Adeus. Qualquer palavra serve. Na derradeira hora, deixar todos para trás, deixar tudo para trás, deixar tudo para todos, que palavra terá importância, seja ela de despedida, de repúdio, de arrependimento?
É certo que se olhará para o céu, como uma espécie de futuro no qual nunca acreditamos. O céu é falho. Sua primeira camada foi poluída pelo homem. Sua segunda camada está assombrada pelos espectros da Terra e da Lua. E a terceira já é o incognoscível.
E baixando um pouco a cabeça, olhar-se-á a terra mesma, os campos, o derredor. O espaço físico disponível que quando crianças parecia infinito e hoje não passa de um caixão indiferente à nossa sorte. O espaço carnívoro que admite buracos, os grãos de terra que apoiam nossos pés mas logo sufocarão nossa boca e nosso nariz, e taparão nossos olhos, e enregelarão nossa pele.
E baixando mais ainda a cabeça, nos deparamos com o próprio corpo: a barriga, o sexo tornado quase uma ironia nesse instante, as pernas interrompidas fealmente pelos joelhos, e os pés tristes como raízes que não vingaram.
Está dado o cenário. Pessoas passam. Pessoas cruzam as ruas, emergem nas janelas, tocam teu ombro com seu toque tardio. Rostos te olham e diante deles vês tua morte sendo desenhada. Tua boca é uma cripta da qual não sai som algum. Teus olhos fixam o que tua mente não traduz. Já não compreendes como compreende um jovem, que soma ao que enxerga o desejo, a esperança, e até a saudade. És uma estátua de sal, um fantasma de carne e osso, um objeto paralisando sua agitação e escondendo como insetos bizarros suas idéias dentro da caixa craniana.
Então adeus. A todos. A tudo. A ti mesmo, de quem te despedes insatisfeito como com os demais, estranho como os outros. Algum dia tomaste pose plena da tua carne, já nem se diga do teu espírito?
Não, é claro.
Mas agora dessa carne tomarão posse minúsculos animais. Febris e decididos como nunca foste. E quanto a teu espírito, diz, algum dia ele se manifestou?
É de se duvidar. Mesmo nesta hora derradeira ele nem aprendeu ainda a dizer a palavra que, embora não o salve (isso é impossível), ao menos anuncie a sua extinção. A palavra que os demais possam entender. A palavra que encerre tudo, como uma herança, uma chave ou um consolo.
O trabalho dos animaizinhos já deve ter começado e nada foi dito. E tua chance de salvação perdeu-se para sempre. Resta tua memória. Mas olha só que espécie de memória! Memória encerrada em si mesma. Memória afogada na lembrança de um silêncio em plena ágora ou do grito de um emparedado. Memória que nunca chega aos demais, que não será compartilhada, memória que é um rasgo de consciência, quase um relâmpago antes do gemido final.
E nesse fugaz espaço de tempo, em que lembras o que foste, o nada ou o pouco que foste, a patética fome de ser grande e ser muito e seres o mundo e a vida e um animal que orgulharia a um deus se ele existisse, nesse mínimo instante brota e se congela a memória total, o olhar agudo do vivo tarde demais, a resistência inútil contra o morto em que já estás te tornando.
Ah se fosse só um exercício, pensas. Se apenas (apenas?!) estivesses encenando teus últimos pensamentos. Talvez, nessa hora, nem pensamentos, mas só sensações. Olhas o relógio. Uma hora que ninguém testemunha: quatro da manhã. Tudo é sono e inocência, as células vivas do amanhã, na casa onde moras. Na casa onde estás, melhor dizendo. Deves acordar a mulher, os filhos, e dizer-lhes desistam de mim?
O terrível é que não podes dizer isso e já desististe. E nem faz mais diferença se eles ainda apostam (some-se a dor da responsabilidade) ou se já desistiram mesmo (some-se a dor da derrota). E nem faz mais diferença se morres assim, como num exercício de morte que é a morte de fato sem anunciação, ou se exercitas teu fim que virá daqui a alguns anos, quando só então os demais dirão as palavras que agora não conseguiste achar.
* Escritor, autor de Instruções para iludir relógios, Os livros impossíveis e Frio.