Aos onze anos, ganhei (como presente de aniversário) uma engenhoca comprada por meio do reembolso postal.
Não existia nas lojas, e ainda me lembro da caixa, profusamente carimbada, que fomos buscar na agência central do correio, eu e a minha mãe — que preenchera um cupom anexo à edição de fevereiro de 1960 da revista Seleções de Reader’s Digest, oferecendo uma espécie de cineminha portátil, cujas imagens eram vistas aumentadas por lente etc. Ajustava-se à altura da vista — como se faz com um binóculo —, contra qualquer fonte de claridade, e as transparências coloridas faziam saltar, em terceira dimensão, os assuntos fotografados para dentro do Televisex (era o nome da coisa).
Foi por ela que tive o meu primeiro contato com o acervo do Museu de Antiguidades Egípcias do Cairo — pois uma das cartelas de mini-slides, que vinham anexas (e rodavam dentro do Televisex), era The Egyptian Museum – Cairo, algo que eu soletrava, muito impressionado com as imagens, destacadas, das esculturas de olhar fixo, parecendo colhidas num “acordado” sono eterno, que um menino de 11 anos via, pela primeira vez, assim como se estivessem próximas, boiando na luz natural vinda das altas janelas do museu, que as belas transparências captavam. (Se alguém ainda tiver uma maquininha dessas, com a cartela — mesmo já descolorida — das imagens egípcias, eu comprarei, sem discutir o preço, com o dinheiro que não é absolutamente capaz de trazer de volta as mais modestas maravilhas.)
De maneira que foi graças ao remoto Televisex — confesso — que eu tive a esquisita sensação, direta, de familiaridade (das coisas que remontam à infância, estranhamente dilatadas), ao entrar no museu do Cairo, em Midan El-Tahir, numa manhã de 1983, em busca de mais dados sobre o império faraônico, muito bem organizado, do final da 18ª dinastia. Minha memória — pessoal e desimportante neste assunto — aqui expõe o nervo de uma atração difícil, começada pelo fascínio das coisas entrevistas apenas para enfatizar que ninguém escapa da armadilha do Eu.
O império era o maior da face da terra, naquela altura. Por volta de 1400 a.C, dominava colônias e territórios vassalos desde a costa síria até a terceira catarata, na Núbia — mantendo como amigos o país de Mitanni e a Babilônia (embora a ameaça hitita estivesse a coçar o dorso do portento africano que, de vez em quando, se dava ao trabalho de enxotá-la com orgulhoso enfado).
Esse, o país que Akhenaton recebeu do seu pai, Amenófis III, e que ele já conhecia da co-regência exercida antes de suceder, finalmente, ao celebrado faraó que alguns chamaram de o “Luiz XIV do Egito”.
Eu esperava que a biblioteca do museu talvez pudesse dispor de novos dados da pesquisa com relação ao assunto da “co-regência”, nem sempre aceita, no mar de dúvidas que persiste sobre o fim do reinado de Amenófis III. Parece certo que ele chegou a ver até o sexto ano do reinado do filho — e essa longevidade envolve mais do que o “simples” problema da co-regência, como progressiva transferência de poder que era prática corrente na realeza egípcia, com a finalidade de iniciar o jovem rei, sempre que possível, numa sucessão tranqüila. O assunto era, então, um dos pontos a aclarar, para a redação definitiva do capítulo II do livro que eu publicaria em 1986 (Akhenaton: Ascese e Revolução, Editora Expressão, São Paulo).
O atual edifício do museu, inaugurado em 1902, é uma grande construção em estilo neoclássico, projetado pelo arquiteto francês Marcel Dourgnon, sob regime de concorrência internacional que, sabe-se, teria de contemplar a França, mãe da Egiptologia desde a invasão napoleônica e La Description de l’Égypte etc. Seus primeiros diretores — Mariette, Maspero, Grébaut, Loret, Lacau, Drioton — foram todos franceses, até 1952. (Nesse ano, o velho “Departamento de Antiguidades” passou a reunir as seções islâmica e copta, tudo sob a responsabilidade de um arqueólogo nativo, que não teria que ser egiptólogo de formação, necessariamente.)
Seu acervo conta com mais de cem mil obras classificadas, da nebulosa pré-história até o período greco-romano, e estão mais ou menos em ordem cronológica. Apesar disso, o conjunto resulta um tanto confuso de se ver, começando-se pelo salão de entrada, claro, e seguindo no sentido dos ponteiros do relógio, pelo andar térreo destinado às obras de pedra, numa exposição maciça (e quase opressiva) de sarcófagos, estelas e esculturas de médias e grandes dimensões. É onde se encontra uma parte do piso do palácio de Akhenaton, sob uma estrutura de vidro que protege e ao mesmo tempo atrapalha a visão do magnífico mosaico. Há intenções de transferir todo o acervo para um prédio novo, de linhas modernas e dotado de proteção inclusive “contra incursões aéreas” (necessidade real, na atmosfera belicosa em que vive mergulhado o Médio Oriente).
E eu lembrei do Televisex, ao adentrar o primeiro salão, às dez horas da manhã, após disputar a compra de ingresso com os guias locais que monopolizam o acesso às bilheterias, aberto o portão. Buscavam dar entrada, mais rápida possível, às filas e filas de grupos de excursões que se acotovelam, saídos dos ônibus literalmente ocupando toda a praça em frente ao museu, estacionados cada um ao seu modo, entre os táxis e as banquetas de cambistas exibindo grossos rolos das feias notas egípcias.
Olhando-se para o retângulo de céu — também aqui sem mancha de nuvens acima dos minaretes mais altos das mesquitas — ao levantar a vista dos papéis (e das afirmações dos papéis) sobre sinais em argila esfarelando-se como biscoitos ressequidos, eu imaginava o rei, o sólido rei Amenófis III, silente no seu consentimento tácito… se de fato ele ainda vivia para acompanhar, passo a passo, a reforma defendida pelo filho. Isso ultrapassa, sim, do simples problema da co-regência, havida ou não, e das cartas de barro cozido, os sinais de pesar, as fórmulas de lamento antigas, transcritas: protestos solenes de tristeza pela morte de um faraó que não poderia ser indiferente (nenhum faraó seria “indiferente”, no sentido moderno dessas pequenas palavras que interpomos entre a mente e a massa opaca do tempo), e isso eu procurava na biblioteca marietteana, empoeirada, confusa: o contributo das mãos de uma sebakihn colhendo lixo na sobra de ossos milenares que servem de adubo…
O país dos fellahin, dos pobres que contemplam o rosto de pedra, baixado à poeira, de Amenófis III — o construtor do magnífico templo de Luxor! — olhando-se dali, tudo recuado, as pedras, as tabuinhas encontradas pela velha nativa, a janela abrindo para a piscina invertida do espaço: o rei, Amenófis III. A escultura, uma máscara. O tempo, uma ilusão que nos apresenta as antiguidades expostas em vitrines (quase as mesmas imagens em terceira dimensão da infância que você confunde e imagina recolhidas de volta ao escuro, quando o museu apaga as luzes e as estátuas, as esculturas rígidas se tornam no que elas são: alusões para a sombra).
Amenófis III: uma figura agora menos granítica, pelo poder do papel que transcreve os sinais nas tabuinhas traduzidas, as incisões que são também alusões perdidas, do protocolo diplomático entre reis mortos, cujos assuntos vasculhamos como formigas. Mas, à parte neurastenias desse tipo, era real uma imagem mais humana, um soberano preocupado em expandir os cultos egípcios para os outros países (você respira, reordena o que deve comunicar do modo retilíneo de um estudo que se perfila para transmitir “sabedoria”. O que eu sei, o que você, o que sabemos todos — inclusive a Egiptologia — sobre o passado real do Egito?)… Amenófis III, uma figura menos granítica, contrariando, necessariamente, o espírito de preservação dos assuntos religiosos, principalmente daqueles “bárbaros” estrangeiros, conforme o Egito considerava todo os povos que não houvessem gozado da suprema graça de nascer ao longo do “Rio da Vida”, no mundo opalescente de recolhimento que deve ter feito o rei, o sólido rei, imaginar — e incentivar no filho — uma espécie de religião “universalista”, a partir da teologia do Nilo. Hábil e velho governante! Não deixava de ser de boa sabedoria política: ampliava, de muito, a esfera sutil da influência do Egito.
Ora, isso combina com o monarca cheio de experiência (estamos falando de governante que reinou durante 35 anos!), o homem que conhecemos das estátuas colossais e tranqüilas. Um rei, um faraó esclarecido o suficiente para tolerar, pelo menos — senão estimular — os arroubos de um reformador que ele próprio gostaria, talvez, de ter sido. O filho, então, o será… e os dois reis, as duas máscaras que a sombra extingue, essas alusões que o museu preserva e etiqueta e classifica com a irritante erudição dos que imaginam saber sobre a vida antiga — essa paixão um tanto vergonhosa que é a indiscrição da Arqueologia — essas sombras, estas palavras que impacientam o leitor, isso tudo não é senão para dizer: você especula, nós especulamos, vós especulais… mas, nunca se saberá, ao certo, sobre a extensão desse entendimento que, em princípio, não pareceria possível. De um lado, o faraó que se autodivinizou durante um longo reinado (mais de manutenção de território do que de conquistas, e mais de atração dos povos estrangeiros do que de alianças, forçadas, com países temerosos do Egito)… e, do outro, aquele filho, o breve senhor de um turbulento período, Akhenaton, herdeiro de um “universalismo” inegavelmente praticado por Amenófis III — que se correspondia, com os reis “bárbaros” usando os seus idiomas difíceis, por hábil cortesia. Sábio governante, esse pai! — que as transcrições das tabuinhas de argila, achadas pela sebakhin, lamentam que tivesse falecido, num texto que se revelou muito claro, ao ser traduzido. A carta — ou cartela de barro cozido — foi recebida, por Akhenaton, no décimo segundo ano do seu reinado. Isso é uma data, não pode ser confundida com especulações (como se poderia ignorar as digressões subjetivas de um arqueólogo que imaginasse estar diante de um vaso cerimonial — ao encontrar um gracioso penico). Trata-se quase do mesmo “carimbo”, atual, do correio que assim permite, ao destinatário, saber o quanto o carteiro se atrasou na entrega da correspondência molhada pelos pingos da chuva.
Repetindo, esclarecendo, saindo da redoma de sombras para as palavras que o editor afirma que o leitor exige: até o sexto ano do reinado de Akhenaton, estava vivo Amenófis III, seu pai. Questões, então, que necessariamente se colocam: sua presença tem o condão de tornar aceitáveis as “originalidades” religiosas do filho? A idéia de um pai que, no mínimo, usa o silêncio — e a falta de “reprovação” — aqui se alinha, como uma imagem num Televisex partido, frente ao leitor impaciente, levado para um problema mais que longínquo. Um consentimento, tácito, da revolução teológica a que Akhenaton dá início, com graves repercussões políticas. Seu herdeiro era, agora, não apenas um co-regente, no sistema que favorecia o jovem príncipe, aliviava o faraó e também era útil para o Estado — pois toda monarquia tem um profundo senso do Estado, maior do que nas repúblicas, talvez — e, aqui, era o País o mais beneficiado com a energia de um co-regente na condição de faraó já “em exercício” etc..
São os passos de antecipação da reforma — e há que considerar também alguns atos, de Amenófis III, anunciadores do caminho aberto para tornar-se, Amenófis IV, o profeta de Aton, como Deus Único. Por exemplo, o seu pai mandara edificar na Núbia, muito cedo, um templo chamado Gem-Aton (ou Aton-Foi-Encontrado)…
O cenário, de certa forma, está montado. O ator secundário — o velho faraó — se retira. O ator principal, Akhenaton, assoma ao palco, acompanhado por duas mulheres: Nefertiti e Tiy, que vão desempenhar papéis ainda mais obscuros do que aquele de Amenófis III no destino do filho.