Poucos dias depois da publicação de Os prazeres e os dias, primeiro livro de Marcel Proust, um crítico cujo nome não me ocorre agora publicou um artigo enfurecido, detratando tanto o autor quanto a obra, segundo ele fruto de divagações narcisistas e impertinências juvenis. Proust não pensou duas vezes: convocou-o para um duelo de pistolas. Ambos saíram ilesos desse curioso corpo-a-corpo intelectual, ou, pelo que consta e pelo que o folclore reitera, apenas com ferimentos leves. O fato é que a aparente idiossincrasia desse episódio, a beirar o cômico, nos dá pistas sobre um tempo e um conjunto de valores que definitivamente não existem mais, e talvez possa ser visto como o último suspiro da ordem aristocrática, em que a honra privada e a sua representação pública eram uma coisa só. Isso vem de longe, pelo que eu saiba. Em 1613, quando as Soledades de Gôngora começam a circular nas cortes e por intermédio de seu amigo Pedro de Cárdenas chegaram enfim à corte de Madrid, a resposta, embora não tenha envolvido armas e tenha se resignado à artilharia verbal, não foi menos agressiva. Em questão de uma semana chegava às mãos do Homero espanhol uma carta-panfleto assinada pelo pintor e poeta Juan de Jáuregui, intitulada Antídoto contra a pestilente poesia das Soledades, cujo intuito, segundo o autor, era, muito benignamente, salvar o destinatário de si mesmo. E não foi a única; logo se seguiram várias farpas, entre as quais uma carta extremamente ofensiva de Lope de Vega, oculto sob a aparência inócua do anonimato, e que levou o cordobês a vituperá-lo com a famosa afirmação, hoje patrimônio do anedotário popular, que não era dado a ele, Gôngora, atirar pérolas — seus poemas — a porcos — seus detratores. Isso gerou nos nossos dias uma confusão grosseira e muito preconceito injustificável no que se refere a esses autores, sobretudo Gôngora, e serviu de pretexto a toda uma fauna de críticos politicamente corretos para justificar o olhar ressabiado que lançam a uma época, como se quisessem a qualquer custo que ela fosse democrática e liberal, ou seja, como se quisessem que ela fosse um espelho deles próprios.
O mundo dos duelos felizmente acabou, e se vez ou outra sentimos saudades de umas boas farpas na atual circulação intelectual, à exceção de algumas iniciativas louváveis feita de concessões, resenhas inofensivas e tapinhas nas costas, é porque o mundo hoje parece regrado pela mesma correção política desses sujeitos que instituíram uma idéia de civilidade que muitas vezes se assemelha a um torpor amorfo no qual todos mantêm a compostura, e, assim como o João-bobo, voltam sempre ao seu centro e estão sempre sorrindo. Hoje somos todos sensatos e bem educados, e se não me engano li certa vez no Hamlet que a sensatez não produz nada além de covardes. O fato é que junto com esse mundo perdemos também coisas fundamentais. No tipo de vida que a maioria de nós levamos, envolvidos pela rapidez da informação que fratura o tempo e o transforma em uma entidade descontínua, talvez estejamos perdendo a capacidade de explorar certas zonas muito ricas da nossa percepção, e não possamos mais reconhecer certos registros da realidade que não estejam dispostos segundo esses padrões cristalizados que os meios de comunicação despejam sobre milhões de pessoas, domesticando seu senso de aesthesis, que em grego significa estética mas é também curiosamente um sinônimo de conhecimento, com toda sorte de fórmulas e arranjos pueris. Não creio que a tendência seja reversiva, e não é à toa que Italo Calvino coloca a velocidade entre uma das suas seis propostas para o próximo milênio. Em busca do tempo perdido trata exatamente do seu avesso, dessa experiência qualitativa do tempo que conduz mais à epifania que à euforia, esse estado de espírito que parece armazenar em si a essência filosófica da burrice transcendental sobre a qual chafurda a sociedade do espetáculo.
Nas duas primeiras décadas do século 20, Wagner não era apenas um compositor, mas um mito que pairava sobre todos aqueles que viam a grande obra ao mesmo tempo como objetivo e como corolário que desse sentido, ainda que artificial, a uma vida que cada vez mais trocava a transcendência pelo valor corriqueiro da experiência fátua e imediata., divididos como o flaneaur de Baudelaire entre a coroa de louros e os trilhos do bonde. A interpretação compositiva e simbólica que Walter Pater fazia de Leonardo estava viva no espírito de W. B. Yeats, e os estetas que freqüentavam o Rhymer’s Club, entre eles Oscar Wilde e Madox Ford, levavam adiante o imperativo de transformar a vida em uma grande e bela mentira, elegendo a artificialidade que todo objeto artístico traz em si como um critério ético, meio pagão e meio hedonista, que os instigasse a cuspir com todo charme e sem nenhuma culpa na boa moral burguesa e na hipocrisia. Muitos seguiram o caminho do misticismo fin de siécle, bebendo em Madame Blavatsky, no ocultismo de Eliphas Lévy, autor de cabeceira de Mallarmé, ou até mesmo nas ordens secretas (James Joyce foi adepto da Golden Dawn) aquela atitude de refusé, de recusa, da qual nos fala Valéry, como única maneira de preservar o Espírito e a liberdade de criação à revelia das trocas simbólicas feitas de moedas correntes e gastas e dessas entidades cretinas que hoje em dia se chamam mercado e público. Hugo von Hoffmansthal fará da recuperação do drama barroco vienense e espanhol o seu carro-chefe contra essa aparente perda da aurea mundi, e Ezra Pound sonhará mais tarde com o grande império cathay guiado pelas mãos duras de um Confúcio moderno — sonho que logo se tornará um pesadelo animado pela figura caricata de Mussolini.
No que pese o conteúdo político ambíguo e as aparentes contradições dessas gerações dilaceradas pela entrada em um novo estado de coisas que não pode ser sustentado por uma nostalgia poética — a política e a poesia, ao contrário do que se crê, sempre foram inimigas —, é sobre esse esteio de idéias que Proust vai compor seu romance. É certo que irá trocar os fundamentos místicos pelas teorias de Bergson, e é a concepção de durée do grande filósofo francês que dará ensejo a toda a estrutura formal e temática da Busca… O episódio das madeleines é apenas um em meio a dezenas de importância equivalente espalhados pela obra, e chega a enervar a freqüência com que os críticos insistem nele, pois nos dá a má impressão de que eles só leram as cinqüenta primeiras páginas. Nos matizes de azul que o narrador Marcel, embriagado, descobre na cortina do trem que o leva ao balneário de Balbec, a encontro do amigo Saint-Loup, e na massa de meninas que se contrai e distende como um único corpo amorfo se movendo nas praias desse vilarejo; nas linhas que redefinem a catedral, ao longe, enquanto atravessa Paris em uma carruagem; no rosto andrógino de Odette de Crécy pintado por Elstir; no salão de jantar de um hotel praiano onde as pessoas tomam formas e tiques de moluscos; no inferno do sexo que não se define e que se concentra na sodoma e gomorra de Charlus e Jupien: todos esses episódios compõem um quadro onde a intervenção do tempo e da duração leva o pincel a escorregar além do necessário, e induz a nossa percepção, mais do que a definir o que dá vida às formas individuais, a dissolvê-las mentalmente, então fundidas pela continuidade de uma experiência do tempo que, tomada em si mesma, está mais próxima de uma unidade torrencial que sustenta os fenômenos do que dos fenômenos propriamente ditos. A base idealista dessa visão é evidente — e seu contraponto de decepção e a destruição que a realidade produz também. E são inúmeros os paraísos artificiais que Proust nos dá. Seja aquela duquesa de Guermantes tão idolatrada pelo narrador Marcel que, quando vista pela primeira vez frente a frente em um missa, o decepciona a ponto de achar seu rosto deformado e tosco, seja na enumeração infinita dos motivos que levou a fenecer o seu amor por Gilberte, seja na apresentação frustrante de Berna interpretando Fedra, há sempre uma premissa que se situa além das possibilidades e que, quando se depara com elas, se destrói. E é preciso que todos aqueles que o lêem prestem atenção no humour francês que está em jogo aí para que não durmam lá pelas primeiras páginas.
A arte não existe — só existem artistas. Acho essa afirmação de Gombrich muito inteligente. E reiteraria: a crítica não existe. Existem opiniões, que cada pessoa arranja da melhor forma possível. Talvez o único crítico seja o tempo, ele que seleciona e filtra as nossas opiniões e transforma as obras em outra coisa, em um misto de mito e de incompreensão que esconde o gesto original que as produziu, transferindo-as para uma outra dimensão distinta da que viviam quando surgiram. André Gide vetou a publicação da Busca pela Gallimard e Henry James disse que se tratava da obra de um megalomaníaco narcisista. E é impossível dizer que eles estejam errados, já que não há erro nesse jogo, mas é bem possível admirá-los, como é possível admirar Silvio Romero detratando Machado de Assis, pelo simples fato de serem homens do seu tempo que contribuíram para reforçar ou destruir alguns valores, sem o que não se produz nada. Vistas as coisas de hoje, podemos admirá-los ainda mais. A obra de Proust é uma catedral em meio a ruínas. Poucos entram nela, já que é do comércio de ruínas que se ganha a vida. Os tempos a partir do qual ela foi perfilada e que ela exige do leitor são o oposto simétrico do tempo em que vivem todos aqueles que querem fazer dinheiro, o que indica de antemão que a sua simples leitura já é uma atitude de resistência. O mundo de Proust não existe mais. Em um certo sentido, felizmente. Mas creio que seja urgente recuperar o que Proust fez do seu mundo, antes que acabemos nos perdendo de nós mesmos.