Trecho de mar de dentro

Trecho do romance de Lya Luft
Lya Luft, autora de “Secreta mirada”
01/04/2002

Sinto-me um pouco intrusa vasculhando minha infância. Não quero perturbar aquela menina no seu ofício de sonhar. Não a quero sobressaltar quando se abre para o mundo que tão intensamente adivinha, nem interromper sua risada quando acha graça de algo que ninguém mais percebeu.

Tento remontá-la aqui num quebra-cabeças que vai formar um retrato — o meu retrato? Certamente faltarão algumas peças. Mas, falhada e fragmentária, esta sou eu, e me reconheço assim em toda a minha incompletude.

Algumas destas narrações já publiquei. São meu rebanho e posso chamá-las de volta quando quiser. Muitas eu mesma vi e vivi; outras apanhei soltas no ar, pois sempre há quem se exponha a uma criança que finge não escutar nem enxergar muita coisa da sua vida ao rés do chão.

Aqui onde estou — diante deste computador, nesta altura e deste ângulo —, afinal compreendo que não são as palavras que produzem o mundo, pois este nem ao menos cabe dentro delas. Assim aquela menina dançando no pátio na chuva não cabia no seu protegido cotidiano: procurava sempre o susto que viria além.

Então enfiava-se atrás dos biombos da imaginação, colocava máscaras e espiava o belo e o intrigante, que levaria o resto de sua vida tentando descrever.

***

Eu quis escrever livros desde que me lembro de mim .

Antes de aprender a ler, quando me contavam histórias — e em minha casa contavam-se muitas — achei que aquele haveria ser o melhor dos brinquedos. Era o jogo que eu queria jogar quando fosse adulta: inventar gente (na minha invenção eram todos minúsculos, eu é que mandaria neles) e brincar com palavras, sua música vibrando em meu pensamento ou pronunciadas em voz alta quando achava que ninguém podia ouvir.

— Está de novo falando sozinha, filha?

— Não, mãe, eu estava só cantando.

***

Este não é um livro para crianças, mas a respeito de uma.

Ou de várias: a que fui, a que os outros viam e pensavam conhecer, e as tantas que se desdobravam dentro de mim — harmoniosas ou antagônicas — além de algumas que ainda não sei quem são.

Visões, vislumbres como os que aqui relato podem parecer impossíveis quando se esqueceu a própria infância. Mas quem recorda como pensava o mundo antes de o convencerem de que dois mais dois são sempre quatro — este pode vir comigo.

Seremos como a menininha que brinca no tapete ao meu lado enquanto escrevo. Na sua dimensão de magia ela fala com bonecos, constrói castelos, ou se perde na contemplação do que ninguém mais enxerga — porém real como esta casa e este computador.

Há pouco veio me contar com olhos radiantes que tinham apanhado para ela um passarinho que entrara na sala . Depois de algum tempo, voltou dizendo que estava morto.

— Morreu — ela diz com os olhos inocentes de quem ainda não sabe o que é perda e separação. — E a gente plantou ele na terra!

Me olha, cheia de expectativa. Digo “que lindo!” e por um momento sou essa criança também.

Depois, lado a lado, nos entregamos cada uma à sua ocupação. Porém, cúmplices silenciosas, não temos nenhuma dúvida: no jardim vai nascer uma árvore de passarinhos. E quando soprar um vento forte sairão voando para todos os lados sobre os telhados, as árvores e as nuvens.

* Do livro MAR DE DENTRO, a ser lançado em abril pela Mandarim/Siciliano

Lya Luft

Nasceu em Santa Cruz do Sul (RS). É autora de Canções de limiar, Flauta doce,  Matéria do cotidiano, As parceiras,  A asa esquerda do anjo, Reunião de família, O quarto fechado, Mulher no palco, Exílio, O lado fatal, O rio do meio, Secreta mirada, O ponto cego e Histórias do tempo.

Rascunho