Arte e sociedade — parte 2

No final do século 19, Van Gogh foi ridicularizado por pintar “patéticos borrões”
01/02/2002

No final do século 19, Van Gogh foi ridicularizado por pintar “patéticos borrões”, Manet causou rebuliço com seu Almoço na relva e Rimbaud, incendiário, insistia que era “preciso mudar a vida”. Foi o início da revolução modernista, do desregramento dos sentidos e do combate ao reacionarismo estético. Stravinski foi vaiado e Nijinski, hospitalizado. Por estas bandas, Mário de Andrade escandalizou o burguês-níquel e, mais recentemente, Roberto Piva declarou: “Só acredito em poeta experimental que leve uma vida experimental”. Apesar disso, o sistema, sempre ele, absorveu todos os rebeldes, transformando-os em mercadoria. Que nos resta hoje? No mesmo boteco do último Rascunho, continuamos a trocar figurinhas sobre a função do artista na sociedade moderna.

Caro Nelson, respondo a sua enquete de modo imediato, “na lata”. Mas não escrevi um depoimento: simplesmente respondi às três perguntas, visando a preservar a inteligência das questões e para que elas, as perguntas (que, às vezes, são mais importantes do que as respostas) não sumissem por trás do discurso do depoimento. Assim, do meu “depoimento” passariam a constar as suas três inquirições — se você aceitar isso como uma justiça e como uma homenagem. Pergunta: A literatura (e toda as formas artísticas, por extensão) tem o poder de modificar a sociedade? Se a resposta for “sim”, dê um exemplo claro em que uma obra literária, ou um movimento artístico, modificou uma sociedade. Resposta: Não. A sociedade segue indiferente, na sua marcha sensata ou insensata, mas os homens sensatos ou insensatos que fazem marchar a sociedade até poderiam se tornar melhores homens, se o fruto da solidão (que é a obra de arte) pudesse alterar, neles, a insensatez ou a sensatez demasiadas. Pergunta: Se a resposta for “não”, então o que é o escritor? Alguém comodamente posicionado na mesma sociedade que, em contrapartida, denuncia em sua obras? Noutras palavras: alguém habituado a cuspir no prato em que come? Resposta: O escritor é o onanista do espírito, e todos os bons onanistas são alheios e concentrados. Pergunta: Tanto os surrealistas quanto os beats propunham menos uma nova arte e mais uma novo modo de vida. Por isso sua rotina não era a da sociedade burguesa. Hoje, isso não existe mais. Todos temos emprego, plano de saúde, residência fixa, esposa e filho. Em que medida estamos sendo honestos ao propor, em nossos textos, mudanças radicais, sem que estejamos dispostos a pô-las em prática em nosso próprio dia-a-dia? Resposta: Não estamos sendo sensatos nisso, é evidente (e a sua meridiana pergunta expõe o paradoxo de forma bem clara). A arte é uma mão, uma janela que penetra na morte — e, da morte, morremos sem saber nada, sensatos e insensatos, na solidão que baixa como a neve calma.
Fernando Monteiro é poeta e ficcionista, autor de A múmia do rosto dourado do Rio de Janeiro

Acredito que a literatura pode modificar a sociedade, porque ela é a própria sociedade. A atitude de permanente revolta dos surrealistas e dos beats era contra o mercado (e a favor da sociedade). Ambos sintetizavam a ira ao consumo de costumes e à padronização de imagens. Derraparam quando se tornaram programáticos, contrariando seus princípios de liberdade. A linguagem é o reservatório natural de contradições e dilemas, o laboratório do real, o estaleiro do imaginário. Como a História, a literatura interpreta o passado, mas também tem o adicional de inventar o futuro. Cria seu lugar na falta de espaço, seu tempo na falta de tempo, sua dicção na mudez. Um movimento estético/ético que cumpriu o patamar coletivo de interferir e intervir socialmente é o da Geração de 27, da Espanha, formada por Lorca, Gerardo Diego, Salinas, Guillén, Alberti, entre outros. Foi um movimento de ebulição cultural sem precedentes na cena ibérica. Surgiu após a primeira guerra e seus principais integrantes combateram a tirania de Franco. O movimento teve influência decisiva seja na cena política, seja na artística, contribuindo para o surgimento de talentos em outra áreas, como o cinema (Buñuel) e a pintura (Dali). Eram amigos (não cúmplices), que se exigiam o máximo da expressão poética. O fato de ter um emprego, plano de saúde, residência fixa, esposa e filho não significam empecilhos ao engajamento. O que dificulta a formação da consciência de uma geração atuante é o isolamento entre os autores brasileiros, a complacência com os defeitos e a ausência de rigor.
Fabrício Carpinejar é poeta, autor de Terceira sede

Que eu saiba, João Cabral não morreu de morte severina. Mas isso ainda diz pouco, se há muitos na freguesia. Convenhamos, vidas secas viveram Sinhá Vitória e Fabiano, não Graciliano Ramos. O sertão de Guimarães — nonada — sempre foi um mar. De Rosa. Poesia não gosta de dinheiro, mas o poeta gosta. Diplomata se não mata, engorda. O Haiti sempre foi aqui. No Itamarati. E daí, qual o problema? Para ele, não tenho a solução. Tenho a visão. Não importa se vista da janela do condomínio ou de um buraco do Minhocão. Lavo as minhas mãos. Nos melhores sabonetes. Chega de joguetes. De achar que escritor fodido é escritor fodido. Mal pago e desempregado — no miserê. Como pode ele viver sem um prêmio em dinheiro? Cadê o leite do povo, não, cadê o prêmio Nestlé? É sacanagem. Minha literatura não tem preço, para todas as outras coisas uso Mastercard. Bosta, só meus personagens comem. E não gostam. Isso é o que me fode. Mas não me fode, entende? Quando termino um texto, a tristeza passa. De repente. Fico felizmente contente. No fundo, acredito na linguagem, não quero salvar o mundo. Salvar o mundo para quê? É muita coragem. Tenho vocação para escritor, não para santo. Morte aos mártires. Papel do escritor é escrever. E pronto. Quero também ter uma casinha no campo. Casinha não, casarão. Por isso, amigo leitor, comece me ajudando. Compre meus livros. E sem nenhum desconto.
Marcelino Freire é contista, autor de Angu de sangue

Um escritor passa pelas ruas para colher mistérios; outro se despe de pruridos para experimentar alguma crucifixação; outro ainda se revela íntimo de perversões… Cada um quer reinventar, representar ou reinterpretar a vida. Buscar o quê? Atingir-se naquilo que chamam ego? Fazer-se à margem de pobres mortais? Ser agente de transformação? Nada disso. Ou tudo isso? O escritor é apenas um trabalhador com apenas uma vida. Escrever para mudar? Falácia… Um escritor não muda nunca! Atitudes talvez façam refletir… Os beatniks foram contra-filósofos de uma burguesia hipócrita. Não mudaram muita coisa, além da própria maneira de ser. Os surrealistas desejaram inconsciências vitais. Também não mudaram nada, apenas relaxaram consciências e adeptos. O que quer o escritor, senão morder a cauda de um dragão invisível, sob a promessa de garantir minutos de fama ou algum trocado para sustentar a carraspana, ou passar pela vida mudando de face a cada espetáculo? Os escritores somos o que forjamos para nos satisfazer, entre pares e entre outros espectadores e entre os que nos esmagam. Os escritores somos vitais para a sociedade que desatina para o mundo além dela.
Jorge Pieiro é poeta e contista, autor de Caos portátil

Poder da literatura? Só mudanças íntimas, goteiras. Pessoas, talvez, na sociedade — alguma inspiração. Proposta de mudança: cada um com seu trabalho — digno, que o satisfaça e lhe proporcione conforto para ser feliz. Escritor: alguém que cospe no prato em que comeu; escarra na boca que te beija e ainda tá devendo. Não denuncio: é mais interessante o sujeito comum, o que se preocupa em pagar suas contas. Sou o lambe-lambe do meu bairro. O que vejo é meu tira-gosto.
Sérgio Fantini é prosador, autor de Materiaes

O escritor bem sabe que não tem poderes pra modificar a sociedade, quando muito possui forças pra promover pequenas barricadas — tomar de assalto alguns postos próximos da fronteira (que é pra não ser encurralado); quando não inventa seus próprios inimigos (quixotescamente mais inofensivos que os vilões de verdade, é claro). Que o escritor (ou o artista em geral) se sinta miserável frente à monstruosa máquina da sociedade, é algo plausível (sujeito sensível e inteligente que é), então lhe resta não apenas jogar terra na panela, cuspir no prato — mas mostrar que o rei não está devidamente vestido. Pode, sim (e deve!), colocar as perguntas certas da maneira mais certeira possível: porém nunca tentar respondê-las todas, que pra isto seria preciso fundar religiões, sistemas filosóficos, planos de governo…
Pedro Salgueiro é contista, autor de Brincar com armas

Ora, se com minha poesia nem mulher eu ganho, quanto mais interferir na insanidade nacional ou planetária! Livros podem mudar o mundo, literatura não. O livro que dá abrigo a doutrinas religiosas, por exemplo, age como arma, não como arte, mesmo que um dia tenha comungado com esta. Literatura é o belo coaxar do cisne imbecil, inapto para o vôo e para a reprodução. O escritor que pensa mudar a sociedade com a tinta que espirra no papel ou é tolo ou cínico. O primeiro não se dá conta de que a sociedade obedece a leis marciais, enquanto a obra de arte se submete apenas à marcha do inútil. O segundo… Bem, este está careca de saber que a cada minuto nascem dez trouxas, todos cegos, surdos e mudos. Nesse caso, quem tem um olho, uma orelha e um lábio repete, no programa do Jô, o velho ditado do rei que está nu. E vende um milhão de exemplares! Já o poeta, digamos, “de verdade”, que apesar de ser “de verdade” reclama que seus poemas não vendem, que os editores não estão interessados na sua arte, que as mulheres não o olham com outros olhos, esse deveria ser linchado em praça pública: é a besta mais quadrada do universo. Antes tivesse montado uma banda de rock, o panaca.
Valério Oliveira é poeta, autor de Mínimo eu

Se a literatura tem o poder de modificar a sociedade? Modificar, modificar, não sei, mas abrir tensões pra que uma coisa ou outra seja vista, e muito bem vista, pelo sujeito sensível, creio que sim. Mas aí, a meu ver, mora o nó: apenas pelo sujeito sensível. Não saberia dizer até que ponto me cabe aqui um exemplo possível dessa modificação, dessa transformação, a partir de um movimento, e menos ainda de uma obra. Mas há coisas que remexeram nas estruturas sociais, deixando-as mais graves, como o “Werther”, do Goethe, ou como as peraltices de temas e de linguagem de Sade. Porque o fato é que não consigo medir o pulso forte, numa relação social, humana mesmo, de humanização, da literatura de Machado, por exemplo, ou, mais radicalmente, de Rosa ou de João Cabral, se não estiverem como objetos de passagem das consciências que pretendem humanizar. Como também não sei até que ponto as obras de um Pollock ou de um Brancusi interferem nesse mesmo sentido. Penso que tudo isso depende, como disse antes, do que somos como sujeitos sensíveis, abertos, dispostos, em postura de dignidade e delicadeza conosco — com a nossa consciência individual —, depois com o mundo, com a vida, com o outro. Tanto faz se como artista ou como mero apreciador de algum bocado construído como linguagem. Acho que o escritor, ou — generalizando — o verdadeiro artista, o sério em dignidade, é de fato um esquizofrênico em dois sentidos. Primeiro ele é o que mergulha no fazer de sua obra tão verticalmente que esta passa a controlá-lo, e isso é maravilhoso. E aí, tanto faz os percursos que ela escolha para si. O que interessa é o fazer, o fazer e o fazer. Isso cumpre o sentido da vida. Modificar ou não alguma coisa é tarefa indireta. Em segundo lugar há o que se articula pra que junto do fazer da obra surja outro fazer, que é o de fazer a obra andar, condição guerrilheira até em países como o nosso, e não mais tão raro em qualquer outro lugar do mundo. Esse artista quase sempre se esquece do que de fato representa como artista. Daí, acredita que é nesse trânsito que a obra vai fazer das suas e modificar algo. Esquizofrenias serenas de quem pensa em criar algo. Esses dois, os artistas que me interessam, ao menos. Não sou nenhum cético ou pessimista; ao contrário, só muito preocupado (como disse o Saramago), mas acho que o mundo já era. Viver nunca foi moleza. Mas creio que é nas pequenas coisas, nos pequenos projetos compartilhados com delicadeza, amizade e carinho, que a arte ainda pode fazer sentido no tempo curto que temos, e mais sentido ainda para interferir nas questões sociais. Nas artes plásticas, por exemplo, penso nos espaços não institucionais e experimentais, que se erguem pautados pela radicalidade. Na literatura, penso em projetos independentes, algo como pequenas editoras que não estejam interessadas apenas em sobreviver nesta selva de homens-pigmeus-na-alma, e em autores que não queiram logo estar nos suplementos dos jornais ou laureados nas orelhas de seus livros, que, antes, se pautem pelo silêncio rígido de sua própria palavra impressa. Porque creio que a bobagem é a mesma se não nos pautamos por nosso silêncio ou por alguma radicalidade. Não se muda nada sem isso. De barulho e mesmice o mundo está esbaforindo. Viver é só isso, é pouco, é curto, é rápido demais. Obra deixada é feito herança: vão gastar por você, sem lembrar do homem. Obra em pé, a meu ver, é a que vive tão digna de tensões quanto o sujeito que a fez. Sobre os surrealistas e os beats, vale a provocação. Mas estamos no mundo, seja ele real ou não. E na hora que dói o dente ou aperta o bolso, é bom ter lá o plano de saúde ou a liguinha curta de dinheiro pro aluguel, pro cigarro e pra serenidade de botar a conversa em dia com os amigos — que é o que conta nesta vida. Daí, penso que uma possibilidade pra esta mudança radical de que estamos falando passa pela arte, acontece nela mesma, quando ela abre, rasga-se ao meio, recoloca-se, impõe-se, re-significando cada gesto que praticamos ou deixamos de praticar. Quando algo nos vira pelo avesso. Porque faz tempo que se tornou fácil falar, escrever, sujar o chão, rabiscar a tevê e não saber quem é o vizinho. O fácil enche o saco de qualquer pessoa, penso eu. Mudar, só se for com o muito. Queria ver (inclusive a mim mesmo) era cada um dar a cara pro mundo, olhando pra dentro de si, totalmente pra dentro de si, até raspar o próprio cérebro, a própria alma.
Manoel Ricardo de Lima é jornalista e poeta, autor de Embrulho

No próximo Rascunho, saiba o que pensam a respeito os escritores Luiz Ruffato, Aleilton Fonseca, João Anzanello Carrascoza, Renato Rezende e outros.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho