O jogo da amarelinha e o hipertexto

Ensaio lido no III Congresso Nacional de Escritores, realizado no Recife em março deste ano
Julio Cortázar, autor do clássico “O jogo da amarelinha”
01/05/2002

Acaso. Destino. Sorte. Fatalidade. É disso que trata O jogo da amarelinha. A narrativa começa no céu e acaba no inferno, principia no amor e termina na morte, quando não ao contrário. Tudo depende de por onde se entra e por onde se sai durante a leitura. Semelhante ao movimento dos móbiles, esse livro não tem um roteiro a ser seguido, mas vários, razão pela qual as personagens e situações se modificam de acordo com as escolhas que fazemos. Essa liberdade excessiva e a trama amorosa que a fomenta são preocupantes. Deixar que o acaso — pulsão oriental — desvirtue nosso ocidentalizado hábito de leitura pode ser um convite ao tédio. Ou ao suicídio. O jogo da amarelinha é o tipo de livro que não se deve deixar ao alcance dos adolescentes. Livro perigoso, que cativa pela insubordinação, pela valorização do comportamento desregrado, esse mesmo que parece já não caber mais em nossa sociedade. A primeira vez que o li, eu tinha dezessete anos. Minha mãe estava hospitalizada e eu, porque o hospital ficasse noutra cidade, na casa de parentes. De certa maneira, eu me encontrava crucificado por duas mulheres: minha mãe e minha namorada. A primeira era o cravo na mão direita: o da rotina estressante e imprecisa dos hospitais. A segunda, o cravo na mão esquerda: justamente o da paixão recém-descoberta, interrompida pela viagem imprevista. A falta de confiança no procedimento cirúrgico pelo qual minha mãe passara e a saudade da namorada foram os responsáveis, hoje vejo, pelo impasse que me levou à leitura compulsiva do romance de Cortázar. Nas horas em que não estava no hospital, eu não conseguia parar de ler. O amor louco de Horácio Oliveira pela Maga, em Paris, e depois por Talita, em Buenos Aires, me comovia por ser em tudo tão fragmentado quanto o sentimento que eu mesmo experimentava na época. Muito já se escreveu sobre este livro, que foi sucesso imediato de público e de crítica ao ser lançado, em 1963. A qualidade mais destacada pelos comentaristas é sempre a multiplicidade de leituras que seu texto é capaz de proporcionar. O jogo da amarelinha é uma obra aberta, um romance que pode ser desmontado pelo leitor, que tem a liberdade poucas vezes concedida a alguém de refazer a seqüência de seus capítulos. Um romance sangüíneo como o bebop. Assim disse Cortázar e assim repetiram seus estudiosos mais ilustres. Confesso que nunca achei O jogo da amarelinha um grande exemplo de obra aberta. É claro que, como recomenda sua bula, posso ler seus 155 capítulos na ordem que preferir. Posso começar no de número 56, voltar para o de número 12 e depois correr para o de número 98. Cada combinação escolhida dá à trama e às personagens diferente colorido. Mas o que me incomoda é o fato de o próprio Cortázar ter proposto aos leitores duas sugestões de leitura: uma descontínua, que pula sobre os capítulos mas passa por todos eles (essa seqüência começa no capítulo 73, passa para o 1, depois para o 2, depois para o 116, e assim por diante, conforme as indicações do autor); e outra contínua, que vai do capítulo 1 ao capítulo 56 e termina aí, sendo descartados os 99 capítulos restantes. Ora, se o próprio Cortázar recomendou duas seqüências que, a seu ver, deveriam ser experimentadas pelo leitor, isso é sinal de algo terrível. É sinal de que há seqüências que funcionam melhor e seqüências que funcionam pior. Mas o que torna o conceito de obra aberta algo surpreendente é a valorização do acidente: todas as combinações devem ser reveladoras, todos os caminhos devem levar a Roma. Não pode haver seqüência mais ou menos privilegiada do que outra qualquer, todas devem interessar pelas surpresas que as demais não podem oferecer. O que Cortázar propõe é o passo atrás de volta às antigas regras do jogo. Jamais pude