Santos de pau oco com pés de barro

Romance mescla ficção e história em envolve mistério
Jorge Volpi, autor de “Em busca de Klingsor”
01/04/2002

“Tudo é relativo”. A frase famosíssima é de Albert Einstein. Ainda que ela tenha sido usada e abusada neste quase século de existência, e em contextos os mais improváveis possíveis, ela ainda é correta. Não chega a ser uma daquelas afirmações ad absurdum, ou seja, que se contradiz em si mesma. Algo como “Não existem verdades absolutas”, logo, nem essa frase pode ser uma verdade absoluta. O discurso é longo, é interessantíssimo, e completamente fora da minha alçada. Apenas para provar que não existe verdade, se ela realmente existisse, os advogados se tornariam desnecessários neste mundo, e com eles os juízes, os promotores, os procuradores e afins. Afinal, qualquer conflito se resumiria a uma conversa entre dois seres humanos, em busca da verdade. Mas não é assim.

A relatividade pode ser bem aplicada ao primeiro livro do escritor mexicano Jorge Volpi lançado no Brasil, Em busca de Klingsor. Por um ponto de vista, é um romance. Por outro, é um mistério. Outros ainda dirão que se trata de um relato histórico. Alguém talvez fale em ficção científica. E por aí vai. Querer uma única definição deste trabalho seria pretender que a verdade existisse.

O enredo do livro é aparentemente simples, mas só na aparência. Francis Bacon (sim, o nome é uma homenagem ao filósofo britânico) é um tenente do exército americano, físico teórico de formação, que parte para a Alemanha do pós-guerra em 1946 para encontrar Klingsor, uma figura que se supõe ter sido o chefe supremo do programa científico nazista. Supõe-se, pois não há provas concretas da sua existência, apenas uma referência cruzada em um depoimento de um cientista nazista, que depois negou ter dito a palavra Klingsor. (Klingsor, como bem explica o livro, é o vilão da lenda de Parsifal, que virou ópera nas mãos de Wagner)

Partindo desta pista débil, Bacon começa suas buscas. Vale notar que Bacon trabalhou no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, uma das mecas da física moderna da primeira metade do século 20, onde deram aulas, entre outros, Albert Einstein, John Von Neumann, Podolsky, Kurt Gödel, Rosen, e outros tantos que habitam os livros de física moderna. Bacon, além disso, participou da missão Alsos, que teve como objetivo capturar todos os físicos e pesquisadores alemães que trabalharam no projeto atômico nazista antes que os russos o fizessem. Um dos capturados desta missão é o famoso físico Werner Heisenberg, justamente o chefe do projeto atômico alemão.

Além de todo este conhecimento, Bacon é ajudado por Gustav Links, matemático e professor da Universidade de Leipzig, uma das pessoas que trabalharam no projeto atômico nazista, e membro da conspiração que organizou o atentado frustrado contra Hitler em 20 de julho de 1944. Ainda que sua participação tenha se resumido a um papel coadjuvante nas pesquisas, ele esteve próximo do poder.

Todo este retrospecto de Bacon e Links tornam o livro um panorama abrangente, nada tedioso e tampouco técnico demais sobre as revoluções que a física quântica promoveu no conhecimento humano no início do século 20, ao mesmo tempo em que o autor continua narrando a busca de Klingsor. Volpi parece seguir um fio condutor ao longo do livro, que é o princípio da incerteza: se determinamos a velocidade de um elétron ou de outras partículas subatômicas, não sabemos sua posição, e vice-versa. Isto posto, nada mais é certo na vida. “Tudo é relativo”, volta à cabeça do leitor.

Este princípio é importante na narrativa de Volpi, pois ele joga constantemente com as expectativas do leitor. Além de narrar a busca de Klingsor, os avanços da física moderna, a competição entre as equipes nazista e aliada em busca da bomba atômica, a “arma definitiva”, Volpi encontra tempo para narrar a vida pregressa de Links, e o turbilhão de emoções em que ele se meteu durante a guerra e como isto determinou o seu destino; a vida pregressa de Bacon, e de como a sua falta de objetivos fez com que sua vida fosse sempre dirigida por outros (“Deus não joga dados”, diria Einstein, tentando frear as conseqüências que seu teorema “tudo é relativo” provocaria, se aplicado a todos os campos da existência); e ainda a vida amorosa de Bacon, dividido entre o amor e a razão, entre o dever e o interesse pessoal. Pode parecer um samba do crioulo doido, mas o resultado está muito mais para uma ópera de Wagner.

Um dos grandes talentos de Volpi é entrelaçar a sua obra de ficção com a história real. A maior parte dos personagens citados, à exceção daqueles ligados diretamente à vida de Links e de Bacon, realmente existiram. São notáveis os trechos em que Volpi busca recriar o encontro entre Heisenberb e Niels Bohr, físico dinamarquês, professor de Heisenberg, e um dos chefes do projeto atômico dos aliados. O encontro aconteceu de verdade em Copenhague (Dinamarca), em 1941, mas não se sabe o seu conteúdo. Alguns dizem que ali houve uma tentativa de um pacto, em que os dois principais físicos daquele tempo se comprometeriam a não usar seus conhecimentos para montar uma bomba atômica. Há inclusive uma ótima peça de teatro a respeito, Copenhague, de Michael Frayn. Outro momento maravilhoso narra as tentativas dos cientistas alemães de tentar reproduzir uma fissão nuclear, em uma montanha no meio da Floresta Negra, com os aliados bombardeando suas encostas. A sensação de fracasso é mais forte que a de alívio pelos nazistas não terem conseguido a bomba antes do fim da guerra na Europa.

Estas são apenas duas passagens, mas há mais, muito mais. O principal, no entanto, é que Volpi não está preocupado em repassar conceitos de física quântica para seus leitores. Seu livro é um romance, ele sabe disso, e a todo momento em que a física parece querer dominar a narrativa, o humano se sobressai. Erwin Schrödinger, por exemplo, uma das grandes personalidades científicas daquele período, é descrito como um grande mulherengo. Einstein é um gênio, mas um ser humano que adorava voltar para casa acompanhado de ouvintes. Parecem detalhes, mas tornam a leitura mais suave. Sem contar com o mistério, que não permite que se largue o livro antes do fim. Novamente, um mistério relativo, sem verdades absolutas.

Assim, costurando verdade e ficção, em algo que o escritor Cabrera Infante chama na contracapa de “ciência-fusão”, um paralelo à ficção científica (em espanhol, ciencia ficción), Volpi nos enreda em uma trama deliciosa. E, o que é melhor, sem pretensão de mostrar verdades absolutas (já que elas não existem, ou você esqueceu a introdução deste texto?) ou dizer que os nazistas eram maus, e os aliados bons. Afinal, para os físicos, e não devia ser apenas para eles, a ética é relativa.

Em busca de Klingsor ganhou o prêmio Biblioteca Breve de Seix Barral em 1999, ano em que foi lançado na Europa. Volpi nasceu em 1968, no México, e é formado em Letras e Direito pela Universidade Nacional Autônoma do México e doutor em Filologia Hispânica pela Universidade de Salamanca (Espanha). Seus outros romances, entre eles El temperamento melancólico (1996) e Sanar tu piel amarga (1997) permanecem inéditos no Brasil.

Em busca de Klingsor
Jorge Volpi
Companhia das Letras
486 págs.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho