Talvez em outro país, Diário do farol seja um bom livro. Quem sabe numa outra língua, numa outra época. Por ora, contudo, falamos de literatura brasileira no início do século 21. E, sobre esta ótica, o livro não passa da mais sub das subliteraturas. É simplesmente primário — e um adendo negativo na carreira de bons livros de João Ubaldo Ribeiro.
Tenho de dizer, antes de qualquer coisa, que o escritor baiano muito me agrada com sua imagem de homem despojado das formalidades literárias, usando aquelas sandálias de couro enquanto fala de suas influências com repórteres em minissaias e perguntas inteligentíssimas. João Ubaldo é, inegavelmente, um homem inteligente; prova disso são seus romances Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro — meu preferido. De uns tempos para cá, contudo, sua literatura vem numa curva decadente de dar dó. Talvez seja por motivos contratuais, que o obrigam a escrever um livro atrás do outro, sem se preocupar com a qualidade; talvez seja só por vaidade mesmo; talvez seja por influência dos bolinhos da Academia Brasileira de Letras, da qual João Ubaldo faz parte. Seja qual for o motivo, o certo é que uma leitura rápida em Diário do farol é suficiente para se desconfiar de qualquer futuro lançamento com a marca do escritor baiano.
O livro conta a historieta de um clérigo amoral. E isso é tudo o que há para se dizer sobre o argumento de João Ubaldo. A amoralidade deixou de ser algo interessante há muito tempo, por qualquer pessoa que tenha lido dois livros na vida que não best sellers de detetive. Em verdade, todo e qualquer grande personagem é amoral. É assim com Bentinho, por exemplo, que dá de ombros para a morte daquele que ele julga não ser seu filho, e sim o produto da infidelidade de Capitu. Também é amoral Brás Cubas, que dedica suas memórias aos vermes. A amoralidade do padre de Diário…, contudo, é algo pasteurizado: assassinatos, mentiras, trapaças, chantagens, e por aí vai. Neste sentido, o livro lembra outro diário, o Diário dos budas ditosos, escrito para a coleção Plenos Pecados, da Editora Objetiva. Neste, uma narradora conta suas memórias sexuais também de forma pasteurizada, numa narrativa cheia de lugares-comuns da literatura erótica feminina, só que escrita — e mal — por um homem.
Uma amiga me chama a atenção para o aspecto ético do livro de João Ubaldo. De acordo com este raciocínio, a amoralidade do personagem central se assemelharia a obras como as de Céline ou da cineasta Reinfensthal, ou seja, está a serviço do Mal. Hummm. Chegar a esta conclusão depois de atravessar a duras penas as 300 páginas de Diário do farol é conferir-lhe uma importância descabida. Ele entra somente na categoria das narrativas que se pretendem a chocantes, sem ser. Ou melhor, pode até chocar certo tipo de leitor recalcado, dono de possíveis virtudes católicas. A mim, confesso, apenas entedia.
Como me entedia também a mesmice da crítica literária brasileira. Leio com muita atenção o artigo de Miguel Sanches Neto na última edição deste Rascunho, em que ele diferencia o crítico literário d’antanho (gente que escreve coisas como “d’antanho”) do resenhista e do crítico universitário (um calafrio percorre meu corpo quando penso neste tipo de gente). Segundo Miguel Sanches Neto, o resenhista seria um profissional a serviço de si mesmo, de um grupo a que ele é simpático ou de uma editora específica. Só mesmo tendo conhecimento deste cenário de mercantilização da opinião é que se pode entender por que a maior parte do que se escreveu sobre este romance é elogiosa.
Os resenhistas, em grande parte, citaram, para alavancar as vendas de João Ubaldo Ribeiro, Hamlet. O príncipe dinamarquês criado por Shakespeare é um álibi e tanto para qualquer obra medíocre. Tanto quanto Édipo Rei, de Sófocles, usando às fartas quando se quer escrever sobre uma obra psicológica, e quanto Ulisses, de James Joyce, usado como justificativa para qualquer besteira não-linear publicada por aí. Sobre estes três pilares (sim, é triste dizer, mas Joyce é um pilar), é possível sustentar qualquer coisa, desde a mais primária das literaturas até o mais simplório dos romances amorais, como Diário do farol.