deixar de pensar nesse recuo rumo ao romance tradicional, e de rejeitá-lo. Recuo que espanta justamente por acontecer nas mãos de alguém tão pouco tradicional como Cortázar. Mas se O jogo da amarelinha não é a obra aberta perfeita, nem por isso deixa de sinalizar aos incautos que tomem cuidado onde pisam, pois o chão é movediço. No romance tradicional, os capítulos vêem unidos como os elos de uma corrente que nem mesmo a morte consegue separar. Isso é feito pra que o tempo não se disperse. Pra que nossa viagem através dos dias, meses e anos faça sentido. Todo o trabalho do autor vai por água abaixo, caso o leitor resolva ler o livro de trás pra frente, ou salteado. N’O jogo da amarelinha, cada capítulo é um objeto relativamente autônomo, cujo vínculo com os demais capítulos pode ser refeito ad infinitum. Os elos da corrente continuam a existir, e é isso que dá coesão à obra. Mas são elos adormecidos, que só entram em ação no momento em que o leitor avança na leitura. Aliás, o termo avançar, como se vê, já quer dizer aqui outra coisa: saltar do capítulo 82 para o 20 é o tipo de recuo que significará sempre um passo adiante. Conseqüentemente, o tempo se torna algo distinto do que vai nos nossos relógios, algo muito mais flexível. É aqui que entra o hipertexto. Como é mais do que sabido, o hipertexto é o conjunto de documentos interligados por meio de links estabelecidos pelos programadores. O usuário da internet pode passar de um documento ao outro clicando nos links. A internet é o berço do hipertexto, mas este também pode ser encontrado fora dela: em CD-ROM, por exemplo. Quando Cortázar publicou seu romance mais famoso, a internet ainda não era nem mesmo um sonho na cabeça dos autores de ficção científica. Hoje, trinta anos depois d’O jogo da amarelinha, e quinze desde a popularização da internet, penso que a presença, lado a lado, destes dois artefatos da criatividade humana tem muito a dizer tanto a um quanto a outro. Antes que ocorram mal-entendidos, é bom frisar: não penso que O jogo da amarelinha seja algo parecido com o hipertexto, ou vice-versa. Nada disso. No documento em que há links, o internauta pode passar a qualquer momento pra outro ponto do espaço virtual, mas aonde ele vai parar já foi predeterminado pelo programador. Não há a liberdade, como na obra aberta, de você ir de A a F, ou de A a R, ou de A a Z, conforme preferir. No hipertexto, a única possibilidade é: de A a B, de B a C, e assim por diante, linearmente. Até aqui, a obra aberta vence por nocaute. Mas o que o hipertexto pode oferecer, e romances como O jogo da amarelinha não, é outra possibilidade, até agora pouco explorada pela literatura. O leitor pode ser convidado a saltar de uma ponto a outro do espaço antes mesmo que o documento que está lendo chegue ao fim. Uma frase, uma palavra no corpo do capítulo, pode ser a deixa pra outra realidade. N’O jogo da amarelinha o leitor inicia um capítulo e só passa a outro após ter terminado o que estava lendo. O capítulo lido é, por isso, uma experiência fechada em si mesma, situada entre outras iguais a ela. A abertura se dá apenas no âmbito da seqüência de leitura. O que o hipertexto permite é sabotar essa noção de completude no interior do capítulo. O autor pode grifar certas passagens, certos conceitos e termos que julgar interessantes, e transformá-los em links. Assim, durante o desenrolar da leitura e da trama, o leitor será convidado a deixar momentaneamente uma briga de casal, um acidente de carro, um incêndio, pra participar de outra peripécia, em outro capítulo. O que o escritor interessado nesse recurso pode tentar realizar é justamente o cruzamento entre O jogo da amarelinha e o hipertexto: a obra aberta virtual. Faz alguns meses que eu venho trabalhando num romance nesses moldes. Seu título é Babel, e pode ser encontrado em http://romancebabel.cjb.net. A trama se passa numa típica cidade do interior, sem edifícios, trânsito ou poluição de qualquer espécie. Os meninos dessa cidade jogam futebol na rua, enquanto as meninas brincam de amarelinha nas calçadas. A cidade é grande, para os padrões normais, mas é totalmente horizontalizada. Nela não há uma torre, um prédio sequer, por menor que seja. A crise nasce justamente quando se cogita na construção do primeiro edifício do lugar. Seria isso sinal de progresso? Alguns moradores pensam que não. Acreditam que o edifício, depois de construído, significará o fim da rotina civilizada, o início da deterioração da vida de qualidade. Os mais extremistas farão de tudo pra impedir isso: até mesmo chantagear e matar. Como o hipertexto não fica à vontade com textos muito longos, tenho escrito capítulos curtos, de no máximo uma lauda. Como n’O jogo da amarelinha, os capítulos podem ser lidos na seqüência que se preferir. Mas, além disso, no corpo dos capítulos eu tenho espalhado alguns links, que são na verdade cutucões pra que o leitor pare de ler e vá pra outro ponto do romance. É claro que o leitor pode ignorar esses sinais e seguir pra onde bem entender. Também pode entrar na toca do coelho — o link —, descobrir um incidente ou uma revelação mais interessante e não voltar mais aonde estava. A escolha dependerá do temperamento de cada um. Se o leitor der sorte, talvez veja o céu; se der azar, terá que se contentar com o inferno — mas em literatura não é tudo a mesma coisa? O que esse método de composição valoriza é o acaso. Não à toa parte d’O jogo da amarelinha se passa em Paris, capital internacional do acaso. É parisiense o verso de Mallarmé: “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”. Também foi em Paris que um grupo de jovens, na primeira metade do século 20, descobriu e exercitou o valor do acaso objetivo. Breton e seus amigos gostavam de andar a pé pela cidade, sem nenhum destino aparente. Simplesmente perambulavam, deixando que a sorte e o azar fizessem o resto. Essa, a sua maneira de jogar com a metrópole. As surpresas mais insólitas, as coincidências mais fascinantes ocorriam nessas andanças. Alguém já disse: “Os passeios pela cidade de Paris são rituais para a consagração do acaso objetivo”. Outro alguém arrematou: “O acaso objetivo é o conjunto das premonições, dos encontros insólitos e das coincidências atordoantes que se manifestam, de tempos em tempos, na vida humana”. O conceito de acaso objetivo vem de Hegel, e filosoficamente é o lugar geométrico das coincidências. A serendipidade abençoa os que se lançam às ruas. Oliveira e Maga não gostavam de encontros marcados. Preferiam andar sem rumo pela cidade, e deixar que o destino fizesse com que se encontrassem ou não. Os dois apaixonados estavam convencidos de que não havia nada menos casual em suas vidas do que um encontro casual. Também estavam convencidos de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel pautado pra escrever, as mesmas que começam a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta de dente. O que o hipertexto permite é a contínua valorização do acaso na literatura. Resta saber se essa valorização ainda nos interessa, ou se já se tornou algo datado e de validade vencida, com a cara do século passado. Fazer literatura longe do papel, diretamente na internet, obriga o autor a testar os limites da própria literatura. Uma vez que ao texto podem ser incorporados som e imagem, o desafio é dosar bem esses três elementos — verbal, sonoro e visual — de maneira que o livro não se transforme nem em videoclipe nem em cinema. Fazer literatura dessa maneira possibilita também outro resgate: o do folhetim. Os novos capítulos, logo que vão ficando prontos, podem ser inseridos instantaneamente no corpo do romance. A obra aberta, nas eloqüentes palavras de Eco, “fruto da mecânica combinatória a serviço da revelação órfica”, torna-se assim também obra em progresso.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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