Elogio de Hilda Hilst

Quando Erasmo de Rotterdam, em 1509, escreveu o seu Elogio da loucura, em que a figura emblemática dessa deusa às avessas sobe em um palco e desfila com muito humor toda a série de conseqüências benéficas
Hilda Hilst, autora de “O caderno rosa de Lori Lamby”
01/02/2002

Quando Erasmo de Rotterdam, em 1509, escreveu o seu Elogio da loucura, em que a figura emblemática dessa deusa às avessas sobe em um palco e desfila com muito humor toda a série de conseqüências benéficas que seu influxo sobre os homens gera, fazendo a sua autodefesa, creio que ele estivesse apenas deixando em evidência os prazeres do paradoxo, além de reforçar de maneira irônica a ambigüidade própria dos valores que norteiam as sociedades. Vários séculos depois, temos a loucura novamente personificada, mas em uma nova chave provavelmente não prevista pelo humanista holandês. Nesse meio século de produção literária ininterrupta, Hilda Hilst já nos presenteou com obras de uma singularidade e uma força que dificilmente se repetirão em nossas letras. Partindo de uma premissa que é teológica por princípio e formal por decorrência, sua prosa e sua poesia são uma espécie de dramatização consciente do Outro, que pode ser tanto a parte irredutível da experiência mística e sua tensão permanente com a linguagem quanto o ser Amado, aqui encarnado sob uma insígnia muito semelhante à que encontramos na grande tradição sufi de Rûmî, Attar e Hafiz, ou seja, na poética do esplendor e da iniciação. É assim que o enigmático Qadós e a delicada Agda emergem da escrita: mais do que personagens, são formas que se desenham na nossa percepção e tentam nos remeter, no fluxo verbal fragmentado, a uma suposta unidade supra-sensível, realizando um percurso inverso de interpretação em que Deus cifra no mundo sua mensagem para que possamos ler a sua prosa — a sua obra. Isso nos impede de aplicar aos textos de Hilda o tão desgastado e sonífero ramerrão formalista — e nos impede também de repudiarmos esses mesmos textos em benefício de uma hipotética carência de significados de que eles sofram. Espécie de espelho inverso, muito além do falso dilema entre uerbum e res, entre as palavras e as coisas, cisão, aliás, que deu origem à obtusidade da forma per si, que quer livrar-se a qualquer preço da reificação que impingiu a si mesma, e à tagarelice de vozes amorfas, a linguagem, para Hilda, é uma via de acesso à Coisa, que tantos ascetas já tentaram predicar e definir sem sucesso, mas que, nesse caso, se torna uma estrada ampla e fértil para a ficção.

Se a loucura é quem dá as chaves ou não, creio que isso não interessa. Dona de uma poesia cristalina, que ora remete à tradição elegíaca e amorosa grega e latina, como em Do Amor, Da Morte e Odes Mínimas, ora desloca o sentido do ser amado para uma dimensão quase alegórica, Hilda cumpre no artesanato verbal tudo aquilo que quis mitificar e mistificar em torno de sua própria vida, tornando assim ambas, mitificação e mistificação, inúteis. Se James Joyce bebeu seu conceito de epifania em Vico, Tomás de Aquino e Dante, e a partir deles deu um curso ao rio dos tempos, equivalendo-os em punti luminosi unificados no grande Tempo, e Guimarães Rosa partiu do Uno de Plotino para fazer a sua travessia pelo sertão que é, a um só tempo, também o mundo, para quê ir buscar no que é falível e singular em Hilda o que é muito maior que Hilda, nascendo dela? Não é um debate escolástico, mas uma simples constatação, por ironia e por acaso, escolástica. Porque a visão de mundo que depreendemos da obra de Hilda nos remete sempre a uma tradição que é, à primeira vista, de extração cristã, mas que se estende para uma compreensão mais ampla dos fenômenos sensíveis e esbarra no Deus panteísta dos antigos e no rito de outras civilizações. E quando Tomás de Aquino diz que Deus participa, está presente e se manifesta em todas as coisas, está retomando o nosso velho Platão que cria que o Belo se atualiza em todas as coisas belas, o que se assemelha muito, pela negativa e pelo escárnio, à nossa autora, quando ela diz que Deus está até no mijo e no escarro, e assim relê, talvez inconscientemente, o santo e o filósofo: fazendo a sua contrafacção. Nesse percurso é que Hilda situa sua ficção e sua poesia: nesse meio-fio onde o que se diz é mero indício de um não dito maior e inatingível, e o que se nomeia é e sempre será a sombra pálida do Verbo com que Deus nomeou inicialmente, mas ainda hoje se esconde atrás de máscaras para que perscrutemos a sua presença. Uma hora ele é o Cão de Pedra, outra o Grande Obscuro. Está sempre mudando, como esta escrita fluída e suas metamorfoses, mas é sempre idêntico a si mesmo. Afinal, ele nunca se move de si.

Ela, como Herberto Helder, pertence à tradição de uma alta modernidade que em nada transige com essa repetição infinita de cacoetes modernistas que nos acomete e aborrece todos os dias. Sua escrita é um dos feitos mais estimulantes e bem resolvidos que temos hoje em nossas letras, tanto do ponto de vista conceitual quanto técnico. E Hilda? Vai continuar sendo louca? Quererá continuar fazendo o elogio de si mesma? Dirá que está esquecida e mal lida? Ou falará mais alguma coisa sobre o seu desbunde sexual? Há um abismo entre a religião e o mito, Hilda. Tudo isso é desnecessário. Apenas os loucos de pedra não sabem o valor de sua obra.

Rodrigo Petronio

É poeta e crítico literário. Autor de Pedra de luz, entre outros.

Rascunho