A santa loucura

Longe de modismos superficiais e oportunistas, o poeta Gabriel Nascente luta para “salvar o lirismo”
Gabriel Nascente: A crítica literária é cruel, ingrata. Nasceu para lamber os afilhados da corte. Nada mais
01/05/2002

Depois de publicar A torre de Babel, reunindo parte de sua obra em 600 páginas, o poeta Gabriel Nascente, de Goiás, lança mais dois livros O pão selvagem e Boa-noite, crepúsculo. A poesia de Gabriel Nascente não é feita de invenções. Pelo contrário, ele luta é pelo que tem a dizer o poema e sua poesia, sem fazer malabarismo devidamente amparado por uma mídia desonesta. Ele confessa que nunca escreveu um poema pensando em salvar a humanidade. Mas para vencer a morte. Escreveu, certa vez, ser um poeta do escuro, redator da comoção. Fazem parte do seu instrumento de trabalho a sensibilidade, a paixão e o sonho. “Dessa matéria eu chego à tona da vida, elucidando caos e montando mistérios para dar alma à poesia. É como se eu fosse tangido pelo toque de um condão dos deuses e rapidamente me transferisse com a bagagem da vida para dentro da poesia: a residência de minha alma”. Essa é a linguagem de um poeta que não se deixa levar por modismos literários. E os dois novos livros são uma afirmação dessa poesia sobretudo de sentimento, na qual o poeta se deixa levar em busca do poema e de si mesmo. “O que importa é salvar o lirismo”, diz ele, observando que “o poema é um ser sagrado” e a “poesia uma santa loucura”. Por fim, classifica-se como “um despreparado cantor da esperança”. Para ele, a crítica literária é cruel e existe apenas para lamber seus afilhados.

Essa é a palavra de um poeta de um Brasil desconhecido, distante dessa paisagem colorida dos tristes e muitas vezes infames suplementos culturais brasileiros, quase sempre dirigidos por aventureiros que não têm compromisso com nenhuma verdade, especialmente no que diz respeito à literatura de um país sem identidade.

• Como você situa O pão selvagem em sua obra poética ?
Embora não fosse intenção minha acrescentar mais uma pedra à remotíssima gênese da poesia epigramística, que floresceu no século IV d.c., em Alexandria, com as epigramas do poeta Paladas, O pão selvagem traz, ou pelo menos tenta trazer, em sua conteudística, um pouco de sua experimentação sintética dentro da linguagem poética. Agora, forante a aparente ressonância cristológica respingada em alguns versos, é uma poesia — penso eu — que salta da sensualidade plástica, carnal e imagética, originando-se da grande árvore das metáforas. Vascas de agonia, sonhos, fragmentos até de cunho filosófico, e sobretudo excertos de bafejos líricos, também perfazem o perfil literário deste meu 36º livro. E o que o difere mesmo, da escalada dos demais, é a presença do verso curto, telegráfico, epigrâmico — cujo grande outro expoente da epigramística grega foi a poeta Hipácia, filha do astrônomo Theon, reverenciada por seus contemporâneos da Alexandria, como “ornato do saber, estrela sem mancha do mais douto ensinamento”. Então, foi com este objetivo estrutural temático que escrevi O pão selvagem. Aliás o seu texto foi visto, revisto, pincelado e reescrito, por diversas vezes. E também porque o público da era da Internet, altamente eletronizada, vive a exigir soluções mais ágeis de comunicação, seja ela jornalística ou literária. Provam isto momentos como estes no livro: “Só uma coisa anda perto da perfeição: o simples”. O livro é dividido em duas partes: O pão selvagem e Os excertos de uma estrela. Na primeira, eu detono temas místicos e mitológicos, converso com Cristo e Tirésias, Ptolomeu e Aristófanes, Teseu e Lúcifer, Dante e Abel. Para concluir com um poema celestial do trovão. Depois, em Os excertos de uma estrela, que, na verdade, é um poema longo, e epigrâmico, fragmentado em 105 momentos, de pura indagação metafísica, ao redor dos enigmas da vida: o ser e seus desígnios, fardos insolúveis do viver. Portanto, têm um começo e um fim, a dramaticidade e o etéreo, na temática deste poema. Uma poesia, enfim, para todos os gostos, sem o esnóbico intelectualismo dos “magnatas” do verbo, mas com sabor de artesão, suor e amor às coisas simples. Assim eu o situo em minha obra: uma poesia que é nua (e sangra); é utópica (e singra) — fruto sazonado pela loucura de acreditar que ainda há tempo para socorrermos o perdido éden do nosso ego — freudiano ou teológico, metafísico ou epicurista — não importa. Importa salvar (cantando) a matéria do lirismo ocultado no gesto de cada coisa.

