É estranho que o autor do conto O vôo das ovelhas seja o mesmo do conto As boas maneiras do acaso, que vêm um em seguida ao outro no livro Ovelhas que voam se perdem no céu. Ambos foram escritos por Daniel Pellizzari. A primeira história é de uma arquitetura primorosa. Um sujeito mata o pai e se protege da condenação sob a fachada de doente psiquiátrico em um hospital, tendo que enganar durante muitos anos os médicos e a própria mãe. A narrativa é entrecortada por pequenas cenas de personagens pinçados das ruas. A idéia de transformar essas pessoas em algum alimento ao final de cada cena é de grande inspiração. Soa bem esteticamente e, se alguém tiver essas taras, pode até mesmo fazer alguma análise psicológica ou sociológica da coisa, pensando em como a vida nas cidades é pasteurizante, como alguns tipos de comportamento, embora torturem o indivíduo e o levem a uma vida infeliz e chata, são bem aceitos na sociedade.
O conto — o termo é de exatidão duvidosa — que vem a seguir, o terceiro do livro, frustra as expectativas de quem acha que Ovelhas que voam se perdem no céu seguirá em um crescendo. As boas maneiras do acaso é simplesmente: “Sempre reclamava do barulho dos vizinhos./ Um dia foi reclamar do silêncio, mas eles tinham se mudado./ Nunca mais conseguiu dormir”. São conhecidas pelo menos duas anedotas infames com o mesmo tema, que, assim colocado no livro — um conto tão curto sempre causa algum impacto —, dá um ar de pretensão à coisa toda. Pretensão das mais ingênuas, é bem verdade. A partir daí, o leitor fica mais cauteloso. Nada contra contos curtos. Dalton Trevisan os faz. Mas, sem querer alongar muito a conversa, basta lê-los para ver a diferença.
Talvez esse seja o grande problema de Ovelhas…, de Pellizzari, e Dentes guardados, de Daniel Galera, ambos lançados pela editora Livros do Mal, uma cooperativa que, com recursos próprios e com alguma ajuda da Secretaria de Cultura de Porto Alegre, pretende colocar no mercado editorial algo novo além do que é empilhado anualmente nas prateleiras das livrarias pelas viciadas grandes editoras. Os dois também participaram de diversos projetos de literatura na internet, como o extinto Cardoso On Line, que através de e-mail chegava a milhares de pessoas com contos, críticas e outros escritos.
A questão é que os dois livros são bastante irregulares no que diz respeito à qualidade dos contos. Algumas das narrativas são boas e bem elaboradas. Outras têm uma boa sacada, mas carecem de elaboração. Outras, ainda, tem uma forma boa, porém a temática é dispensável. Há aquelas, que, no entanto, nem deveriam estar ali.
Pellizzari inicia Ovelhas… com o conto Teias. Nele, um personagem se relaciona de maneira estranha com os aracnídeos de sua casa. Vale como introdução ao mundo que o autor passará a apresentar a partir daí. Trata-se de outra narrativa curta, uma página apenas, em que ele nos passa aquela sensação da possibilidade de trair as próprias convicções, não com o flagelo da culpa, mas com a volúpia da liberdade. A literatura é um dos meios em que essa liberdade é possível. Talvez seja isso que ele queira dizer, além de, é claro, causar estranheza. Mas vale apenas, como já foi dito, como introdução. Isoladamente, Teias é fraco.
Essa capacidade de criar ou perceber situações de estranheza talvez seja a maior das habilidades de Pellizari. No entanto, a ausência de conflitos na maior parte dos seus contos talvez revele que o confronto esteja na verdade entre o texto e o leitor. Em Jardim de Infância ele mostra-se capaz de fotografar o bizarro no aparentemente banal: uma criança com uma fantasia de abelha sendo levada pela mãe para representar no teatrinho da escola. Mas trata-se simplesmente de uma narrativa — como se alguém tivesse filmado uma cena a esmo — e não ultrapassa esse limite. A não resolução do conto, antes de sugerir algo, acima de tudo chama o mero observador para ser isso mesmo, mero observador. O conflito é tão tênue que sobra espaço demais para ser preenchido pelo leitor. Esse espaço deve existir, como em toda boa história, mas nesse caso é tão grande que a idéia de preenchê-lo é pouco estimulante. O mesmo vale para, por exemplo, Felicidade talvez, Catuaba — esse tem algum bom humor —, A fronteira do fim do mundo, Eu, você e Paloma. Talvez o tédio aparente de alguns dos personagens desses contos, demonstre uma vontade do autor expressar a inadequação ao meio dos sujeitos, coisa que só foi conseguir com maior ênfase, porém, em Tango sobremesa.
Um dos bons momentos de Pellizzari é Missal para rastejantes, em que consegue, numa narrativa em primeira pessoa, quase um fluxo de pensamento, desenhar o ponto de virada em que alguém supera alguma situação atormentante e segue em frente na vida. Mais uma vez, apoiado no visco dos insetos, que com suas múltiplas patas servem bem de metáfora para o modo como uma situação pode açoitar um personagem. A culpa está no açucareiro como mil formigas, as saudades de alguém de pouco mérito está na gaveta, como centenas de baratas.
O estranhamento surge mais uma vez em contos como Gravidade. Coisas vão caindo em frente à janela de uma dona de casa comum. Primeiro gatos, depois vacas e depois velhas com sombrinhas. Há algo de literatura fantástica, mas não. Coisas estranhas acontecem, mas é isso mesmo: isso acontece. No final, voltamos à vida normal. Mesmo com a pilha de velhas espatifadas crescendo lá embaixo, voltamos a cozinhar. Isso acontece. Alguém assistiu à Magnólia, de Paul Thomas Anderson? O mesmo pode ser dito do conto História de amor nº 17. Nele ninguém diz que, no universo particular do conto, seja errado churrasquear bebês na história. O tema do conto não é um psicopata, ou outra balela que algum politicamente correto possa pensar, mas é sim sobre um carinho não correspondido a tão incomum gourmet. O tema aparente, na verdade, é uma casca dura, pontuda e esquisita para uma polpa mais delicada. Talvez, se Pellizzari ainda quiser publicar livros mais tarde, seja isso o que ele deva buscar em termos de unidade. Causa estranheza, como ele parece gostar, e é apenas uma narrativa, uma fotografia, uma crônica do impossível conformada em si, como ele parece saber fazer.
Merecem atenção também os contos Chamada a cobrar, Monga, Arnaldo e os moinhos e Um hamster. Todos, a sua maneira, falam de amores perdidos, daqueles que se pode reencontrar um dia ou, principalmente, não.
Dentes guardados — Um dos melhores contos de Dentes Guardados, de Daniel Galera, é Triângulo. São duas narrativas aparentemente separadas, mas que são uma história só, vista por personagens diferentes. Talvez Galera tenha ido um pouco além em seus esforços de fazer parecer que as histórias são isoladas, porque pelo menos um crítico chegou a pensar que realmente fossem. Talvez ele tenha exagerado na passagem: “Mas ela insistiu, e pra me convencer bastou ela boquetear a garrafinha de long neck com aquele olhar implorante fixo no meu… bom, quando acabei cedendo, o cara já tava pelado mesmo. Então trepamos, os três.” Justamente nas reticências está — logo no momento mais interessante do livro — revelada alguma insegurança desse escritor.
Primeiro fica estranho porque naquele momento da história, não havia motivo para esconder uma palavra como pinto ou pau. Segundo porque depois de entender a história o leitor, ao final, quando voltar às reticências, vai se sentir como se tivesse participado de uma pegadinha ou coisa assim: as reticências ali estavam justamente para trair seus pensamentos e preconceitos. E terceiro porque aqueles três pontinhos, que não gastaram um milésimo de toda tinta empregada no livro, forçam tanto a barra para um tipo de visão da história que diversos leitores — até mesmo críticos — vão pensar serem duas e não uma história apenas. Bom, a essa altura do campeonato, o leitor do Rascunho deve estar achando bastante estranho e estar confuso. Só resta dizer que a conversa do crítico também é com o escritor e, muitas vezes, com medo de estragar a surpresa e os sabores sutis de um livro, muito deixa de ser falado e a conversa fica entre os dois, ainda que um pouco confusa para o leitor…
No mais, é preciso dizer que Triângulo tem alguma poesia, coisa em que Galera deveria investir mais. Ele segue por esse caminho em Todas as rosas do balde e Será numa quinta-feira, mas se perde no fim. Em Será numa quinta-feira, no final, ele cai no óbvio. Só falta ele dizer alguma coisa como “ah, o sistema nos destrói” ou algo do gênero.
Os mortos de marquês de Sade não tem porque estar no livro. Deveria vir com o subtítulo de Balada Verídica Para Ser Contada na Mesa do Bar, e que assim fosse: contada apenas para os amigos na mesa de um bar. Embora eu não saiba o quanto ela tem de verídica. Ela não ultrapassa a vulgaridade do narrativo, revelando que o autor, em alguns momentos, ainda não sabe sublimar o autobiográfico de uma maneira que ele permaneça presente, ainda que desfigurado. Os mortos… não faz jus a contos como Amor perfeito, Subconsciente, A escrava branca, Manual para atropelar cachorros, Intimidade e Dafne adormecida. Deixei esses dois por último de propósito. São os melhores do livro, aqueles que o resumem, especialmente Dafne adormecida, que conjuga a um só tempo a poesia da narrativa e os temas preferidos de Galera: jovens atormentados por trabalhos desinteressantes, a necessidade de ganhar dinheiro, sem tempo para amar ou para seus projetos pessoais e atividades criativas. É um conto de uma melancolia tão grande que, mesmo em seu fim aparentemente feliz, há um quê de tristeza, pois o final sabe-se efêmero. Porque a vida continua para aquém e para além do ponto final, para além do gozo, para além de uma rara noite bem-dormida.