É impossível medir a profundidade total das desgraças de uma guerra. São sempre números, estatísticas. Em Hiroshima, por exemplo, em agosto de 1945, a bomba atômica matou cerca de 150 mil japoneses. Fria estatística. São números puramente quantitativos. Não revelam dramas, não há comoção. Entram em nossa vida apenas como mera informação, por mais que nos esforcemos para avaliar sua real extensão, numa tarefa humanamente impossível.
Para cada uma daquelas mortes de Hiroshima, ou em outra guerra qualquer, há um drama particular. Mais do que estatística, ou fato histórico, a guerra é uma coleção de pequenas tragédias, e aí é que reside a sua maior crueldade, que nunca vem à tona na história oficial. Por mais paradoxal que possa parecer, é somente por meio da arte que se pode pincelar e mostrar a realidade de algumas dessas pequenas tragédias de guerra, antes de tudo, tragédias humanas. É a arte a serviço da guerra. Um mal necessário para revelar a face mais cruel dela.
São quadros, filmes ou livros, como Terra e cinzas, do afegão Atiq Rahimi, em sua obra de estréia. Vale, de imediato, condenar o oportunismo do lançamento de Terra e cinzas, que provavelmente só foi editado no Brasil, com atraso de dois anos, por causa da guerra em curso e de toda a celeuma em torno do Afeganistão. A lingüeta que envolve o livro recomenda: “se você pudesse ler somente um livro do Oriente este ano, que seja este.” Bobagem. A boa literatura é universal e deve ser lida independentemente de onde venha, ou quando venha. Terra e cinzas é literatura de primeira linha e somente por isso deve ser lido. Não porque é um conto afegão, como anuncia sua capa. Não porque seu autor é afegão e porque o Afeganistão transformou-se, de um ponto ignorado no mapa, em alvo de todas as atenções, ódios e compaixões do mundo após o fatídico ataque terrorista de 11 de setembro de 2001. E se não tivesse havido a guerra no Afeganistão? E se Bin Laden tivesse se escondido na Cochinchina? Provavelmente, o mundo teria ignorado esta belíssima obra de Atiq Rahimi.
Além disso, a guerra que serve como pano de fundo para Terra e cinzas nem é a atual, mas a civil que culminou com a invasão do Afeganistão pelos soviéticos nos anos 80. E isto pouco importa. Terra e cinzas é excelente justamente porque não é um panfleto antiguerra, apesar de sua editora no Brasil anunciá-lo como tal. O conto, na realidade, não tem nacionalidade e sua história poderia ser fruto de qualquer guerra. Ou melhor (ou pior), é um relato de dramas que continuam acontecendo a todo instante, em qualquer canto do mundo onde uma pessoa é morta, pela guerra militar, civil ou urbana.
A tragédia particular de Terra e cinzas está ocorrendo neste exato momento em algum lugar do planeta, principalmente do Brasil, onde a violência produz 40 mil homicídios por ano (3.333 mil por mês, 111 mortes por dia, mais de quatro assassinatos por hora, pelo menos uma morte a cada quinze minutos). Desde que você começou a ler este caderno, pelo menos uma família brasileira passou a viver o mesmo infortúnio do velho afegão Dastaguir, que perde a mulher, um filho, duas noras e alguns netos após um bombardeio soviético. Na verdade, são dois dramas. Primeiro, o da perda de alguém querido numa morte, violenta ou não. Mas este não é o foco do conto de Rahimi. Sua obra desenrola-se no instante seguinte ao da perda, não menos doloroso, muitas vezes mais até que o recebimento da notícia da morte. O drama que se sucede é o de como transmitir a notícia adiante para a família. Como contar a um pai que ele perdeu o filho, a um marido que ele não mais terá a mulher, ou ao filho que o pai o deixou. É um drama que pode durar um instante ou uma eternidade, mas com uma carga emocional imensurável.
Para o ancião de Rahimi, a angústia dura a eternidade. Ele tem que ir até o filho, trabalhador numa mina de carvão em outra região, para contar-lhe a desgraça que atingiu a família. A viagem é prolongada ainda mais pelas dificuldades de se deslocar num país em destruição, sob conflitos e bombardeios. Tempo suficiente para Dastaguir imaginar-se diversas vezes diante do filho, tentando encontrar a melhor maneira de informá-lo da tragédia. Se é que esta maneira possa existir, conclusão a que o ancião chega por várias vezes, cogitando, em alguma delas, em desistir da empreitada.
Terra e cinzas já garantiria sua vaga entre as principais narrativas sobre o sofrimento e a morte somente com o doloroso dilema de Dastaguir em revelar as perdas ao filho. Mas Rahimi foi um pouco além, e este talvez seja o grande trunfo do conto. Ao ancião foi dada a companhia do único neto sobrevivente, que segue com o avô de encontro ao pai. Mas o pequeno Yassin é uma companhia especial, carregada de uma dramaticidade sem limites, ao mesmo tempo bela e da mais profunda tristeza. O garoto ficou surdo durante o bombardeio que matou sua mãe, avó, tio, tia e primos. Mas ele ainda não se deu conta disso. Acha que o mundo é que perdeu a voz, e tenta, em sua inocência, buscar uma explicação para a quietude à sua volta. Pergunta ao avô por que a pedra não faz barulho ao usá-la para esmagar uma maçã. O velho responde para si mesmo, já que o neto não pode ouvi-lo:
“Seria idiota te dizer que você ficou surdo! Você não ouve, você não entende, você nem sequer imagina que é você que não ouve mais. Você acha que são outros que ficaram mudos. Os homens não têm mais voz, a pedra não faz mais barulho. O mundo está silencioso… Mas, então, por que os homens movem os lábios?”
Enquanto o avô não responde, Yassin vai chegando às suas próprias conclusões para a vida que se transforma à sua frente, aos seus ouvidos. Acredita que os russos vieram para tirar a fala de todos. Os que não quiseram entregar a fala, como a mãe e a avó, foram mortos sem piedade. Os que ficaram vivos, em troca, perderam suas vozes, como o avô. Yassin, entretanto, não encontra nem recebe uma resposta para si mesmo:
— Vô, eu tenho voz?
Dastaguir balança a cabeça afirmativamente.
— Mas, então, por que eu continuo vivo?
Talvez sem intenção, Rahimi trouxe para dentro de Terra e cinzas um mundo paralelo, o dos surdos como Yassin, o mundo do silêncio, das pedras que não fazem barulho ao serem chocadas contra uma maçã, o mundo dos que vêem os homens moverem os lábios e buscam nisso um sentido. O drama de Yassin é um retalho da mesma colcha de dificuldades causadas pela deficiência de um dos sentidos que José Saramago costurou com maestria em Ensaio sobre a cegueira. É apenas um retalho, mas não menos comovente que as cenas do mundo dos cegos descritas pelo autor português. Sem querer comparar ou nivelar os dois escritores, a frase “você acha que são os outros que ficaram mudos”, de Rahimi, é tão chocante como a célebre “deitados em seus catres, os cegos esperavam que o sono tivesse dó de seu sofrimento”, uma das mais geniais de todas as obras de Saramago e da literatura mundial.
Terra e cinzas é a primeira obra de ficção de Rahimi, mas já é um alento. Serve para causar ansiedade por seu próximo livro, As mil casas do sonho e do terror, anunciado para este ano. Terra e cinzas é pequeno, mas profundo. A riqueza do conto supera a estranheza de uma escrita na segunda pessoa, desnecessária e incômoda a certa altura. É uma redação eficaz para, por exemplo, uma reportagem, quando se tenciona colocar o leitor como um visitante dentro da história. No conto, a narrativa em primeira pessoa seria melhor digerida. Há também descuidos na revisão, pela qual passaram falhas de digitação e um terrível erro de gramática (saiu um “pêgo” numa frase). Pode parecer ninharia, mas são desleixos que causaram irritação. Talvez porque na mesma semana li Moscow (Boitempo, 2001), de Edyr Augusto, e ele conseguiu a proeza de escrever “tráz” em vez de trás, acreditem!, na primeira página.
Um livro não pode conter erros que estamos acostumados a ver na imprensa, ou em textos de um jornalista metido a resenhista como este que vos perturba agora. Defendemos tanto a leitura como aperfeiçoamento cultural e intelectual, então a gramática não pode ser atropelada em obras desse porte. Se fosse um Paulo Coelho ou um Valêncio Xavier da vida, ainda vá.
E se a guerra contém tantas pequenas tragédias, como as relatadas em Terra e cinzas, o recente ataque ao Afeganistão serviu ao menos para que o primeiro livro de Atiq Rahimi ficasse conhecido. É triste, é trágico, mas até a boa literatura depende de uma oportunidade de marketing causada pela guerra. Em tempos de bomba, os homens não têm mais voz, a pedra não faz mais barulho.