Silêncios e linha de trem

Resenha do livro "À margem da linha", de Paulo Rodrigues
Rodrigues: linguagem limpa, sóbria, atual, condizente com a estrutura narrativa e os personagens
01/02/2002

Acho que das coisas mais bonitas desta vida, além dela mesmo, é correr riscos: correr uma linha de trem, por exemplo. A idéia de uma linha paralela nos trilhos que é infinita, como se pontos quantificados, colados um no outro, juntos, depois ao lado, num apontamento para o horizonte, que é uma outra linha, perpendicular à primeira. Depois, mais forte, o sentido de um percurso da máquina, o trem mesmo, que atravessa o tempo, corta, levando pequenos destinos sem o menor cuidado. Sua imponência parece não permitir cuidado. Um outro sentido, bonito, são os carros que compõem o trem: a estes, serenamente, chamamos vagões. (Sozinha, abandonada, esta é uma palavra bonita: vagão). Se vazios, densos; se cheios de gente, pequenos pares de olhos tristes ou alegres farejam por suas janelas um lugar de chegada, um lugar de partida. E talvez surja a pergunta: onde a felicidade??

Foi pensando nestes silêncios aí, rapidamente, meio bobos, talvez, que dei conta depois de ler a novela de Paulo Rodrigues, seu primeiro livro, À margem da linha. Como é, seria, por exemplo, escrever uma linha de trem?

Além, várias outras pequenas coisas, além destas primeiras dos parágrafos acima, foram lentamente sendo suscitadas também durante e após a leitura. Uma delas é a condição brasileira, da cultura mesmo, que nunca sabemos de onde, de fato, surgem as boas manifestações de gênio. Há sempre um tom, uma medida, da surpresa. Como os casos de um Garrincha ou de um Machados de Assis, sensibilizados pelo espasmo da existência, pela dureza desta vida e, depois, recolocados como sujeitos-eixo de nossa identidade difusa, torpe, confusa, bêbada, de pernas tortas, gaga, epiléptica, mas maravilhosa, delicada, bonita e inofensiva, principalmente, inofensiva. Menos a nós mesmos.

Paulo Rodrigues é nascido em 1948, em São Paulo. Consta que de origem humilde. E que teve acesso aos livros na adolescência quando sua família recebeu, em doação, uma biblioteca. Paulo hoje é assessor sindical em telecomunicações. E não que queira comparar Paulo ao gênio dos dois de cima, espero ser entendido, mas chamar atenção ao fato da condição de surpresa que sempre impomos a coisas assim, desta ordem, no caso aqui, por causa de uma maturidade com a narrativa que não é peculiar na apressada, sempre, produção literária brasileira. Uma maturidade que, a meu ver, também, não gostaria de dizê-la por causa da idade para isto ou aquilo, mas maturidade que está posta e vista no trabalho com o texto, na escritura da narrativa. Mesmo tivesse Paulo nascido ontem.

À margem da linha é o um andado de lado a outro sobre uma linha de trem, ou ao lado dela, de dois irmãos, o narrador e o Mano (que é a personagem nomeada e a quem o narrador toma como ponto de conversa e de referência de mundo), embrenhados numa busca do pai, encontrar o pai, trazê-lo de volta para casa. O Mano passa a ser para o narrador um estado modelo, forte, destemido, em pé. E este narrador sofre as agruras doídas deste mundo, quieto, calado, sozinho; mas há o Mano. Depois, há indícios que este Mano, mítico, heróico, é tão doído, pra dentro, pra fora, pros lados, triste e sorumbático, quase desistido do mundo, menos da busca do pai, quanto o narrador. O mundo deste narrador de dez anos é tomado por delicadezas de olhar e de percepção. E o silêncio, é este o ponto, entre, que não está dito no livro (ou que está dito em silêncio), mas está visto, que termina por separar os dois irmãos.

A construção de um mundo de párias suburbanas — os retirados das condições básicas de existência —, o diálogo com um preconceito inserido por condições de classe, a tese do abandono, do deixar pra trás o que talvez nem exista de fato, que é tomada como sentido da memória de uma consciência afetiva e algumas outras pequenas incorreções humanas são tratadas com uma seriedade que recupera aquela idéia, talvez batida, cansada, do encontro do narrador com seu justo, com a justeza de sua consciência e com a impressão que narrar é tomar verdadeiramente o sentido da experiência que nos é negada, que aparentemente sempre nos é negada, mas que, estamos vendo aqui, neste livro, pode ser minimamente pensada como uma experiência de nossos planos sensoriais.

Acho, por fim, que este livrinho bonito de Paulo Rodrigues (sempre me pergunto o porquê de não podermos mais achar que algumas coisas podem ser simplesmente bonitas, e pronto) traz alguns bons pensamentos acerca da atual produção da prosa brasileira, mais amplamente da condição da literatura brasileira no trato com a escritura mesmo e nas distensões entre a saída e a chegada do texto. Aqui, destaquei uma para elucidar isso.

De resto, voltando às sugestões que tirei de Paulo, o desvelo de perguntar ainda se o silêncio de um pode ser ponto proibitivo para conversar com o outro? Se o silêncio não é apenas coisa de dentro, para cada um, em si, e se a condição para se estar no mundo, convivendo, não é esta, a de narrar este silêncio, este não-dito, esta vontade de não dizer? Ou ainda, mais quietinho, se para guardar do outro o silêncio não carece, sempre, um apertado de mão, um beijo, um abraço pra recompor o vazio de palavra? Isto aqui são pequenos nadas que quis pensar também sobre esta linha bonita de trem que é mesmo a vida.

À margem da linha

Paulo Rodrigues
Cosac & Naify
110 págs.
Manoel Ricardo de Lima

É professor de Literatura Brasileira e Semiótica, na UNIFOR; coordenador do Núcleo de Literatura do ALPENDRE  — casa de arte pesquisa e produção (Fortaleza – CE); autor de Embrulho (poemas; 7Letras) e Falas inacabadas – objetos e um poema, com a artista plástica Elida Tessler (Tomo Editorial).

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