Filosofia para muitos

Pensadores descem do pedestal para alcançar os mortais
01/02/2002

Os filósofos sempre pareceram algo distante. Detentores de muito saber, era difícil conseguir que eles passassem este saber para a frente, não tanto pela falta de vontade, mas pela dificuldade em empregar termos e conceitos de fácil entendimento. Talvez isto pareça um paradoxo, pois afinal de contas os filósofos vivem de pensar o mundo e tudo o que acontece nele. E se nós vivemos neste mundo, ele não poderia ser de difícil entendimento. No entanto, poucos se arriscam neste universo às vezes hermético.

No entanto, desde o mega hit de O mundo de Sofia, de Jostein Gaarder, as coisas parecem estar mudando. Este livro foi um dos primeiros a tratar de filosofia tentando usar uma linguagem simples, com exemplos fáceis de ser compreendidos pelos meros mortais, e alcançou um sucesso estrondoso. Ainda que sirva apenas para uma breve introdução da filosofia, ele mostrou que havia um mercado para livros deste gênero. Três lançamentos recentes no Brasil, cada qual concorrendo em áreas diferentes, procuram ampliar esta popularização da filosofia.

Nessa leva, destaca-se O café dos filósofos mortos. O livro bem que poderia ser considerado uma nova versão de O mundo de Sofia, em que uma garota recebe cartas de um senhor misterioso que lhe mostra os caminhos da filosofia. Temos em O café… o senhor, aqui identificado, Hösle, que escreve cartas a uma garota, Nora K.. Suas cartas falam sobre filosofia.

Há no entanto duas diferenças básicas neste novo livro. Em primeiro lugar, a garota Nora K. existe realmente. Dos 11 aos 13 anos, período em que estão reproduzidas as cartas do livro, ela trocou correspondência com Hösle a respeito de filosofia. Ou seja, esta é uma Sofia que pode responder as cartas ao seu filósofo. Em segundo lugar, não há uma ordem nos conceitos filosóficos abordados no livro. Pelo contrário, Hösle vai conduzindo a discussão mesclando diversos filósofos de todas as épocas do pensamento humano.

Estes filósofos se encontram no café do título do livro, cujo nome completo é O Café dos Filósofos Mortos mas sempre jovens. A habilidade de Hösle é conseguir colocar na mesma mesa, em diversas situações, filósofos de diferentes épocas, como Aristóteles, Heidegger, Kant, Giambattista e outros tantos medalhões discutindo os temas propostos às vezes por Nora, ou então discutindo as respostas de Nora a determinadas questões filosóficas propostas por Hösle.

O começo do livro se dá com uma das questões básicas da filosofia. Se não existem mais dinossauros há milênios, a idéia dos dinossauros também terá acabado? A esta pergunta e uma primeira carta de Nora a Vittorio se seguirão tantas outras perguntas. A maior parte delas acabará girando em torno das crenças de Nora, educada em um colégio católico. Uma das perguntas será, por exemplo, se Deus criou o universo, Ele também criou o mal, ou criou os homens com a possibilidade do mal? Ou seja, Deus também é mau, já que Ele é a síntese de tudo? A maior parte das pessoas, obviamente, não gasta o tempo de se encher um copo de cerveja com esta pergunta. Mas vez ou outra se pegam perguntando o sentido da vida.

Esta é a idéia do livro, servir como uma introdução ao pensamento filosófico. Mais que introduzir a filosofia, Hösle e Nora pretendem mostrar como surge a filosofia em nosso dia-a-dia. Hösle retoma o ensinamento de antigos mestres, que diziam que a filosofia nascia do espanto. O filosofar nasce das nossas questões quotidianas, e não deveria nunca ter se afastado delas. Hösle sabe disto, e procura em suas cartas mostrar algo diferente. Pena que faltou uma revisão mais apurada no livro na hora de mandá-lo para a gráfica.

Outra vertente dos novos livros filosóficos procura combater com conteúdo a praga sem controle da literatura de auto-ajuda e de suas “respostas fáceis para problemas difíceis”, no estilo “você é a pessoa mais importante de sua vida, por isso você pode tudo”. Como a plebe parece adorar este tipo de afaga-ego, cabe ao filósofo adaptar um pouco de seu conhecimento para confortar as massas, sem abandonar a inteligência, porém.

O segundo livro em questão é de um queridinho da mídia brasileira, e um dos preferidos do nosso excelso presidente FHC, Alain de Botton. As consolações da filosofia é uma tentativa do filósofo de mostrar como as agruras do cotidiano do ser humano podem encontrar alguma espécie de consolo na filosofia, não importando o quão difícil tenha sido esta agrura.

Botton arrisca um pouco ao fazer associações um tanto quanto inusitadas para encontrar as consolações aos males da vida em grandes filósofos. Arrisca porque seria difícil alguém encontrar consolações para um coração partido em Schopenhauer, um solitário que não queria o ser, mas que assim permaneceu porque nenhuma donzela lhe deu uma chance. Schopenhauer, do alto de sua inteligência e talvez até como uma desculpa para si mesmo, garante que o amor nada mais seria que a manifestação da descoberta do pai ou mãe ideal, e que qualquer “fora” é nada mais que uma lei da natureza, dizendo que vocês faziam o casal errado.

As demais ilações entre os males que acometem a humanidade e os filósofos parecem inusitadas de vez em quando. Você é impopular? Bom, Sócrates foi condenado a tomar cicuta, pois seu método filosófico incomodava as pessoas. Ninguém gostava de se encontrar com ele, pois sabia que lá vinham perguntas. A frustração encontra alívio em Sêneca, que na prática pega uma lei de Murphy (este sim um sábio filósofo contemporâneo), aquela que diz “Sorria, amanhã será pior!”, e aconselha a se preparar até para o pior. Afinal, a Fortuna é uma deusa geniosa…

Epicuro, mais conhecido pela sua Carta sobre a felicidade, é o remédio de Botton para quem sofre com a falta de dinheiro. Antes que pareça incoerência, já que Epicuro amava a boa comida, os bons vinhos e o conforto em sua casa, Botton nos mostra que ele prezava antes de tudo outros valores que não materiais como os essenciais na vida de uma pessoa.

Por fim, os últimos dois filósofos citados são Michel de Montaigne, de cujas idéias Botton encontra as soluções para as inadequações sexuais, culturais ou intelectuais, e Nietzsche, que nos consola quando sentimos dificuldades. Novamente, aparentes paradoxos, mas que sob a ótica de Botton parecem ter sentido.

Obviamente é uma questão de ponto de vista. O filósofo francês extrai fragmentos das obras de cada filósofo analisado e com estes fragmentos constrói um texto permeado de situações vividas por ele, com uma linguagem que parece tirar sarro daquela utilizada nos livros de auto-ajuda. Como não há uma análise da obra completa de cada filósofo, pode-se ter a impressão de que toda a obra de cada um serve para apenas para aquelas consolações.

A iniciativa de Botton, no entanto, não deixa de ter seus méritos. Se Hösle e sua jovem aprendiz discutem temas altamente filosóficos mostrando que isto é possível para a plebe ignara, Botton mostra a esta mesma plebe que os filósofos estão mais próximos de nosso cotidiano do que imaginamos. No mínimo é um livro de auto-ajuda sem nenhuma resposta fácil, com conteúdo digno do nome.

Por fim, chegamos a um dos mitos da filosofia moderna, figura carimbada nos cursos de comunicação que se multiplicam feito coelhos. Senhas, de Jean Baudrillard, não é bem um livro. Seria mais como um apanhado de idéias deste que é considerado um dos principais filósofos de hoje em dia, escrito em pílulas. São 15 temas abordados por Baudrillard a partir de reflexões sobre a sociedade da comunicação de massa, e suas relações com o nosso universo.

Quinze temas para apenas 84 páginas é pouco. Baudrillard não chega a desenvolver completamente nenhum tema dos que propõe ao leitor. Ele meio que passeia por esses temas, ligando-os de acordo com uma lógica que lhe é particular, como se fosse uma conversa de bar em que a palavra “barco” pode estar mais próxima a “grama” que “tombadilho”, ou coisa que o valha.

A virtude de Baudrillard é que ele não se leva muito a sério nesta obra. Sem desmerecer suas idéias, parece um livro de filosofia no ritmo da fast food, “drops filosóficos para o intervalo da televisão”. Não há uma tese em discussão, não há uma conclusão, não há um objetivo para o livro que não mostrar ao leitor o que ele pensava no momento em que escreveu o livro. Ou melhor, no momento em que escreveu o roteiro do filme Mots de Passe (ou senhas, em português), pois o livro foi elaborado a partir deste filme.

E assim, a filosofia começa a dar alguns passos rumo às massas. Longe de considerar este um movimento reprovável, deve-se louvá-lo e incentivá-lo a crescer ainda mais. Quem sabe se os homens, pensando um pouco mais no mundo que os cerca, deixam de ser tão estúpidos em relação a tudo.

Resta apenas combater a afirmação de Michel de Montaigne, que declara, com toda a propriedade e muita, mas muita razão, que:

“Constatar que acabamos de dizer ou fazer algo estúpido não é nada; devemos aprender uma lição mais importante e de caráter mais amplo: não passamos de meros imbecis.”

O café dos filósofos mortos
Nora K. e Vittorio Hösle
Angra
272 págs.
As consolações da filosofia
Rocco
288 págs.
Alain de Botton
Senhas
Jean Baudrillard
Difel
84 págs.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho