O alquimista luminoso do silêncio

Entrervista com Vicente Franz Cecim
Vicente Franz Cecim, autor de “K O escuro da semente”
01/03/2002

O paraense Vicente Franz Cecim, 55 anos, é um xamã da narrativa brasileira. Não quer a salvação pessoal. Cura a linguagem, misturando poesia, ensaio, prosa e anotações de viagem. Criou Andara, uma semente verbal que virou árvore falante, depois floresta e hoje é uma cidade pensativa de muitos afluentes e rios caudalosos, transfiguração da Amazônia, região natal do escritor.

Completando 23 anos de voz, desde o lançamento de A asa e a serpente, Cecim já recebeu o Grande Prêmio de Crítica da Associação Paulista dos Críticos de Arte, em 1988, e a Menção Especial no Prêmio Literário Internacional Plural, no México, em 1981. Pertence a uma genealogia de poucos e raros, como Guimarães Rosa. Sua intenção é mostrar o que ele mesmo não sabe, o conhecimento de ir se desconhecendo.

Com aval de críticos como Benedito Nunes e Leo Gilson Ribeiro, suas obras estão reunidas no Brasil em dois volumes da Iluminuras, Viagem a Andara (1988, 386 págs.) e Silencioso como Paraíso (1994, 315 págs.). Em Portugal, a editora Íman lançou Ó Serdespanto (279 págs.), eleito um dos melhores livros de 2001 pelo jornal O Público, de Lisboa.

O diferencial do ficcionista é o derramamento do canto. A literatura é fantasma; a obra, invisível. Não existe fim, nem início, serpente sonâmbula que morde sua cauda. O autor recusa a prepotência e conversa nos ouvidos do leitor, pedindo conselhos e partilhando a perplexidade dos mistérios. Em Andara, filósofos e poetas têm paridade com moscas e serpentes. Anjos, mulheres e aves exercitam a sabedoria da queda. Tudo é possível porque estamos no território do Nada. É a leitura do espanto e da estranheza.

Em entrevista ao Rascunho, Vicente Cecim lembra de seu filho assassinado, motivo que o fez adotar o Franz no nome para ser dois meditando num só, e diferencia a vertente oral (correnteza) da escrita (pedra).

Não se escandalize com o tom da conversa. Nascido “da suspeita das montanhas”, ele ainda vive no Antigo Testamento.

• Como define Vicente Franz Cecim? Fora e dentro?
Um serdespanto, mas isso todos nós somos, para isso basta ter nascido. E isso: Isso: que somos seres de espanto, é tudo o que nos é dado saber. Agora, cada um é um serdespanto à sua maneira: uns, mais ser no serzinho humano e menos no Ser de Tudo, outros mais sendo no Ser de Tudo e só um serzinho de nada em si mesmo. É uma questão de despertar o pequeno s para o grande S ou não. Mas haverá mesmo essa diferença? Provavelmente, não: somos sempre o grande S contido, Oculto, no pequeno s que somos. Talvez o que sou, não fora & dentro, mas no foradentro, já que essa divisão é pura aparência, possa ser dito por duas experiências que te conto brevemente. Dizem os antigamente havia homens que viviam cantando, só queriam saber de cantar, então os deuses os transformaram em cigarras: essas cigarras que hoje nos ciciam nos crepúsculos sobretudo, ainda seriam eles nos sendo em Cantos em coro junto com os cantos das folhas secas. Tu já ouviste folhas secas cantando no vento? Esse é a primeira experiência que me revelou estranhamente o que talvez sou: lá pelos 3, 4, 5 anos, morava num casarão antigo em Belém com muitos, muitos tios, tias, primos e os meus pais e minha avó, mas fugia do tumulto feliz da grande família para ficar sozinho na rua sempre deserta ao lado onde passava o muro imenso e compacto de um cemitério já então só habitado pelos mortos, o Cemitério da Soledade, onde ninguém mais era enterrado fazia anos. Era sempre no crepúsculo isso, e enquanto a luz ia se esvaziando na Terra que adormecia, as estrelas se esboçando no céu, e a lua branca, a que aparece para nos alucinar de dia, de olhos abertos, ia cedendo seu lugar à lua amarela, que aparece nas noites para nos alucinar de olhos fechados, e o Silêncio ia se instalando em tudo com sua presença sagrada de ausência dos sons: pois pense nos anos 50, um tempo lento e vazio das agitações modernas numa cidadezinha lenta como Santa Maria de Belém do Grão Pará: então, nesses crepúsculos melancólicos, como eu ia dizendo, as cigarras começavam a me chamar das gigantescas mangueiras enfileiradas ao longo do longo muro da Soledade: Ce cim Ce cim Ce cim. Foi a primeira vez, que me lembro, que pressenti o que eu fosse, o que eu era. A segunda vez, já um jovem, na Ilha de Mosqueiro, próxima a Belém, lugar de férias de toda a cidade no verão, uma manhã mal despertado quando lavava os olhos na janela que dava para o quintal e a água caía das minhas mãos e dos meus olhos, se deu outra Revelação: vi, lá embaixo, no terreno alagado do quintal da pequena casa de madeira da minha mãe Yara, a Felicidade, a Alegria de uma florzinha insignificante que se banhava nas águas dos meus olhos recém-despertos para a vida visível. Por aquele breve ou infinito tempo sem tempo, não houve homem & flor, todos os eus do Universo se desfizeram e só ouve o Nós, o Um, o Homem em Flor. E essa: Essa: alegria daquela florzinha me disse tudo o que eu precisava saber para o resto da minha vida sobre a Alegria natural que move e nutre, também com suas dores, pois esse é o sentido didático de existirem flores com espinhos, toda a vida em si, dos insetos às galáxias e mais, mais além das Galáxias e mais aquém dos Insetos. Veja, nessas duas experiências, a Progressão aproximativa: como esses Issos, pois não sabemos que nomes lhes dar, vão se chegando para nós. Mas com rigorosas exigências, que também desconhecemos. Primeiro, sob a forma das cigarras: sussurrando, mas se sob a condição da Penumbra. Depois, sob a forma daquela flor: já Cintilando, pois aquilo cintilou em mim para sempre, mas sob a condição inapelável da mudez, do Silêncio. Um entrega mais plena sendo dada: Luz&Silêncio, então, como um passo que apaga o anterior, a outra entrega: Penumbra$Voz, também fosse ficando para trás. Seria essa a origem mais remota de Andara, isso assim feito de livros obscuros ainda escritos que vão cedendo lugar a um não-livro sem nem sombra das palavras no papel que se quisesse só presença-ausência? Bem, foi assim como contei. E houve o pássaro enorme que desceu do céu sobre mim numa manhã chuvosa de Belém na minha juventude e mergulhou em mim profundamente, em meu peito, onde ainda está — mas é melhor não contar. Onde iríamos parar? Desde então fui entendendo que um homem não sabe o que é, só sabe de si essas Revelações que vai tendo ao longo da sua vida. No meu caso, é mais complexo. Sim: porque desde que incluí em mim, ou me incluí Nele, meu filho Franz assassinado aos 19 anos e passei a me chamar Vicente Franz Cecim, passei, passamos, a ser dois os que escrevem os livros de Andara, dois os que vivem, em Um, a vida: Ele na vida invisível lá, eu na vida visível aqui. O Pai & e o Filho, o Vivo & o Morto. Ó Serdespanto. Mas eu usei as palavras erradas: eu quis dizer: — O Pai aqui, ainda o Florescido & o Filho lá, já o Fenecido. Florescer, fenecer, entendo mais essas palavras a partir da natureza transeunte. Não entendo muito bem essas palavras, Nascer, Morrer, acho que elas têm certezas demais sobre coisas que não sabemos. Foi dessas formas que fui me sendo, me tornando, o ser de espanto que hoje sou aos 55 anos. Sempre encarei esses acontecimentos com muita naturalidade.

• O Livro Invisível é uma forma do autor se ausentar e deixar que unicamente a vida escreva, sem mediação?
É sempre a vida que nos escreve, nós não escrevemos nada, é o Nada que nos escreve escrevendo a vida, as paisagens, os homens, as chuvas, o vento, as vozes das coisas, seus cantos também, através de nós: somos o Lápis que Escreve o Livro que escrevemos vivendo. Os livros escritos são apenas cópias malfeitas desse Livro, e nossos lápis têm pontas rombudas. Mas um dia escreveremos como passarinho canta: de repente canta, e canta porque canta, sem saber por quê. Na verdade, não canta: e ela: Ela: quem através dele canta, a Vida real oculta em nós, em tudo. Mas lá em cima já falei errado de novo, preciso corrigir isso: eu não quis dizer Nada, essa palavra eu deixo à deriva no Ocidente, eu quis Vazio. Eu quis dizer: — O Vazio que transborda. É ele que nos escreve escrevendo a vida. Eu fui sabendo disso à medida então que ia escrevendo os livros visíveis de Andara, que são os livros que escrevo, os volumes individuais da Obra, e à medida que Viagem a Andara, o livro invisível que não escrevo, Ele é um não-livro, literatura fantasma, ia se formando: ia nutrindo esses livros para que eles existissem e deles ia se desnutrindo para existir em sua não existência. Andara me escreve, por isso escrevo Andara, que é a Amazônia transfigurada através de Mim. Se eu fizesse literatura apenas — o que não serve para nada, ou para muito pouco — e não deixasse a Literatura de lado para me dedicar, dedicar toda a minha vida, a praticar essa Alquimia de me tornar cada vez mais um ser de Escritura e cada vez menos um homem escritor, Andara não existiria. Andara, sabe o que é Andara: é um Serdespanto geográfico. Já a Amazônia é — poderia dizer só, para deixar bem claro — uma geografia espantosa. Mas é a Amazônia, a Natureza Sagrada, que torna possível essa impossível Andara. Tu vês: novamente se repete a parceria do Pai & do Filho, do Florescido & do Fenecido. Nesse caso, é a parceria do Real que nos Sonha com os nossos Sonhos do Real.

• Conversa continuamente com o leitor. Questiona, dá licença, compreende. É um recurso para extirpar a solenidade e a arrogância do escritor? A sensação é de que testemunha e lê a obra, não a escreve.
Desde jovem fascinado pelos livros, lá pelos meus 16 anos, me irritava muito uma coisa na Literatura: sua prepotência. A prepotência do Autor, a submissão do Leitor. Vivia dividido entre o fascínio e a irritação. Hoje entendo assim o que se passa: isso acontece quando no Autor ainda predomina, rígido, o homo faber & o homo sapiens vindo, não abre de par em par as portas como seria de se esperar, mas ele próprio um tanto prisioneiro de sua chave de saber e cheio de auto-suficiência, muitas vezes estraga tudo, encerrando o Leitor num círculo fechado em que determina todos os movimentos permitidos. Faltava o terceiro homem, que raramente vem se juntar aos outros dois na longa História da Literatura, mas que até às vezes — tão transbordante é o Vazio que através de nos transborda — de repente emerge do próprio Autor artesão, num momento em que ele martela em devaneio o ferro do seu texto. Quem era o ausente? O homo ludens. Foi ele que viu em Homero os dedos cor de rosa da Aurora, não foi? O homo faber viu a Aurora e não teve tempo para se comover com isso, o homo sapiens viu o sol reaparecendo após dar a volta à Terra e se apressou a registrou seus movimentos. Isso não basta para que as vértebras infantis cantem seus cantos em arte. Pois então. Eu ia lendo os livros, e pensava: a vida: a Vida: é que é importante viver. Tantos segredos velados a serem quem sabe desvelados. Me lembrava da Alegria da florzinha se banhando na água dos meus olhos, de outras coisas que me aconteceram depois. E ia entendendo que a Literatura freqüentemente mais velava do que desvelava a vida. E me sussurrava, só pra mim, escrevendo sempre, sempre, no meu canto, quieto: só escrevo um livro quando tiver conseguido eliminar toda separação entre o livro e a vida, entre a vida escrita e a vida vivida, entre a minha e eu que escreverei, e sobretudo entre o leitor e eu. E chamava, como depois passei a chamar o pássaro Curau, eu mesmo não, mas o personagem Jacinto de Os jardins e a noite: — Vem, homo ludens, vem levar os homens para os teus jardins de textos. E foi assim, adiando acrescentar infelicidade à infelicidade de uma literatura feita por homens confusos e leitores infelizes, que só escrevi — tentando escapar a essa Limitação — e então publiquei, o primeiro livro de Andara, A asa e a serpente, em 1979, já aos 33 anos, aquela idade em que se vai para a Cruz. Eu não queria ir para a Cruz, queria ir para baixo da Figueira. Foi conversando com os homens escondidos dentro dos autores dos livros, conversando, repare nisso, menos que lendo o que eles escreviam, que eu fui me tornando naturalmente um homem que de dentro dos meus livros converso com os leitores que estão fora do livro. Aí, eu puxo para dentro, como entrava nos livros que lia, e temos estranhas e íntimas conversas à sombra da Página em Branco, que vai se cobrindo, como as folhas secas das mangueiras das cigarras cantantes, de palavras. Dessa conversa participa o Universo inteiro, dela gostaria de conseguir um dia que toda arrogância fosse banida: no Livro Invisível de Andara um inseto tem tanto direito quando um homem de manifestar o seu espanto por existir. O autor freqüentemente é menos que os personagens. É mesmo mais como tu dizes: Autor, já quase só mera testemunha da vida se dando como vida escrita.

• Imagina um desfecho para a mítica Andara?
Os livros de Andara sempre terminam, devessem terminar com a frase: A viagem a Andara não tem fim. Admitir que os livros escritos de Andara pudessem ter um fim, isso seria como admitir que a vida visível pudesse tem um fim. Não peço que ninguém me acompanhe nisso que agora vou dizer, se não foi chamado pelas cigarras, se não teve a experiência do Homem em flor, se não recebeu e tem guardado um pássaro dentro do peito. Para ter um fim, uma coisa precisa existir. E os livros visíveis de Andara existem, a vida visível existe? A vida, a visível, escrita ou vivida, é da natureza das miragens. É isso que oscila entre o Florescer e o Fenecer. Ser de empréstimo, transeunte. Seu encanto é sua natureza de passagem. Suas palavras favoritas são Sonho, Efêmero, Fugaz. Existe é o transbordamento do Vazio, o vazio no centro que faz toda a roda girar. Existe é Vida invisível, mas dessa: Dessa: como falar a propósito dela a palavra Fim? Quando os livros escritos de Andara tiverem deixado de existir um dia, a Viagem a Andara, o Livro Invisível que não é escrito continuará existindo em sua existência de não-livro. Mas vê, repara: Andara não é mais só uma cidade, como você diz lá na pergunta, também com ela se deu o Gênesis dos caminhos vegetais ao longo desses anos todos de surgimento de Viagem a Andara, o livro invisível: Andara começou como uma Semente: era apenas um bairro esquecido à beira de um rio indolente da cidade de Santa Maria do Grão habitado pelos mortos de um cemitério esquecido e a floresta ia retornando sobre a Civilização, recobrindo tudo: depois Andara se tornou um Arbusto: foi quando ela, crescendo, se expandindo, se tornou a Amazônia inteira: depois, eis Andara Árvore, e dando seus frutos: foi quando sua expansão a levou a se tornar uma região-metáfora da vida inteira: agora, nos últimos livros escritos de Andara que vão nutrindo o não-livro invisível, eis Andara Floresta: ela pulsando lá, no bairro esquecido inicial, mas já vai indo desse pequeno bairro esquecido da cidade do Grão até às imensas distantes Galáxias. Andara sempre quis e o que mais quer é ir do Visível ao Invisível. E isso não é o caminho para um fim, que é sempre uma Queda, mas um percurso para a origem: a Origem de Tudo, o que é uma Ascensão.

• Fica entre a prosa e a poesia, ensaio e ficção. Ser inclassificável não o desagrada, condenando-o a permanecer num círculo restrito de iniciados e ainda longe do grande público? Não ter parâmetros ou antecedentes dificulta a difusão crítica?
Difusão interessa, mas pouco: interessa mais a infusão, aquela Alquimia, de que te falei no começo, em que tudo cesse suas vidas separadas e se funda no Uno: prosa, poesia, meditações, reflexões, texto em Escritura, insetos e homens, o Visível e o Invisível, o dito e o não dito, o Silêncio e a Voz, a página branca e a página escrita, o sonhado e o vivido. Andara quer a fusão total, quer a fissão que abra a Fenda por onde tudo se reencontre na Unidade Original. Deixa eu acrescentar uma coisa: Andara tem parâmetros, sim: mas não estão onde estão sendo buscados pelos leitores, pela crítica especializada em Literatura, não são parâmetros simplesmente literários: os parâmetros de Andara só podem ser achados na própria Vida. Para ler Andara, não basta saber ler letrinhas no papel, e, aliás, nem mesmo é preciso ler Andara: mas é indispensável conseguir ler através do lido: aí se renovará a Alegria que me foi transmitida pela florzinha que bebeu a água dos meus olhos quando eu era criança. E então se lerá Andara. É essa Alegria que escreve Andara. Não eu, que sem ela provavelmente jamais escreveria nada. É ela, como já disse, que através de mim inscreve o Vazio em Andara. Mas não é tão preocupante assim que Andara esteja um tanto fora do Mercado de Livros. Na verdade, não está. Como poderia, se o Mercado de Livros, como os insetos e as estrelas, já está dentro de Andara?

• As vozes de Andara estão sempre em trânsito, nunca satisfeitas. A busca do homem consiste em fugir de sua identidade?
A busca aflita, sim. Essas são as Vozes da busca aflita. E é assim que, na vida visível, as coisas são. Quase como disse Beckett: Como é. Mas eu penso que em Andara a busca do homem é exatamente o contrário: é fugir da sua não-identidade. Em Andara há uma frase-epígrafe: Atravessar o que nos nega, chegar ao Sim: e é assim que tu verás um S nestes dias cegos. Vê: Andara se faz perguntas, as perguntas que a Vida se faz. Ou que os homens imaginassem ela, a Vida, se fazendo. O que também é uma forma de perguntar: a Imaginação é a nossa maior boca de perguntas. Em Andara, se a pedra se pergunta: Um dia serei semente, e serei árvore, e darei frutos? Se o Vento se pergunta: que Pulmão me emite como voz sem palavras, por que às vezes cesso, e é como se nunca houvesse existido? Se o Homem se pergunta: a minha sombra é mais real que eu? Todas essas perguntas deixam de ser perguntas no momento em que são feitas e se tornam realidades de Andara. Andara, reconhecendo a ignorância humana, é Terra de Hipóteses. Melhor assim do que a arrogância tola de um Saber que ainda não temos. Mas vê que eu não sou o que se chama de um pessimista: eu disse: um Saber que ainda não temos.

• Sua obra é um elogio ao silêncio. Acredita que desaprendemos a residir na linguagem (não mais a habitando poeticamente)?
Esse é o equívoco: o Equívoco: nós não habitamos a Linguagem, ela é quem nos habita. Apesar de todos esses séculos de Literatura não teríamos aprendido nada? Ainda não entendemos o que significam as palavras: No princípio era o Verbo? O verbo está em nós, e não nós nele.

• Suas imagens são imagens-conceito. Emprega maiúsculas ao se referir à Morte, Compaixão e Sombra. Existe uma identificação ancestral com o vocabulário dos românticos e místicos?
Montanha, Pedra, Homem, Flor, Vento, Lágrimas, os Oceanos, as Sombras, a Compaixão, a Amizade, também o Ódio: em Andara todos são Seres, até a palavra Palavra. A Literatura será ancestral ou não será. É a Literatura que dorme dentro do Leitor que deve ser despertada, de dentro para fora. Ei, acorda. É um mal-entendido imperdoável que se faça literatura de fora para dentro. Ainda a arrogância de que te falei antes, lembras. Em Os animais da terra, segundo livro ainda de Andara, de 1980, Andara já se dizia onde queria chegar, pela voz de Eckhart: Ali onde os anjos supremos, a mosca e a alma são semelhantes.

• Bebe na fonte da filosofia e teologia, recorrendo de forma obsessiva às observações de Mestre Eckhart, Kant, Silesius, Plotino, Heráclito, entre outros. Com isso, valoriza a escritura como um processo de descoberta pessoal. A compreensão do ser implicaria na compreensão do mundo no ser. Lembrando de Novalis: “o Eu como caminho de acesso ao Universo”.
Temos uma grande sede, humana, então recorremos às Fontes. Mas Silesius, Plotino, Heráclito e outros, alguns visivelmente, outros invisivelmente, estão em Andara pelo mesmo motivo, pela mesma Lei que move e promove o encontro: a União de tudo que existe, ou não existe, em Andara. Esse grande encontro de insetos e ventos falantes com a voz de Nagarjuna, por exemplo, que me ensinou a Originação Dependente — de tudo o que floresce e fenece, as coisas transeuntes, emanações sem existência própria em si — que é um dos invisíveis presente em Andara, ou com a voz de Plotino, um dos já visíveis em Andara, que me ensinou que a vida visível ainda é emanação rarefeita da Vida invisível nos subúrbios da Vida e por isso também participa do sagrado: tudo me confirmando que o natural é sobrenatural e que o sobrenatural é natural — esse grande encontro é a celebração do Encontro que no fundo todas as coisas almejam e, porque almejam, é o que lhes dá sentido: esse Almejar. Novalis também disse: Somente a precariedade dos nossos sentidos não nos deixa perceber que vivemos num Universo feérico. Se um dia percebermos isso, terá enfim se dado o Encontro. Andara fosse esse Universo feérico revelado, ao lado do Universo feérico irrevelado que não vemos. Ainda não vemos. Mas um dia, como foi anunciado no livro de Andara que já citei Os jardins e a noite, naquele já distante ano de 1981, o Curau vai voltar para cegar os homens e libertá-los desses olhos que eles têm sob o sol para não ver nada e levá-los para os seus jardins. Se são pois essas as Luzes e essas as Sombras e indo nesses caminhos como vamos, como, então, sendo a criação de Andara uma Vertigem, uma queda livre para o alto que se dá assim, não haveria de nela se dar a aparição do Paracelso que nos disse que devemos ver a Luz que as próprias coisas emitem de si, porque a luz que vem de fora sobre elas nada revela, antes, as oculta de nós?

• Andara tem a mobilidade da tradição oral. É uma mesma história que muda quando repetida. São versões de um mesmo núcleo. Novos detalhes são acrescentados e outras lembranças agregadas. Cada novo livro trai a memória do anterior na medida que o reinventa? O que move o caminhante de Andara é o esquecimento? Andara sempre será um livro inacabado?
É preciso esquecer o que pensamos ser, para podermos lembrar o que de fato somos. O sonho de uma sombra, como disse Píndaro? Então sejamos. Só temos a chance de sermos o que somos, ou não somos. Não existe um fora para onde fugirmos e onde nos abrigarmos disso. Agarrados à pedra no leito do rio corrente, riverun, dizia Joyce, assim como nos mantém essa Civilização que é pura negação do Sagrado, da Natureza Sagrada das coisas, como poderemos nos deixar levar pela aparente corrente que vai até penetrarmos na verdadeira corrente, que é Aquela que vem ao nosso encontro? Rimbaud convidava a navegarmos sem os nossos singradores. Existe uma literatura Barco Ébrio e existe uma literatura Titanic. A literatura oral é rio, mas a literatura escrita quer ser pedra. De novo, a prepotência. Tudo muda, sem mudar. Assim como na vida, Andara também se faz como mudanças contínuas onde nada muda, ainda nada mudou, porque Andara ainda é muito pesada, muito a Pedra, e pouco o Rio. Onde achar a Leveza, a coisa aérea, que se ergue por si própria do texto — como da vida — ao mesmo tempo que as palavras depositam as suas raízes na superfície da página em branco, que as nossas ações recobrem as nossas ações? Gostaria de responder a mim mesmo a isto com duas citações. Uma, extraio do Manifesto Curau/Flagrados em delito contra a noite que escrevi em 83, e que me repito para não esquecer: — É preciso tocar o coração de Aquiles do real, ali onde ele é sensível e impaciente espera de um acontecimento total que o transfigure. A outra extraio de O livro por vir de Maurice Blanchot, quando falando do canto das sereias ele diz que esse canto é: — Tão semelhante ao dos homens que faz suspeitar da inumanidade de todo canto humano. Aqueles homens-cigarras que eu ouvi na minha infância. Ah, foram eles que acabaram em mim tudo o que ainda restava de literatura humana, se se pode dizer assim. É possível uma Voz mais bela. Escrever Andara é para mim tentar fazer ouvir novamente esse Canto. Mas, antes, é preciso erguer a Pedra.

• O real é aquilo que não podemos sonhar?
O real é aquilo que nos sonha.

• Há uma nostalgia da unidade, da totalidade. Hoje a literatura total é impossível? Como mesmo proclama em Ó Serdespanto, “já que estamos dentro do livro, ou do que restou dele”. O que vai publicado, na verdade, são as sobras do texto?
Os livros escritos, visíveis, como na Alquimia, são a Resídua, a borra, o que fica no fundo. Por isso a necessidade de deputar pelo Livro Invisível.

• Não vigora uma hierarquia entre os reinos. Verifica-se uma
mistura entre as aves e os murmúrios da terra e do lodo, do alto e do baixo, do sublime e do profano, como que reconstituindo um caos originário. Ao toque de paralelismos e versículos, sua matéria ficcional está mais próxima do Antigo Testamento do que do Novo?
O Antigo é o Novo. Só há o Antigo. O Novo é vaidade humana. Já falamos antes, nos antecipando, da inexistência de uma hierarquia em Andara, não foi? O Caos original não ficou para trás: ele é o próprio Presente. Ainda estamos agarrados na Pedra, lembra? Só temos o passado. O Rio ainda não começou a correr para nós, porque tememos as altas ondas que nos salvarão da segurança da pedra de sermos. 

• Como aprender a semelhança entre a pata e o gesto humano?
Esquecendo que há uma diferença entre a pata e o gesto humano. Mas jamais faremos isso, enquanto a nossa ignorância, a Avydia de que falava Gautama Buda, continuar desprezando a pata como coisa que ficou para trás, como ainda manifestação temível do Caos original.

• Seus personagens estão em perpétua queda. Todos os treze livros de Andara (reunidos em três volumes) são marcados pela negação. O que impede a ascensão? Até quando “atravessaremos o que nos nega, para chegar ao sim”?
Talvez, para muitos, seja terrível ter que dizer isso: O homem precisa se deixar cair do ponto insustentável onde se instalou para ter o direito de adquirir asas. Será durante a sua Queda que irá descobrir sua Leveza possível. Assim agarrado em seu próprio tronco, pendurado de si mesmo como se mantém, auto-suficiente fruta que não dá frutos, como poderá cumprir a sua missão de semear-se, de semear a coisa humana na Terra e ser a chuva inversa dos Céus? Em Andara está tudo caindo e tudo subindo. Andara é esse se cruzar no meio do caminho entre a asa e a serpente, passando pelo homem agarrado em seu tronco e lançando sobre ele Clarões e Sombras para que finalmente veja: a Terra lá no alto, o Céu embaixo de si. Vê, tu sabes que eu gosto de falar com as palavras das imagens. As palavras são ressequimentos, belos ressequimentos, mas nas Imagens ainda há o viço. Imagina: que estamos no centro da Terra, no coração do Coração da Matéria: e então aí alguma coisa vibra imperceptivelmente: depois, mais perceptivelmente, e vai se nascendo e é: uma semente: um caule: a luz do Sol e desabrocha uma Flor: que se vive, e depois vai murchando, fenecendo: uma parte se curvando, retornando à Terra, mas a outra: a Outra: o seu perfume, se evolando e ascendendo aos céus: sempre ascendendo, passando pelas aves que voam sob as nuvens e mais adiante já pelas Aves que voam por sobre as nuvens, e diz-se disso: Anjos?: e sempre subindo o perfume da Flor indo em sentido inverso à flor coisa fenecível, então irremediavelmente fenecida, e já deixando as Aves mais altas para trás e agora passando pela luz das estrelas, tantas Galáxias a ultrapassar, eis: o perfume penetra, também irremediavelmente atraído, como a flor fenecida pela Terra, na Luz que deu luz às estrelas: que agora também ficando para trás: é a Pura Luz que chama, Chama onde mergulha e na qual se funde o perfume: o Perfume: indo cada vez mais fundo através dessa Luz até tocar a Semente Sem Luz, a Semente que nem Luz é ainda: diríamos: a Semente sem semente: agora estamos no Coração do coração sem coração das coisas: e aí, eis: então alguma coisa vibra imperceptivelmente ainda não coisa: depois, mais perceptivelmente, e vai se nascendo e é uma semente: a Semente que está, sempre esteve nascendo no centro da Terra, no coração do Coração da Matéria. Ponto final. Eu te pergunto: saímos do mesmo lugar? Não. Esta não foi uma viagem entre dois pontos, foi uma viagem entre um ponto e ele mesmo. Não há dois pontos e um espaço entre eles a percorrer. Só a viagem: a Viagem. Só ela acontece. Só a ela é dado acontecer. Andara é essa viagem, entre dois pontos que não existem. Andara é o Lugar de Nenhum Lugar, por isso é o Lugar de Todos os Lugares. Ficou mais claro, agora?

“No estranho mundo, alguém está deixando
o pequeno porto
em seu leito de morte,

e isso nos faz mais lentos do que o cedro transformado
em leito macio

porque de madrugada alguém, que será outro,
acaba de nascer na casa verde ao lado.”
(Fragmento de Ó Serdespanto)

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho