A busca da metáfora real

O grande tradutor Ivo Barroso mostra ecletismo e virtuosismo poético em "A caça virtual"
Ivo Barroso: “Há sites que abrigam milhares de poetas, em sua gritante maioria escrevendo a pior prosa que o país já teve”
01/04/2002

Ivo Barroso é figura rara: intelectual de ponta sem a arrogância dos “mestres da sapiência”, dos acadêmicos donos de feudos intransponíveis. Afinal de contas, grande parte de sua vida foi dedicada a este trabalho de “democratização cultural”. Foi por meio de suas competentes traduções que deu aos falantes de português brasileiro o melhor da poesia universal: Shakespeare, Rimbaud, Eliot, Leopardi, Montale.

Como já havia anunciado aqui mesmo no Rascunho a porção poeta invade de vez o espaço do tradutor. E a primeira publicação posta no mercado (Barroso já havia publicado outros dois livros em edições quase artesanais) é uma grande obra: A caça virtual. Foi numa conversa por correio eletrônico que ele concedeu esta entrevista, na qual demonstra o conhecimento, a visão, a sensibilidade, a crítica, a autocrítica e o bom humor deste que passa a ser um dos melhores poetas em atividade.

• A caça virtual é o seu primeiro grande lançamento, apesar da reconhecida vereda intelectual. Foi muito angustiante a espera deste livro? Aliás, por que só agora?
Toda espera angustia. Confesso que esperei muito pela Caça…, que começaria aliás com um poema que nunca cheguei a concluir e que daria título ao livro. Por fim, descobri que o poema permanecia inconcluso para justificar a minha indecisão. Resolvi publicar o livro sem o poema embora conservasse o título. Quem sabe um dia eu volte à caça.

• Aonde o poeta Ivo Barroso quer chegar com esta “caçada virtual”?
Naquele poema inconcluso, caminho por um bosque (versão moderna da “selva selvaggia”), onde encontro vários tipos de poetas (jovens) e dialogo com eles. São os representantes da poesia eletrônica, que prescinde da gramática e até mesmo dos princípios básicos da linguagem. Mas o poema termina com a esperança de que possa surgir desse emaranhado de equívocos uma voz realmente nova que exprima os gritos da tribo. Estou à caça dessa voz.

• Shakespeare, Eliot, Rimbaud. Qual é o espaço que cabe a eles no latifúndio da tua poesia?
Estão incorporados ao meu fazer poético. Muito aprendi com a tradução. O difícil é fazer com que se calem na hora em que falo por mim mesmo. Este é um problema de que já trato em certa parte de Papel & Chão.

• Os críticos, de uma maneira geral, estão dizendo que seu livro não é exatamente fácil. Reynaldo Jardim, por exemplo, escreveu na Folha de S. Paulo que “exige um leitor bem informado”. Por outro lado, o senhor optou por tirar as referências cronológicas, notas… O que o senhor espera dos leitores deste livro?
O livro não é difícil nem hermético, ou melhor, não é propositalmente difícil nem hermético, no sentido de que seu referencial exija decodificações exegéticas. Basta um razoável conhecimento mitológico para tornar um texto como a primeira meditação a respeito do Cisne perfeitamente inteligível. Há casos que pedem certo aprofundamento, como Le Tombeau de Couperin, que é o título de uma composição de Ravel, feita para homenagear cinco amigos mortos na primeira Guerra. Ravel presta um tributo ao mesmo tempo a eles e a Couperin, modernizando-lhe o estilo. Quis fazer o mesmo, porém só selecionei um dos cinco para o livro. Fiz questão de eliminar notas ou dicas no corpo do volume para que os poemas falassem por si mesmos, e se o leitor encontrar aí a aridez de um talo de flor nascendo num arenoso vaso de cimento num túmulo de cemitério, é tudo o que o poema pretende transmitir em sua estrutura minimalista. Como o livro aborda temas muito variados, o leitor pode escolher à vontade entre os poemas que mais o sensibilizem, já que todos eles pretendem sensibilizar de alguma forma.

• A maioria das resenhas tem apresentado A caça virtual como sendo sua “estréia”, como sendo obra de um poeta quase secreto. Ao meu ver quem traduz Rimbaud, Shakespeare, Eliot, Leopardi e Montale tem de, necessariamente, ser um baita poeta. Traduzir a obra destas figuras requer a inventividade, o talento, a visão, a sensibilidade dos raros poetas. O que você acha?
A Caça… é de fato uma estréia quando vista como meu primeiro livro de versos editado no Brasil. Tanto Nau dos Náufragos quanto Visitações de Alcipe, impressos em Portugal, foram edições restritas, fora do comércio. Eu me achava intimamente comprometido com a realização de algumas traduções de poesia que considerava fundamentais e por isso fui postergando a edição das minhas. Recriar o alheio chegou, em certo momento, a ser para mim mais importante do que tentar a afirmação do próprio, já que me havia preparado durante muito tempo para isso e me considerava então maduro para a tarefa. Meus poemas podiam esperar. Até o momento em que achei minha função de tradutor realizada, e sem muito tempo mais para esperar pela minha própria realização. A arte de traduzir foi para mim uma grande escola, de dicções, de estilos, de inventividade e técnicas. Acho que seria proveitoso aos poetas exercitarem-se de vez em quando na tradução de seus ídolos tutelares. A palavra “estréia” no entanto vem quase sempre associada a precocidade, a promessas, e pega mal quando empregada para alguém que apresenta o resultado final de suas esperas e experiências. Daí eu falar com freqüência em antologia, que pressupõe uma atitude menos precipitada, mais amadurecida.

• O crítico Barroso, que tem informações privilegiadas sobre a vida e a obra do poeta-autor de A caça virtual, classificaria de que maneira as várias fases contidas nesta obra. Como cada uma delas instigou a produção poética?
A Caça… é na verdade um expurgo dos vários livros que não cheguei a publicar, seja porque achasse a “fase” ultrapassada, seja porque o “corpus” não correspondesse ao que eu desejava então como poesia. Com isso ia protelando. Mas como eu próprio digo na abertura de Nau dos Náufragos: a espera cansa. E assim selecionei de cada um dos livros que não chegaram a ser, um ou outro poema que me pareceu apto a desafiar o tempo e concorrer com os do dia de hoje. Tive foi o cuidado de evitar colocá-los em ordem cronológica para não induzir o leitor a julgá-los em seu condicionamento temporal: se achar o poema bom, tanto faz que seja um soneto simbolista, um ideograma concretista ou uma estrofe em versos livres modernos.

• O poeta Alberto da Cunha Melo disse que seu livro “é um desafio para a chamada (…) ciência da literatura”, por apresentar, além de experiências formais, muito poemas que ele chama de “polimétricos”, ou seja, vários metros, cadência, ritmo, harmonia e conteúdo. Qual a sua definição de poesia?
Houve em meu aprendizado, ao longo desses anos todos, muita experimentação. Digamos, para afinar o instrumento. Salvei apenas aqueles poemas que, no meu entender, iam além do mero jogo formal e conseguiam incarnar algum sentimento digno de sobrevida, por mais estranha que fosse a sua forma. Nos poemas longos, pude “executar” várias espécies de instrumentos: desde os pífaros aos contrabaixos, passando pelas madeiras e cordas. Facilitou-me a tarefa ter divido o poema longo em “tempos” ou “movimentos”, como na música, o que permitia a mudança de tom ou sua variação. Daí ter jogado com uma multiplicidade de metros e cadências, do que resultaram estrofes “polimétricas”, que fogem aos cânones da poesia tradicional. É difícil definir poesia, mas ela se parece com a sensação daquele vago prazer estético que se apossa de nós quando ouvimos música. Só que nesta todo o valor está no som, ao passo que, na poesia, a chave se encontra na palavra, que na maior parte das vezes independe até de seu próprio significado.

• Em algum momento poeta e tradutor divergiram sobre os rumos de um poema?
Sobre os rumos de um poema nem tanto. No caso de Os poetas de setenta anos, que é uma glosa à minha tradução de Os poetas de sete anos, de Rimbaud, o poema original até que balizou o caminho. Tinha que ser o mais igual possível, do ponto de vista da técnica poética (enjambements, rimas ricas, etc.), mas exibindo a diversidade do conteúdo discursivo. Por outro lado, a simples percepção de uma palavra, frase ou modo de expressão de meus poetas traduzidos, que aparecessem no momento de feitura de um poema próprio, faziam com que fosse posto de quarentena e, por ocasião do livro, sistematicamente rejeitado. Não quero com isso negar influências, tenho-as como todos os poetas; apenas dizer de minha tentativa de não ser mais um diluidor.

• Seu livro começa praticamente com um poema de dois versos e acaba com um de trinta páginas. Virtuosismo? Exibicionismo? Afirmações de ecletismo?
São dois episódios distintos. Quando tentava traduzir o célebre verso de Ungaretti, percebi que era impossível manter em português o que foi dito na forma em que o foi. Em italiano o verbo é proparoxítono (illúmino) e as letras dobradas têm valor fônico além do visual. A função daqueles “mm” dá ao poema a forma física de sua imensidade. A solução foi preservar a forma e modificar o conteúdo, e até mesmo subvertê-lo, para obter um efeito semelhante. Mas aí já não era tradução e sim um poema próprio, embora me apropriasse de uma forma alheia. 50%, dediquei-o a Ungaretti e aproveitei-o para o livro. No caso de Papel & Chão, ele é um eco dos valores poéticos que cultivávamos desde os tempos do Suplemento Literário do Jornal do Brasil (Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Mário Faustino, anos ’60), quando Faustino preconizava a excelência do poema longo como a realização máxima do poeta. Ele próprio escrevia O Homem e sua hora. Mas só em 1973, morando em Portugal, senti que estava a ponto de fazer um longo poema, que seria uma espécie de mea culpa pelo fato de estar no primeiro mundo (Sião) enquanto o Brasil (Babel) vivia sob o asfixiamento da ditadura. Escrevi todo o poema (quatro partes) em uma única noite, na agência do Banco do Brasil em Lisboa, onde trabalhava na ocasião. O vigia noturno, vendo-me amassar folhas de papel, escrever desesperadamente à máquina, levantar-me, ler em voz alta e voltar a escrever com fúria, imaginou que eu estivesse louco e telefonou ao gerente do Banco que lá apareceu de madrugada, simulando estar de volta de uma festa. Só anos depois me revelou a verdade. O vigia telefonou para o hotel quando ele já estava de pijama; vestiu-se e foi até o banco. Olhou-me com certa preocupação, perguntou se tudo estava bem, eu disse que sim e ele se foi. Mal sabia que eu estava ralando a consciência, vertendo a minha bílis, celebrando o ritual da minha sagração.

• Depois deste grande livro, o poeta vai de fato prevalecer sobre o tradutor? Esta inversão é certa? Afinal, agora, o melhor da sua poesia não está “apenas” nas suas traduções, como o senhor costumava dizer.
Como já disse, considero encerrada minha carreira de tradutor de poesia. Minha última tradução nesse campo foi o Diário Póstumo, de Eugenio Montale, uma espécie de “compensação” por não ter traduzido Ossos de Sépia, seu livro que mais me impressionou e para cuja tradução me preparei durante muito tempo. Mas fico devendo, a mim mesmo e ao público, o terceiro volume da obra completa de Rimbaud (a correspondência), que ainda espero traduzir. O ponto final na tradução de prosa estou pondo agora: uns contos curtos de Svevo cuja temática é a doença e a velhice. Faço-o certamente por exorcismo, como tenho dito. A Caça…, pela sua aceitação junto à crítica e aos leitores, está criando para mim um compromisso: publicar outro livro de versos, desta vez com minha produção inédita e futura, que guarde — diversamente deste — a unidade que se espera de um poeta que pretende estabelecer a sua dicção. É um projeto que me assusta, mas ao mesmo tempo me encanta e desafia.

• Para o intelectual Ivo Barroso, a quantas anda a “nova profissão de fé” no Brasil?
É realmente assustadora a proliferação da pseudopoesia principalmente na internet. Há sites que abrigam milhares de poetas, em sua gritante maioria escrevendo a pior prosa que o país já teve, pois destituída de todos os ingredientes que poderiam transformá-la em poesia. Já não digo os instrumentos da chamada poesia clássica, como a métrica, a rima, a estrofação. Falta-lhes principalmente língua, capacidade oral, articulação, vocabulário, sem mencionar a inexistência absoluta das idéias. Além de tudo essa massa de equívocos cria um público, igualmente despreparado, que absorve esse produto como sendo poesia, incentivando com isso a proliferação dessas dengues poéticas. É claro que, como digo no poema, sempre há de se salvar algum que procura sua aurora noite adentro, feroz como um espermatozóide entre milhões de concorrentes, que irá fecundar o óvulo da poesia. E é nesse que deponho minha esperança.

• Qual é o desafio do poeta: jogar luz sobre a vida ou apresentar um ponto de vista diferenciado, criativo?
O poeta é um recordista de desafios. Creio que o maior deles é o trabalho alquímico de transformar a prosa em poesia. Se além disso consegue deflagrar em seu bruxedo uma fagulha, mínima que seja — sua visão do mundo — já estará criando alguma coisa, cujo valor e durabilidade irá depender de sua maior ou menor capacidade de expressar-se. Nem sempre é possível jogar luz sobre a vida; às vezes é até necessário obliterar o excesso de luz para tornar as coisas mais visíveis. A poesia também vive de sombras.

• O senhor tem afirmado que não quer ser mais um diluidor, qual é o caminho para uma dicção própria (ainda é possível fazer algo realmente novo?) e qual é a marca que Ivo Barroso quer impressa em sua poesia?
Sempre temi as diluições. Sofria ao ver um poeta novo repetindo, a mil furos abaixo, o torso de Apolo ou as elegias de Duíno. Dava-me pena ver toda uma geração imitando, sem as qualidades poéticas necessárias, os altos vôos de Drummond ou de Bandeira, ou tentando secar seus poços para se parecerem com a aridez que em João Cabral era orgânica. Digo a todos: tentem ser vocês mesmos; é preferível fazer uma poesia ainda bisonha do que macaquear essas alturas poéticas. O que eu chamo de criar uma dicção própria é encontrar um modo autêntico, nascido da necessidade íntima de exprimir sentimentos individuais, modos de ver, concepções do mundo e dos seres. Isso pode ser dito com palavras simples. Sem a necessidade de um karaokê com a música dos outros. Se abomino a profusão de “raps” que andam por aí pretendendo ser poesia, também não me agradam os “arranjadores” de melodias alheias. Não digo para ninguém esperar. Repito: a espera cansa. Mas não desperdicem a palavra inutilmente. Aprendam a cultivá-la, que é riqueza e dádiva. Todo poeta aspira a expressar em seus versos o seu próprio “tom” de voz. Sua maneira de dizer deve ser sua, só dele, distinguível na multidão como uma face de outra face.

• Qual o destino da poesia num mundo de superficialidade reinante?
Tenho afirmado que a poesia é uma atividade inteiramente inútil e por isso relegada a um espaço ínfimo no mundo imediatista em que vivemos. Mas ocupa ainda no fundo secreto do homem um lugar semelhante ao da crença e do amor — abstrações sutis que, no entanto, fazem-nos querer a luz e riveder le stelle.

A caça virtual
Ivo Barroso
Record
226 págs.
Jeferson de Souza
Rascunho