Toda cidade de porte médio e grande deve ter seu canto à inglesa, sua versão modernosa de Mermaid Club. Lá, toca-se rock ou qualquer coisa a ver com Beatles. As meninas se vestem de preto e colocam muito pó de arroz na cara. Os meninos usam também preto (alguns até arriscam o indefectível paletó de tweed) e têm todos o cabelo cortado à tigelinha. Cantam em bandinhas de garagem e, sentados, tomando Guinness a R$ 7 a lata, todos têm coisas interessantes a dizer. Todos com “cara de conteúdo”.
A cena é moderna e pode ser encontrada todas as noites no James Bar, aqui em Curitiba, mas bem poderia ter saído de uma das páginas de Contraponto, o clássico de Aldous Huxley, escrito ainda na década de 20, antes, portanto, da antiutopia Admirável mundo novo, pela qual é mais conhecido, ou pelo lisérgico As portas da percepção, livro que encantou aquele dublê de poeta, Jim Morrison. O lançamento faz parte de um projeto da Editora Globo que pretende relançar a obra completa do autor inglês, inclusive o hoje raro As portas da percepção. Agora em março, é a vez de xxxx.
Ler Contraponto hoje, 70 anos depois de sua primeira edição, passada a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, o Muro de Berlim e a Revolução da Informática, é perceber um livro que, a despeito de sua idade, é nosso contemporâneo de angústias. Um clássico, no sentido mais estrito da palavra, que merece ser lido à luz dos fenômenos culturais da contemporaneidade.
Até porque Contraponto (cujo título em inglês, Point counter Point, é muito mais interessante), já foi exaustivamente analisado ao longo do século 20, por gente como Otto Maria Carpeaux, que dele não gostava, e Paulo Francis. São possíveis, através dos tempos, leituras diferentes, cada qual com uma conotação política implícita, do romance. O que não convém a este texto.
Os aspectos formais do romance, como a estrutura polifônica de discursos repetidos que se entremeiam e deixam transparecer nos detalhes os pequenos conflitos de interesse entre homem e mulher, aristocracia e plebe, comunistas e capitalistas, são adendos que podem tornar a leitura mais agradável, num segundo momento. Por ora, vale a pena se ater ao discurso de Huxley e no que ele tem a nos dizer, com uma ironia amarga e uma estranha esperança no indivíduo.
Se há uma coisa que permeia todas as quase 700 páginas deste romance com um quê de século 19 em sua composição, esta coisa é o amor. Ele salta aos olhos do leitor porque é tratado com absoluta frieza por Huxley. Os amantes, em Contraponto, são todos infelizes, mas cada qual enfrenta a inerente infelicidade dos relacionamentos com coragem extrema. A coragem é algo muito marcante no destino seja de Philip Quarles, de Lucy Tantamount, de Walter Bidlake ou de seu pai, John Bidlake.
Dentro deste mundo de muitas vozes, sobressaem-se as de Walter, Lucy, Philip e Spandrell. Cada qual, a seu modo, amam e por isso enfrentam uma existência quase que desgraçada, que driblam com palavras falsas de pretensa inteligência. Mais ou menos como nossos amigos com “cara de conteúdo” do primeiro parágrafo.
Gosto de ler passagens de Contraponto à luz da contemporaneidade, ou melhor, à penumbra da contemporaneidade, porque gente inteligente (?!) que se preze não vive na luz, e sim nas sombras. Lucy, por exemplo, é uma viúva jovem e de palavras fartas. Gosta de ter a ilusão de viver entre a intelectualidade. Por isso, caça o jovem Walter de modo selvagem. Ele, por sua vez, deixa-se ser seduzido, ao mesmo tempo em que mata pouco a pouco sua mulher Marjorie, consciente da traição. Spandrell é um menino que enfrenta a rejeição ao padrasto e o visibilíssimo drama edipiano tornando sua vida uma sucessão de perdas. E Philips, bem, Philips Quarles é o homem imerso em idéias, em erudição, mas incapaz de ver o mundo ao seu redor.
Sentados em uma mesa num pub qualquer, a inteligência (?!) se reúne, enfastiada com a própria capacidade de formular pensamentos elevados, conquanto vazios de qualquer significação:
“A poesia pode ser demasiadamente verdadeira. Pura como água destilada. Quando a verdade não é nada senão a verdade, ela é antinatural; uma abstração que com nada se parece do mundo real. Na natureza há sempre tantas coisas estranhas misturadas à verdade essencial! Eis porque a arte nos comove — precisamente porque está depurada de todas as impurezas da vida real. As orgias verdadeiras nunca são tão excitantes como os livros pornográficos.” (p. 27)
Ás vezes, tem-se a impressão de que Lucy, Walter, Spandrell & Cia dão-se conta da fraude a que se renderam:
“(…) o silêncio está cheio de espírito e sabedoria em potência, assim como o mármore não trabalhado está cheio de grandes esculturas. Os silenciosos nunca depõem contra si mesmos” (p. 31)
Huxley escreveu Contraponto em 1928 e desde aquela época diagnosticava o que se tornaria a sociedade ocidental pós-Revolução Sexual:
“Hoje em dia os moços estão entediados e cansados do mundo antes de chegarem à maioridade. Um prazer demasiadamente repetido produz a insensibilidade; não o sentimos mais com prazer” (p.89)
Impossível falar de Contraponto sem falar de Philip Quarles, um dos mais interessantes personagens da literatura contemporânea. Philip é um homem inteligente. Talvez em nenhum outro coubesse também o superlativo. Inteligentíssimo, por certo. O problema é que Quarles só sabe viver no mundo das idéias. Ele perdeu praticamente o contato com o mundo real. Ao olhar uma pessoa passando fome, por exemplo, não se deixa tocar pela cena que em qualquer pessoa despertaria compaixão; começa, por outra, a tecer um longo ensaio sobre a fome no mundo e a relação disso com a poesia de William Blake ou coisa mais absurda. Neste cenário de inversão de valores, tem papel fundamental Elinor, a mulher de Quarles. Com resignação feminina, ela cultiva as idéias do marido ao mesmo tempo em que tenta lhe gritar ao ouvido a barbárie que é se render totalmente ao cérebro. Huxley traduz isso de maneira muito mais incisiva:
“Talvez fosse seu dever torná-lo infeliz, o mais sagrado de seus deveres…” (p. 137)
Não é à toa, portanto, que adiante Quarles começaria a dar sinais de estar ciente de sua enfermidade intelectual:
“Na arte há simplicidades mais difíceis do que as mais cerradas complicações. Ele podia conduzir as complicações tão bem como qualquer outro. Mas quando chegava às simplicidades, faltava-lhe o talento, aquele talento que é do coração, não menos do que do cérebro, dos sentimentos, das simpatias, das instituições, não menos do que a compreensão analítica.” (p. 318)
Só em Huxley pode-se ler deliciosas e inesperadas descrições que sintetizam a luta de um homem que lutou contra a cegueira desde os 17 anos e que, muito por conta disso, investiu pesado na dicotomia ciência versus Deus para compor sua visão de mundo. Ora, se não é um primor a descrição de Lord Edward, um cientista meio excêntrico, escutando seu compositor favorito: Bach:
“(…) O ar posto em vibração havia balançado a membrana tympani de Lord Edward; a cadeia de ossos — martelo, bigorna, estribo — tinha sido posta em movimento e fora agitar a membrana da janela oval, criando uma tempestade infinitesimal no fluido do labirinto. Os filamentos terminais do nervo auditivo estremeceram como algas num mar bravo; um grande número de milagres obscuros se efetuaram no cérebro, e Lord Edward murmurou extaticamente: ‘Bach!’.(…)” (p. 65)
Ou então a descrição da vida, a evolução do homem até o momento epifânico do encontro com Deus — em sua manifestação institucionalizada:
“Uma célula se multiplicara e se fizera verme, o verme se fizera peixe e o peixe estava se transformando no feto de um mamífero. Marjorie sentia-se nauseada e cheia de fadiga. Dali a quinze anos um rapaz haveria de receber a confirmação. Enorme em suas vestes, como um navio armado em galera, o bispo diria: ‘Renovais aqui, na presença de Deus e desta congregação, as promessas solenes e os votos que foram em vosso nome feitos no vosso batismo?’. E o ex-peixe responderia, com uma convicção apaixonada: ‘Sim’.” (p. 247)
Philip, Walter, Spandrell, John, Marjorie, Lucy e Elinor bem que poderiam estar sentados naquele bar do início do texto. Falariam sobre Paulo Leminski, comentariam o novo filme de um diretor desconhecido qualquer, se vangloriariam de suas capacidades de conquista, os homens chorariam os amores não realizados, as mulheres gozariam seus homens devorados, cantariam uma música de uma obscura banda islandesa, e sairiam para o fog costumeiro, apesar dos termômetros na noite marcarem mais de 30 graus. Dentro de seus sobretudos, suando pó de arroz, exibiriam belos dentes brancos na boca cuidadosamente delineada, fascinados consigo mesmos, fascinados com a própria inteligência. E, mal sabem, com a própria futilidade.