“Eu não sou filho de ninguém. Não reconheço a paternidade nem a maternidade de nenhum homem e de nenhuma mulher. Sou filho de mim mesmo, do meu espírito.” Este trecho de O despenhadeiro define com perfeição a literatura de Fernando Vallejo. Uma literatura raivosa, carregada de bile, tão confessional quanto testemunhal, órfã mesmo, senão filha raivosa de um senso crítico que beira a repulsa. Se Vallejo possui alguma pátria, é seu próprio ego. E se essa pátria é governada de alguma maneira, é por essa raiva. Nascido em Medellín, em 1942, o escritor colombiano vive no México há quase quatro décadas. Em 2007, no mais extremo de seus atos (que costumam ser sempre extremos), naturalizou-se mexicano e renunciou à cidadania colombiana, provocando polêmica no país, um dos alvos primordiais da sua prosa, ao lado da Igreja Católica e da estrutura familiar — a sua inclusive.
As controvérsias, de toda forma, não são novas na vida de Vallejo. Sua falta de piedade e condescendência com a hipocrisia católica (considera o Vaticano uma “empresa criminal”) e com a situação da Colômbia costuma tirar do sério até mesmo os jornalistas: em um vídeo disponível no YouTube (www.youtube.com), um comentarista religioso se indigna com as opiniões, digamos, pouco ortodoxas do autor. Em entrevista recente ao jornal O Estado de S. Paulo, Vallejo festeja que a aids, pelo menos, tenha diminuído em 20 milhões a população mundial. “Minha esperança é o vírus Ebola”, diz. “Esse, sim, vai animar um pouco essa festa.” Na mesma entrevista, chama o conterrâneo Gabriel García Márquez de “cortesão de Fidel Castro (…) que escreve uma prosa de cozinha”. Declarações assim, evidentemente, geraram um contingente considerável de detratores, mas também admiradores como o chileno Roberto Bolaño.
Músico na infância (dizem que promissor, um adepto de Chopin e Mozart), ele abandonou a faculdade de filosofia para estudar biologia e, mais tarde, enveredar pelo cinema. Chegou a dirigir três filmes, nenhum deles com grande repercussão. Passou, então, a se dedicar à literatura, começando na década de 80 com o ciclo El río del tiempo, composto de cinco livros. Sua obra mais destacada é A virgem dos sicários (1994), lançada no Brasil pela Companhia das Letras e que virou filme em 2000, pelas mãos do cineasta Barbet Schroeder (com roteiro do próprio autor). O despenhadeiro, que chega agora ao país, foi publicado originalmente em 2001. Como todos os outros livros de Vallejo, o romance parte de acontecimentos reais de sua vida, embora isso pareça inverossímil, tamanho é o desprezo do narrador — chamado também Fernando Vallejo — pelo próprio país e, sobretudo, pela própria família.
O retorno
Esse narrador, auto-intitulado “escritor de primeira pessoa”, volta à Colômbia após anos de ausência, apenas porque seu irmão Darío está prestes a morrer, não se sabe bem por quê. Ele, o narrador, sabe: está morrendo de aids, “essa doença de veados que está na moda”. Vallejo parece sentir um afeto verdadeiro por Darío, para compensar o ódio que nutre pela mãe, a quem chama durante todo o romance de “Louca”, e pelo irmão caçula (o “Grande Cretino” ou “aborto da natureza”). O irmão aidético acaba não morrendo imediatamente, e o narrador é obrigado a voltar freqüentemente ao país-natal. Relembra ali os momentos de hedonismo da juventude ao lado de Darío, quando enchiam um Studebaker conversível de rapazes e passavam o dia acelerando na estrada, fazendo sexo com esses homens e fumando maconha. Também com carinho lembra do pai, um importante político local, morto e desgraçado, na visão de seu filho, pelo casamento com a Louca.
Ao mesmo tempo, a metralhadora verbal de Vallejo dispara contra o máximo de instituições possíveis. Nada escapa da sua pena, do Papa João Paulo II (“que a partir de agora escreverei com minúscula porque a maiúscula fica bunduda demais para que esse preguiçoso a carregue”), tido por ele como um assassino vestido “como se estivesse indo para um desfile gay”, às autoridades colombianas, supostamente responsáveis pelo tráfico de drogas, pela corrupção e pela violência urbana. Como, em sua opinião, “o homem nasce ruim e a sociedade o piora”, sugere que sejam repartidas camisinhas envenenadas entre as crianças de rua, para que não se tornem criminosas no futuro. No fogo cruzado sobra até para o samba — “a coisa mais feia que a terra pariu depois de Wojtyla, o padre Papa, essa besta, verme branco viscoso, tortuoso, enganoso”.
E até onde se deve levar a sério — e mais, se deve admirar — essas opiniões tão biliosas? É o grande problema de O despenhadeiro. Vallejo não consegue, salvo em uma ou outra passagem, fazer com que seus argumentos mereçam ser ouvidos como mais do que uma piada de mau gosto. Pior: não convence de que sua argumentação é tão sólida e fundamentada quanto a de um pré-adolescente. E não é que seus alvos mereçam lá muito crédito. A situação da Colômbia — e da América Latina de modo geral — é realmente lamentável. Governos praticam e patrocinam violência, fomentam a corrupção, estimulam a burocracia e trabalham para dificultar a vida das pessoas. A família como instituição vive mesmo um período difícil, sufocada que está pelo egoísmo e pela própria violência que a cerca. E, por fim, a Igreja Católica de fato é hipócrita e contraditória. Para citar um exemplo recente, o Vaticano é tradicionalmente contra a manipulação de embriões, mas se manifestou a favor de tentativas de “escolher” através da genética a opção sexual da criança.
Falta talento
Só que a prosa de Vallejo é pobre demais para fazer valer suas idéias. Ora, da mesma forma que um ditador pode chegar ao poder apenas com seu talento oratório, para subjugar quem o escuta, um romancista depende de seu talento para converter o leitor em seguidor. Um exemplo emblemático é o austríaco Thomas Bernhard, que ataca frentes semelhantes às do colombiano – a ignorância travestida de catolicismo, a falsa moral de gente que finge decência em público e esconde podridão em particular, o empolamento ridículo de alguns artistas. Bernhard também é impiedoso, politicamente incorreto e exagerado, porém sua sintaxe circular, que acumula os impropérios de forma musical, quase bachiana, cria motivos e frases-chave para fixar incessantemente os argumentos e reclamações. O próprio Roberto Bolaño, na novela Noturno do Chile, ressalta com paixão e competência a podridão e a violência latinas.
Vallejo se limita a clamar e insultar, a vomitar bravatas sem se preocupar com qualquer forma narrativa. Há poucas variações de tom; o texto segue um ritmo monocórdio e modorrento. A pobreza retórica fica clara em frases de rebeldia juvenil: “Deus não existe, e, se existe, é um porco e a Colômbia, um matadouro”. Ou: “a vida é como uma aids”. Ou ainda: “estou pouco me lixando para a ciência. Se com ciência ou sem ciência vamos todos morrer do mesmo jeito…”. Seu narrador, ao chamar a mãe de cadela ou vagabunda, parece um menino mimado que aprontou e ficou sem jantar, como castigo. Em certa altura, ele comenta que o casamento dos pais é um inferno disfarçado de céu. Sua vida, ao contrário, pode ser classificada como um céu disfarçado de inferno.
O despenhadeiro só cresce quando esse narrador, talvez cansado de tanta intensidade, deixa entrever algum desespero e insegurança pela situação a sua volta. Ninguém pode ser sempre tão impassível e impenetrável, afinal. Infelizmente, para cada cena excelente como a que o narrador lembra como matou o pai para aliviá-lo do sofrimento, há frases como “vista-a na língua [uma camisinha] para que o padre não o contagie de aids com os dedos ao repartir o Cordeiro de boca em boca”. Se a intenção era ser um Thomas Bernhard, Fernando Vallejo não conseguiu ir além de Marcelo Mirisola.