O drama shakespeariano é evocado porque o protagonista tem a mãe morta logo no início do romance, para que seu pai (o dele) casasse com uma tia. A partir deste episódio, assim jogado de graça ao leitor, talvez para que ele se considere uma pessoa culta e, numa roda de amigos, observe, com ares superiores, que “o novo livro do João Ubaldo tem um quê de Shakespeare, lembra muito Hamlet”, a partir deste episódio o padreco-hamletiano começa sua vida de crimes e de pensamentos, como direi?, diabólicos. Sua vida, apesar de um aparente escudo psicológico sustentado na maldade inata, é um tormento até que mamãe, do além, começa a ter conversas com ele, e a orientá-lo em sua vingança.
Como se trata de João Ubaldo Ribeiro, os resenhistas falam em influência de Shakespeare; fosse outro autor menos reconhecido, diriam que era simples plágio.
Insisto, sou persistente. Espremo o livro de um lado para o outro, na tentativa de tirar alguma coisa de boa dele, mas não encontro qualquer coisa de boa. Nada de original, nada de interessante. Na linguagem, o livro é burocrático, e repete A casa dos budas ditosos. A opção pela narrativa em primeira pessoa se deu, certamente, antes pela facilidade que ela oferece, com o velho e bom clichê do autor-ator, que se veste do personagem para narrar seus pensamentos em pormenores. Nem o humor de João Ubaldo Ribeiro, presente sobretudo em suas crônicas e também na sua obra-prima Viva o povo brasileiro, aparece. Embruteceu o autor? Largou as sandálias? Preferiu ele a pompa do fardão da Academia? Não há, ainda, nem sombra daquele barroquismo delicioso, verborrágico, presente também em Viva… Não há nada.
Engano-me. Há, sim, uma verdadeira obra-prima escondida em Diário do farol. É possível, é provável, é quase certo que ninguém o notou até agora. Uma obra de ficção das mais importantes publicadas no Brasil este ano, tanto pelo seu humor, quanto pelo seu conteúdo falacioso. E ainda por cima apócrifo. Falo do texto da orelha do romance. Claro que uma orelha não poderia falar mal do livro, afinal, é por ela que muitos (a maioria?) dos leitores escolhe o que vai ler antes de dormir. Querer uma orelha realmente honesta, portanto, seria um disparate de minha parte. A deste Diário do farol, contudo, não só fala bem do livro como o exalta a ponto de fazer com que eu titubeasse e até cogitasse uma segunda leitura, para descobrir, ato contínuo, que estava sendo enganado por uma genial peça publicitária.
Segundo a orelha, o livro (certamente um completamente diferente daquele que li) poderia “ser tido (sic) como fundador (grifo meu), da mesma forma que Viva o povo brasileiro inaugurou todo um ciclo de livros voltados para a nossa identidade e nossa história comum”. Em seguida, a orelha me grita que “trata-se do primeiro romance maior da literatura brasileira vinculado irrestritamente à descrição e contemplação do mal”. Segundo esta orelha que deveria ser imortalizada em mármore, o romance contaria com “ousadias narrativas somente possíveis para quem domina todos os recursos conquistados pelo romance contemporâneo, a partir de Joyce”. Agora, a parte mais engraçada: “É sempre uma satisfação para os editores mostrar que, em muitos sentidos, estão acima dos condicionamentos meramente comerciais. O verdadeiro editor é bem mais que isso. É uma figura comprometida com a vida da nação a que serve, é alguém preocupado com nosso destino coletivo, com nosso autoconhecimento. (…) A literatura brasileira permanece como força irresistível que há de perenizar-se através de obras como esta”.
A partir disso, deduzo que nossos editores são santos, empresários probos, dispostos a levar um bom prejuízo em nome desta abstração chamada arte. Deduzo ainda que qualquer escritor medíocre pode escrever qualquer besteira sob o argumento inteligentíssimo do “minha obra faz pensar”, que ainda assim vai conseguir publicá-la graças à benevolência destes editores bonzinhos, comprometidos com a vida da nação (!), com nosso destino coletivo (o meu não!) e com nosso autoconhecimento (!).
Ah, e se a literatura brasileira permanece mesmo irresistível por conta de livros como este Diário do farol, que desastre!