• E em relação ao Boa-noite, crepúsculo?
A quilha temática do Boa-noite, crepúsculo segue outro rumo, cujo vertente inspirador a une o clássico ao moderno. Onde eu misturo temas advindos da problematização (ou dramatização) do mundo globalizado, com personagens reais (seres humanos) e fictícios (numes) da esplendora cultura mitológica dos clássicos greco-latinos. Daí, deste fantástico mundo filosófico e humanístico, eu colhi essências para alar meu canto, os poemas que compõem este novo livro. No fundo, no fundo mesmo, a questão é uma só: procurar, com a poesia, o equilíbrio entre o espírito (saber) e a matéria (fogo), para vencermos a morte e driblarmos o golpe do desenlace. Outrossim, é reconfortante saber que é pelo crepúsculo que se chega às estrelas, e com isto — este Boa-noite, crepúsculo — ousei abrir um novo caminho para se chegar à fascinante saia de luz das estrelas, ressuscitando, na poesia, temas essencialmente consagrados, que vêm de Hesíodo a Erza Pound, de Homero a Eliot, de Sófocles a Brecht, de Virgilio a Shakespeare. Mesmo porque para nós, que somos serventes da palavra e, por conseguinte, fabricantes da utopia — o poema é um ser sagrado, onde a alma conversa com o homem, através do intelecto. Este livro tem me rendido boas alvíssaras no que tange à recepção crítica, principalmente, em alguns países da Europa como França, Espanha, Itália e Portugal. As impressões que aquela intelectualidade estrangeira tem acerca da minha poesia me colocam em posição privilegiada, o que muito me honra. E isto, para quem vive (sobrevive), neste redil do asfalto aqui da província do Anhanguera, é algo de muitíssimo alentador. Faz a gente acreditar que a poesia ainda é o caminho, por isso continuo fiel à lucidez do compromisso, grudado na saia desta santa loucura: a poesia.

• Depois de 36 livros e décadas de escrita, como você define a poesia?
A propósito desta pergunta, deixa-me bradar um pouco. Tocar minha trombeta no coração das trevas. E gritar: Não, Não, Lautréamont — a inspiração não é uma enfermidade do espírito. Nem tão pouco excitações luciféricas, fruto irracional do delírio. É a festa do intelecto, e Paul Valéry tinha razão. E até imita as eloqüências do vento, movendo as hélices da sua natureza. Ora, para gerarmos poesia, é preciso que acreditemos primeiro na perpetuação dos sonhos, depois na palavra, este tijolo de luz que constrói o texto. Coitado de mim! Quem sou eu para conjeturar sobre os fascínios deste fenômeno, dentro da linguagem: sua arte, sua loucura, seus mistérios — carga de beleza girando ao redor do coração — angelical e onírico, neurótico e feérico. Universo que pulsa no silêncio de uma vírgula, gota de milagre da fala do homem. A poesia é a flecha. Eu sou o arco. Mas, perguntas o que é a poesia. E eu me arvoro: a poesia é a explosão da alma, testemunho estético da emoção, strip-tease da imaginação; pugna do eterno contra o efêmero; coração que lucila, cospe luz e pulsa em ritmo de palavras. Cerimônia dos vocábulos, que transcende, sobretudo, a viagem das cinzas. Gozo do espírito, usina intelectual das metáforas.

• Para que serve a poesia?
Para ensinar ao homem a compreender o seu lugar de participação na vida. Dar de comer aos espíritos miseráveis, porque os que amam o belo já estão isentos do pântano enganoso das mentiras. Serve, principalmente, para expulsar o caos que fermenta o ódio no terreno das nossas índoles. A morte devora o corpo, mas não devora o verbo, que é a poesia, gênese da vida. Serve também para dizer que amar não é pecado. E que o homem do nosso tempo morre antes porque deixa de amar. E não se ama sem poesia.

• Quais as dificuldades de mídia cultural de um poeta que vive fora do eixo Rio-São Paulo?
Eu teria quatrocentos milhões de motivos para lhe responder esta pergunta. Em primeiro lugar, para se conseguir uma posição de destaque na literatura brasileira (obviamente patrulhada pelos merdalhões do grande eixo Rio-São Paulo), é preciso matar cem, derrubar dez e enterrar um. Assim mesmo levando seus ossos para a cadeia. Depois, quem somos nós para competirmos com os carrascos da confraria editorial, arraigados aos costumes interesseiros e maquiavélicos que promovem as badaladas diarréias de certos Paulos Coelhos da vida, que não passam de imortalidades de palanques? Veja você, meu caro amigo, poeta e jornalista, quantos sangramentos de decepção em nós, do poetariado suburbano, sofremos na carne, para obtermos um delgado luzir de apoio aí da grande imprensa? Somos filhotes de tartarugas nos debatendo para sobrevivermos à escuridão do anonimato. E penso: o único caminho para bombardear a máfia editorial literária que domina os grandes centros urbanos deste país deve se originar da força materialista do dinheiro. Dinheiro em abundância, para fazermos os nossos nomes. E depois vem a questão dos mortos (os famosos, claro!) que são os nossos maiores inimigos, porque nunca param de crescer. O homem passa, a obra fica. E eu pergunto: é preciso silenciá-los? Não. Não se trata de impedir que se edite sucessivas edições de Drummond, Machado, e outros, para que sobre espaço a nós, pobres tripulantes da nau tragada por este estúpido nevoeiro. Trata-se, sim, de democratizar a política de apoio editorial aos novos que pululam por aí, aos milhares. E com bons luzires de diamantes a bordo. É só mexer que acha.

• A poesia é levada a sério no Brasil?
Apesar da disputa acirrada, penso que sim. Mesmo porque os aventureiros desta arte de Orfeu duram pouco. Não conseguem ir além de uma foto-legenda das colunas sociais. Sepultam-se aí mesmo, ou fazem da poesia um passaporte para conquistarem altos cargos políticos, dentro do governo, ou na sociedade. Isso me entristece, porque a manifestação do fenômeno poético nos mortais me parece ser conduzida por uma imensa falange de forças divinas. Os poetas não são uns possuídos, como queria Platão, separados da loucura apenas por um fio de cabelo; mas, sim, uns iniciados. E acredito, por isso, que grande fatia deste elenco leva a serio o artesão poético. O que nos falta é espaço, incentivo, solidariedade, principalmente, dos órgãos da esfera federal. Promover edições barateadas para o público, ter acesso à poesia, como alimento imprescindível à alma do homem. Ela é filha da alma, a poesia, e a ela se devolve, materializada na música e nas imagens das palavras.

• Como você vê o quadro atual da poesia brasileira?
De todas as partes do país, eu tenho recebido verdadeiras sacoladas de poesia. São livros e mais livros, à mão cheia. E os recebo, com temores de júbilos, na alma. E os leio, carinhosamente, um por um, para situar minha poesia, no profícuo engenho dessa forja. E, no geral, a impressão que tenho — com exceção de um ou outro — é que ela, a poesia brasileira desta virada de milênio, anda muito tumultuada, hermética, repetitiva, com obscurantismos que obstruem a cristalização temática de seus conteúdos. De modo tal que a gente fica com a impressão de que estes novos poetas se preocupam, em demasia, com a revolução temática da palavra, desintegrando-a, como o fez Mallarmé, em seu Um lance de dados. E isso, a meu ver, está superado. Porque poesia não é palavra, é feita de palavras, células de luz do verbo, que dão sustentação à expressão imagética. E não o contrário. É simples entender isto: a poesia brasileira atual deveria se preocupar mais com outras fontes de inspiração, que tenha o calor da vida lutando, através da expressão metafórica, para vencer a contradição que há entre o berço e o túmulo. Pois a vida — como palco terrenal de nossas pobres existências — é infinitamente rica, nestes detalhes, de questionamentos filosóficos, metafísicos e até teológicos, se quiserem. E, além disso, denota-se, claramente, em alguns autores, a falta de leitura, do encontro convivial com obras de certos autores, desde o começo da poesia no Ocidente, trombeteada pela voz de Homero. Ler certas teorias da poesia também é bom, ajuda muito.

• Vale ainda pena se preocupar com a poesia?
Vale. Vale muito. Tanto que o processo de manifestação poética, em mim, é tão inquietante, que parece uma obcecação hemorrágica. Sou poeta literalmente — um louco embriagado de lucidez — e que não respira outra coisa que não poesia. O resto é mundanismo, me dá náuseas, angústia. Sinto-me na aldeia dos mortais, como um desesperado cantor da esperança. Aquele que luta para vencer a morte, agarrado à saia da poesia, e à sua auréola de mistérios. Parece até que eu copulo mesmo com as palavras. Vejo poesia em tudo, da lama ao devaneio.

• Por que e para que escrever poesia?
Porque sem ela eu estaria estupidamente morto, acéfalo de mim, jogado fora. Rocim do meu trabalho, estrela que navega no meu sangue, poesia, farol que me conduz pela sina dos gorjeios, carroça das minhas auroras. Mulher descabelada que sai do grito das minhas carnes. Manto luzido — túnica dos anjos. Bateia, enxada da minha lavra.

• Como você se situa na poesia brasileira atual?
Num país onde a literatura parece mais uma corrida de cavalos, eu ainda não cheguei a pódio algum. Sou apenas alguém que acredita na poesia, desde os meus 14 anos de idade, quando escrevi o meu primeiro livro, os Gatos. Claro, grandes nomes da literatura brasileira já emitiram suas opiniões sobre as loucuras do meu etéreo, dentro da poesia. Apesar de tantos louvores, em termos de humanos reconhecimentos estéticos e literários, ainda sou um poeta provinciano, sem o coroamento dos grandes vôos editorias. Luto para publicar minha obra completa. Entendo ser esse o único caminho para mostrar minha poesia, de corpo inteiro, ao país. Do contrário, continuarei trôpego, capengando do lado de cá do rio Paranaíba.

• Existe muita mentira neste universo da poesia brasileira?
Essa doença é uma praga. Dengue ululante entre os “cardeais” da grande cúpula, derruba até muletas de verme. Mas o poderoso e reluzente escudo de Aquiles tem me protegido bastante, contra o hálito infeccioso desta epidemia.

• Como você vê a critica literária atual?
Se existe é cruel, ingrata. Nasceu para lamber os afilhados da corte. Nada mais.

Boa-noite, crepúsculo
Gabriel Nascente
Editora UFG
176 págs.
O pão selvagem
Gabriel Nascente
Instituto Goiano do Livro
207 págs.
Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho