Há o perigo de que os bombeiros, com suas machadinhas, escalem as paredes e destruam a biblioteca do escritor, segundo o conto Rinoceronte, de Paulo Venturelli, que é também um diálogo com outra ficção em que livros são destruídos. Cândido impressionou-se quando um homem desprezava os autores clássicos da literatura ocidental, entre eles Homero. Então não pode ter sido à toa que, lá pelas tantas no teatro de um cara chamado José Joaquim de Campos Leão Qorpo-Santo, a esposa de Mateus atirava livros na sua cabeça:
“Ai, cuidado quando atirar, senhora dona Mateusa! Não continuo a aceitar seus presentes se com eles me quiser quebrar o nariz! (Apalpa este e diz:) Não partiu, não quebrou, não entortou! (E como o nariz tem parte de cera, fica com ele assaz torto. Ainda não acaba de endireitá-lo, Mateusa atira-lhe com outro de História Sagrada, que lhe bate numa orelha postiça, que, por isso, com a pancada cai, dizendo-lhe🙂 Eis o terceiro e último que lhe dou para… os fins que o senhor quiser aplicar!” (p. 158).
A sensação que temos diante de certas obras é a de um universo onde são escassas as referências para pensá-lo ou associá-lo com aquilo que já conhecemos. Deve ser algo parecido ao dia que alguém é apresentado ao mar, ou, ainda me lembro bem, quando uma menina entrou na sala de aula, eu devia ter uns quinze anos, e encenou o poema E agora, José? Essas, é claro, são impressões boas, o que não acontece quando a falta de referências nos joga em um vazio. A leitura do teatro completo de Qorpo-Santo oferece essas duas experiências, e o leitor não pode dizer que tenha percorrido indiferente as 17 peças reunidas neste livro sem ao menos uma dúvida, uma inquietação a lhe sondar pelo dia afora.
Das artes, o teatro é, talvez, a que mais se contamina, vampiriza, desce até ao chão e se suja nele, dialoga com o cinema, as artes plásticas, a dança, a política. Também tem momentos de pedagogia. Serve o gosto das elites, em outras ocasiões mostra o dedo do meio para elas. Ainda assim, nesse universo de informações e possibilidades, os teatrólogos em atividade têm se esquecido de uma coisa fundamental: a literatura. Quando a peça é do próprio punho de um ator ou diretor, muitas vezes vemos textos apressados, ralos, com a data de validade indicando o fim da temporada. Obras da dimensão de Um inimigo do Povo, de Ibsen, e Os Dias da Comuna, de Brecht, não visam apenas a risadinhas prazenteiras, e niilismo.
Qorpo-Santo quebra logo de início com o protocolo. No texto O Hóspede Atrevido ou O Brilhante Escondido, o personagem Ernesto tem duas páginas completas de fala, o que nos palcos chama-se de “bife”, e certamente se tornaria inviável para a produção cênica atual. Para complicar mais, o diretor irá topar com a impossibilidade de adaptar extraindo o essencial de um texto em que tudo tem a mesma medida, ou melhor, em que não existem medidas. As idéias são fragmentárias, difusas. A ação dos personagens não se desdobra em tramas ou conflitos facilmente identificáveis, e termina sem que, afobados, possamos determinar um sentido prévio. A visão de mundo crítica é inegável. Ainda no primeiro texto, o personagem Ernesto desenvolve um raciocínio singular ao cismar que o homem deve, antes de tudo, servir, o que pode ser uma boa maneira de ascensão histórica. “…Quem subiu mais alto por sua palavra que Jesus Cristo, que os Demóstenes, que os Cíceros!? Quem, mais que os Napoleões, que os Alexandres, que os Césares por sua espada!? E quais, mais que os Palmersons, os Paranás, os Pombais e tantos outros, por sua política ou administração!?…” p. 29.
Os dois textos seguintes — A impossibilidade da santificação e O marinheiro escritor — podem ser cúmplices nos tons surreais mais ousados do escritor. O primeiro é encabeçado pelo personagem C-S (um símbolo do próprio autor) com uma crítica, presente em outros momentos da obra, à burocracia do período imperial brasileiro — mas essa crítica está mais latente e pessoal na peça (ou será conto?) Um credor na fazenda. O personagem também carrega o peso de diálogos com retórica de profeta e inconformado com o que vê na sua Porto Alegre:
“…Diversas direções tenho querido dar à população porto-alegrense… Falo dos homens e nas mulheres. Primeira: acabar a prostituição, o adultério pela prática do casamento de direito; e do simplesmente de fato. Segunda: enviar cartão com o número da casa e nome da rua à senhora que deseja a companhia deste ou daquele homem. Terceira: liberdade de irem elas à casa do homem que desejem, como fazem na Turquia , visto que os aleitamentos e os convites puramente espirituais raras vezes têm bom êxito…” (p.55)
Tratar com o texto de Qorpo-Santo é o mesmo que conviver com pessoas sarristas, não sabemos quando a pessoa está falando sério ou quando está mais uma vez pondo a prova nossos valores. A voz citada acima pode se dizer liberal comparada ao discurso que Qorpo-Santo incorpora aos outros personagens, donos de uma visão de mundo em que a mulher é um ser inferior, com seu papel já determinado na existência humana. Outras vezes, seguros acerca de tudo, com opiniões bem formadas sobre a política, os personagens se perdem no cotidiano absurdo. A partir do texto Dois Irmãos, observamos conflitos armados em que os supostos chefes de família, os empregados e as esposas são os protagonistas.
Contudo, histórias fáceis pareciam enervar esse escritor, ele as tripudia. Em A separação de dois esposos, a esposa Farmácia simboliza a desordem, enquanto o marido, Esculápio, a utopia de uma ordem imutável. Farmácia tem um namorado, Esculápio comete um crime. Ambos morrem. A maneira como acontece, e como é comentado ao final num diálogo entre os empregados Tatu e Tamanduá, revela bem o que o autor queria com esse modelo de história.
Realidade ou absurdo?
A obra de Qorpo-Santo tem percorrido escolas e épocas movida pela turbina da polêmica, que envolve o próprio conceito de movimentos artísticos como o surrealismo e o teatro do absurdo. A vida do escritor também ultrapassou e ultrapassa definições. Conta a história que José Joaquim de Santos Leão era um homem pacato. Nascido em 1829, levou uma vida normal, sendo professor de colégios públicos, entre outras atividades. Na década de 60 daquele século, sua explosão criativa resultou em oito volumes que ele cunhou como Ensiqlopédia, uma criação da sua própria linguagem, em teatro, poesia e prosa. Internado várias vezes em sanatórios, os médicos divergiam sobre o seu estado psíquico. Assim como os estudiosos sobre a relação entre a sua loucura e sua obra.
No século 20, nos anos 1960, a primeira peça é encenada e os críticos começam a lançar os primeiros comentários. Todos querem o status de tê-lo descoberto. Andando pela biblioteca de um amigo, descobri alguns estudos interessantes sobre o escritor, como o volume Travessia, número 7, de 1984, da editora da UFSC, edição voltada para o escritor gaúcho. Nela, mais uma tese vem a se somar a do teatro do absurdo e do surrealismo: a de que Qorpo-Santo não fugiu ao movimento que vigorava em sua época, o romantismo.
A professora Maria de Jesus Evangelista escreve que o teatro de Qorpo-Santo toca o movimento romântico na sua dicotomia entre o bem e o mal e na sua forma instintiva e que valoriza a inspiração. Acima de tudo, na sua extrema ironia. A comparação ao teatro do absurdo de Ionesco (como queria um dos primeiros pesquisadores, Guilhermino César) e aos surrealistas (segundo o ensaio presente no livro, de Eudinyr Fraga) não seria possível, tratando-se de dois movimentos providos de erudição e consciência sobre o objeto artístico.
São essas características de uma obra que faz rir também pelo rebuliço que causa entre historiadores e pesquisadores, mostrando-se escorregadia. Nesse chão deveras pisado, o que poderia tornar-se também motivo de reflexão é a relação de algumas peças com o período em que Qorpo-Santo viveu. A crítica aos valores da época, como aos burocratas que se esbaldavam em plena chacina da Guerra do Paraguai, por exemplo, é um sinal de que o escritor gaúcho olhou seu próprio tempo com uma lente a que os olhos da época, e ainda os nossos, estão tentando se habituar. Afinal, dizia Ionesco, a realidade que está aí é que é absurda.