções perdidas. É um círculo vicioso: o espaço para elas é reduzido porque as pessoas não estão mais lendo o que não mais aparece porque os espaços são limitados… Faz tão pouco tempo (Steinbeck morreu em 1968!), o horizonte existencial não estava estreitado pelo fascismo da sociedade de consumo de massa — conforme denuncia Pasolini — e a liberdade de cada um podia ainda conectar com as formas artísticas encontradas fora das leis de mercado.

• Até que ponto a TV e as carências do ensino público contribuíram para destruir a cultura e a identidade do povo brasileiro?
Esses dois fatores foram preponderantes. Nós tivemos uma reforma educacional catastrófica, de acordo com a ditadura, coincidindo com o fortalecimento das redes de TV. Isso é o que forma (ou deforma) o quadro de agora, mas eu não sou apocalíptico com relação à saídas. Acho que o Brasil tem desenvolvido ultimamente alguns mecanismos de intervenção importantes (como as ONGs) e há meios de despertar a consciência da cidadania etc. O país cresceu, de alguma forma se modernizou, e com isso veio a imprensa que tem problemas, mas que surge com algumas novidades alternativas, em gama variada, do político ao cultural. Uma revista como a Bravo! denota possibilidades mais sofisticadas de consumo, num país mudado, e todo esse crescimento não deixa de implicar em alcances maiores e em maior capacidade de discussão. Ainda estamos no tempo de ajustar as coisas, educando sob nova perspectiva e tentando formar novos consumidores de cultura (detesto a palavra, mas vá lá) e tudo o mais. O momento exige extrema vigilância, e uma forte consciência crítica. E tenho também a impressão de que a gente precisa ser um pouco mais “malcriado”. A cultura do brasileiro é a cultura do compromisso agenciado pelo “homem cordial”, na definição de Sérgio Buarque. É aquela coisa levada como comédia do político mineiro, dos acordos da política “café-com-leite” ou de tudo acabar em pizza. Um pouco mais de ira e de coragem poderiam varrer a praga dos elogios mútuos e desse primitivismo que vê a crítica como mero ataque. Talvez devêssemos treinar aquela capacidade italiana de discutir de uma forma apaixonada, mas não pessoal. A gente precisa elevar o patamar da discussão e ser muito franco com relação a dizer aquilo em que acredita. Eu faço isso em Pernambuco, mas a franqueza sempre desagrada e — pelos jornais, principalmente — termina conquistando antipatias e inimizades.

• Quando você escreve sobre algum lugar, precisa, necessariamente ter estado lá?
Eu tento fazer uma ficção que chamo de alucinantemente real. Às vezes penso que não deveria oferecer nem sequer essa pista — porque tenho notado que quando você dá uma resposta, numa entrevista, aquela resposta contamina a percepção de alguém e, então, o que você escreveu vira aquilo que você respondeu. Em todo caso, vamos lá: uma das expressões que eu tenho usado com frequência é essa da “ficção alucinantemente real”, porque você vai ver que tenta ser, às vezes, até em “tempo real”, ou faz uma tentativa de uso do tempo cinematográfico. Eu escrevo com muito detalhe, como se a cena fosse cercada de câmeras, mas, de alguma forma, isso não “pesa” na minha escrita. O detalhe funciona como uma aproximação de lente … e daí que, nesse processo de

verossimilhança, eu realmente prefira não descrever uma cidade, um ambiente que eu não conheça. Afora isso, tento colocar o leitor dentro da narrativa como se diante de um filme — porque, repito, o leitor de hoje é um espectador de cinema, essencialmente. O cinema teve uma presença muito forte, no século 20, que a literatura ainda não refletiu como deveria. Logo no início ele se ligou ao teatro, mas se modernizou por meio das vanguardas artísticas e agora se inverteu a situação: o cinema já pode ensinar o seu “olhar” à literatura. Nesse romance que saiu em Portugal (Aspades, ETs, etc.), eu invento a biografia fictícia, mas alucinantemente real, de um cineasta português. Tive de criar a filmografia completa dele, a sua biografia dele, vida pessoal etc, como se fosse um falso ensaio biográfico sobre um cineasta de carne e osso, célebre e discutido (no limite da divulgação da obra de um cineasta português). Mesmo aí, nesse simulacro que o Aspades tenta, abro lacunas e nelas o leitor encontra liberdade para remontar a narrativa…

• Você falou da tua sensação de que tudo já foi feito na ficção. Para continuar usando a sua imagem do prédio da cultura, da literatura, você consegue identificar o momento, na ficção brasileira e mundial, em que foram colocados os últimos tijolos desse edifício?
Eu acho que sim. Na ficção, acho que Joyce fez rolar a sua pedra de Sísifo até o cimo da desordem, e a poesia ainda há pouco tempo estava chegando ao último dos radicalismos, próximo das artes visuais (o que a devolve ao código ideogramático, de novo). Seja como for, o ponto de ruptura ainda não significou a ruptura total. O romance — que é um gênero recente, do começo do século 19 — se desenvolveu muito no século que passou, mas ainda não está esgotado em todas as suas possibilidades narrativas.

• Na literatura brasileira você vê essa marca?
A literatura brasileira tem o magnífico “problema” de Machado de Assis, porque ele é moderno demais! É como se Machado tivesse fundado e exaurido a nossa literatura. Depois de Machado, há Euclides da Cunha e Raul Pompéia — no campo inicial de expansão do romance —, e Dionélio Machado, Cornélio Penna,

Graciliano, Lúcio Cardoso, Guimarães Rosa e Clarice numa segunda voltagem de

criação própria que nada tem a ver com o romance considerado típico da América Latina (Jorge Amado seria nosso representante para isso). Esse quadro se mantém até o final da década de 60, e depois só apareceram o ótimo João Antonio, alguns bons contistas e, ultimamente, a literatura de enganação dos “influenciados” de Rubem Fonseca… com o que então chegamos à temperatura extremamente baixa de agora. Muito se esperava de um Caio Fernando Abreu, mas ele não teve tempo de realizar a sua obra. Neste momento, parece-me que estamos em plena safra do “morno” que tenta ser do agrado dos editores, antes que dos leitores (o que me parece um enorme erro).

• Fale um pouco do teatro.
A minha relação com o teatro foi concomitante com o cinema. Escrevi uma peça chamada O rei póstumo, que ganhou o prêmio Othon Bezerra de Mello. Nunca foi encenada, mas foi publicada — e com estudos de cena e vestuário de Alberto Cavalcanti. Então, a minha experiência com o teatro foi como autor dessa peça e de uma outra, não terminada. Depois dessas tentativas foi que percebi que o teatro tem toda uma marcenaria sua própria, que exige mais do que bom texto ou intimidade com a câmera.

• Normalmente existe uma série de escritores que trabalham o primeiro texto por meio de uma escrita quase automática. Eles tentam esgotar a história, seguem a historia independentemente de fazer correções. Após terem chegado a um termo, a partir daí, eles passam a fazer o processo de reescrita, processo de lapidação do texto. Qual é o processo que você faz? Ou não existe uma especificidade?
Meu processo é mais ou menos de “jato”. O livro jorra de uma fonte única, geralmente. É claro que eu faço uma revisão, mas o livro vai saindo daquela forma “sem forma” que eu já tentei descrever antes, e que é cheia de surpresas para mim. Não chega a ser um trabalho penoso, mas me angustia um bocado escrever e revisar um romance. No caso do Aspades, as pessoas até duvidam que eu tenha levado um ano com obra que parece extremamente elaborada ou “pesquisada”, como alguns dizem. Mas, esse livro veio de jato e assim foi escrito.

• Você trabalha os períodos e faz a correção das idéias?
Não. Interessa-me o elemento “sujo” (como o cabo, o microfone que você vê na na televisão). É para deixar aparecer a parte de trás do estúdio, levaram um tempo imenso para perceber isso que já era ensinado por Renato May, em Roma: tem que mostrar um pouco da cozinha suja quando você prepara um prato. A limpeza de sala de cirurgia só interessa às máfias de branco. Nos telejornais está na moda mostrar a imagem da redação…

• Isso está sendo incentivado pela CNN.
Só agora. Mas em 1969, era o que já ouvia em sala romana de aula. Lá também ouvi uma frase que não vou deixar de citar: “A televisão está mais próxima do aeroplano e da estrada de rodagem do que do cinema e do teatro” A captação perfeita da especificidade da TV.

• No seu caso, então, pelo modo que você apresenta o texto, essa escrita menos corrigida se aproxima mais de ter a comunicação direta com o leitor.
Meu compromisso é com o leitor, o que me interessa mesmo é seduzi-lo. Muito mais do que o crítico, o leitor é a minha razão de escrever.

• A inveja é um tema a respeito do qual o escritor tem uma dificuldade de falar, fale sobre isso um pouco.
Sem dúvida é um dos temas do livro (O grau Graumann), e que se faz presente por meio do narrador, Mauro Portela. A disputa, a inveja do prêmio, do bilhete sorteado e — principalmente — do talento parece um traço permanente do caráter nada “cordial” do verdadeiro homem brasileiro.

• Muitas vezes você atribuiu isso a um mercado muito estreito, mas não é só isso não.
Não. Em alguma altura, nós perdemos a capacidade de admirar e sou dos que acham que precisamos recuperá-la urgentemente. Necessitamos expandir o coração no sentido do encontro com o Outro, e não no sentido do “encontrão”…

• O leitor e a literatura.
Houve também a transformação do leitor — ou pelo menos se perdeu o contato com ele, no mundo pragmático (palavra elegante) em que estamos vivendo. Tudo que o leitor de agora está procurando é dar utilidade, função ao livro que está lendo: pode ser leitura de entretenimento, de utilidade (ou “auto-ajuda”) ou então factual, referente a algum acontecimento, mesmo que aquilo não tenha sido da experiência direta do autor. São essas as três modalidades que, basicamente, orienta a procura atual de livros, suponho. E nenhuma delas corresponde ao lugar da literatura que era antes procurada e que está, portanto, fora de lugar: a literatura que transforma interiormente as pessoas. Aliás, elas não estão inquietadas com nada, nem procurando as respostas capazes de transformá-las pela inquietação… mas estão — ou parecem estar — “tranquilas” a respeito das questões fundamentais, como Deus, a morte, o amor. Pelo contrário, estão nos fornecendo as pílulas de alguns conceitos baratos nos lugar das grandes questões e por isso todos parecem já estar entrando na vida com essas questões como que “resolvidas” e mais a certeza rasa das demais coisas a enfrentar (o vestibular, o emprego, o casamento e a cadeira de rodas). Na minha geração, por exemplo, eu próprio e muitos dos meus amigos se inquietavam a respeito de Deus, do problema religioso — que hoje é objeto do discurso abjeto das seitas televisivas.

• Mas o leitor que lia para se encontrar hoje lê um pouco para se esquecer, se distrair.
Hoje, ele nem quer se encontrar. Antes, busca se anestesiar, manter caladas as questões que julga ter ultrapassado. “Os homens morrem e não são felizes”. A frase é de Camus, em Calígula. Para ser feliz, tem-se que passar pelo sofrimento, no sentido de provação. Isso leva a amar de forma mais generosa, a descobrir o outro, até estarmos prontos para amá-lo. Não adianta estar amando a si próprio no outro, porque daí o egoísmo faz uma base segura para minar as frágeis relações apoiadas, o tempo todo, unicamente no amor-próprio.

• Você quer ser feliz e tem que saber que o sofrimento vem junto. Vive-se num mundo paradoxal.
O mistério do outro é um dos assuntos da grande literatura. Eu até penso que o romance vazado nisso, na tentativa de escrever uma grande paixão não é mais compreendido. As relações são frágeis e passageiras, porque refletem essa busca alucinada de bem-estar, de felicidade pessoal e exclusiva. Nós estamos cada vez mais doentes, porque a nossa civilização perdeu conteúdo, está exausta. O prestígio da literatura esotérica reflete isso, em parte: as pessoas estão angustiadas, sem saber exatamente o que as angustia. E estão procurando nos lugares errados, após perder o sentido da busca como está descrita — mesmo que superficialmente — num romance como O fio de navalha, de Maugham. Pode-se começar por ele, e daí partir para A montanha mágica e outras obras mais profundas. Enfim, a literatura (que dilata a consciência) ainda pode voltar a ter respostas ou a indicar algumas saídas…

• Você vê na internet um novo meio para bagunçar um pouco os padrões da literatura?
Eu acho que sim. Ela vai transformar, a longo prazo, alguma coisa. Não vai ficar somente nessa ferramenta de agora. Não dá ainda para compreender como sucederá a sua “revolução” mais profunda, mas já dá para perceber que será no sentido da aproximação vertical, da simultaneidade de tudo. A idéia da rede mundial, acima de muitos poderes, permanece temerária e atrativa. Qualquer diagnóstico sobre a internet, entretanto, seria precipitado, neste momento — mas eu arrisco dizer que ela caminha no mesmo sentido de uma nova sensibilidade que talvez esteja se formando. Talvez cheguemos a uma Renascença nova, por via não só da internet mas de outras conquistas da tecnologia que ou serve ao homem ou não serve para nada (e, aí, serve para a destruição)…

LEIA RESENHA DE O GRAU GRAUMANN

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho