Genealogia do erro

"Frio" de Paulo Bentancur traz a temperatura ambiente de um inferno
Paulo Bentancur, autor d e “Frio”
01/05/2002

Nem sempre a consciência do autor converge com a consciência do texto. A ficção tem suas próprias leis, que muitas vezes não combinam com o que o escritor pensava ter escrito. Frio, do gaúcho Paulo Bentancur, é apresentado como “dezoito histórias quase dezoito estilos”. Falsa aparência. Acima do corte e costura, é uma mesma trama psicológica recontada por vários protagonistas. A atmosfera se mantém praticamente intacta do início ao fim do livro, que já recebeu elogios rasgados de Valêncio Xavier (“Frio é um livro quente”) e recomendação de Flávio Aguiar como uma das melhores coletâneas da última safra 2001/2002.

Tal como um romance abortado, os contos revelam a insistência de um tema único: as palavras escondem os pensamentos. Povoados de atores patológicos, que falam demais e contam de menos. Os personagens são dissimulados, descontentes com a identidade. “O frio esconde a beleza dos corpos.” Verborrágicos para ocupar e fugir do silêncio, não porque têm o que dizer. Não conseguem comunicar suas experiências ou levar a cabo seus impulsos. Teatralizam a angústia. Se não estão satisfeitos, procuram pelo menos convencer os demais do contrário.

As verdades permanecem no subsolo, clandestinas. Não se compreende as estranhas escolhas de um milionário refugiado num sobrado decadente ou da anã que guarda a irmã da ambição dos terceiros. Prevalece uma totalidade subjetiva e fragmentada sobre a normalidade objetiva. Bentancur nunca mostra a segunda história. Não abre suas cartas e segue o blefe até o desfecho. Diferencia-se da teoria do romancista argentino Ricardo Piglia, na qual os contos trabalham dois níveis narrativos ao mesmo tempo (um visível e outro subterrâneo) e que a surpresa do conto é quando a história secreta assume o lugar da que estava na superfície.

O provérbio que abre A arte da recusa é altamente significativo ao conjunto: “todo homem é mais parecido com sua época do que com o pai”. Criador de Instruções para iludir relógios e Os livros impossíveis, Bentancur faz agora um tratado sobre a cobiça — o melhor está sempre com os outros. Há um conformismo pessimista de que falta espaço para respirar. A pressa e a rapidez da contemporaneidade provocam, paradoxalmente, a inércia. “Era, no tempo deles, um mundo que durava o suficiente, isto é, a vida da gente. Agora tudo estava acabado. Tudo acabava todos os dias.”

Ninguém está saciado. Todos disfarçam a precariedade da trajetória que não saiu conforme o planejado. Testam os limites da liberdade e não encontram consolo depois dela. Em A seis mãos, um homem cede sua namorada ao amigo para demonstrar despojamento. Ao realizar sua fantasia sexual, perde a realidade, a mulher e seu papel social. Em nenhum momento a convivência é positiva, capaz de colaborar ao amadurecimento e mudança de personalidade do (a) parceiro (a). O casal se ama pelos defeitos, interagindo em defesa deles. Premedita vinganças, pouco alterando o curso de suas obsessões. O narcisismo é produto de uma desvalia enrustida, em vez de ser resultado da confiança.

Os episódios repercutem uma onisciência que tenta enganar o interlocutor. Há uma contínua flagelação entre as figuras. A única felicidade possível é privar o vizinho da felicidade. Assim, testemunha-se o caso de um pintor de paredes com uma adolescente do prédio. Narcotizados pela tinta ou embevecidos pela maconha, só se amam quando estão fora de si. Conscientes, somam-se aos estranhos de um edifício de 76 apartamentos e doze andares.

O ficcionista é um narrador intruso, que também se esconde nas parábolas e se entrega na profusão de referências. O desafio é justamente observar a constância e semelhanças do contexto: em qualquer uma das vozes narrativas percebe-se igual carga cultural, grau de instrução e visão de mundo, seja na primeira, seja na terceira pessoa. Enquanto os personagens se defendem, orbitam em explicações distanciados das perguntas que os incomodam, o escritor se mostra e ataca a literatura, no desencanto com a linguagem. Em conseqüência, os habitantes de Frio basicamente são derivações profissionais da escritura: revisor de português, editor, escritores iniciantes e veteranos e jornalistas. Paulo Bentancur exorciza sua ansiedade e paranóia urbana nas criaturas. Talvez ele seja o principal personagem, emprestando o corpo aos seus fantasmas.

A história da editora sem livros, pelo absurdo nível de exigência dos donos, fecha com a cena muda e atávica do filho e do pai diante do túmulo do avô. É a genealogia do erro, tanto da obra como do sangue. Sem descendência possível, imersos na certeza do fracasso, eles desistiram da esperança que nascia das dúvidas. Convictos de que a literatura não salva, porque imita a vida.

Frio
Paulo Bentancur
Sulina
126 págs.
Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho