Tiro errado em sabiá cantante

Vou confessar uma coisa, mas não espalhe: Manoel de Barros é um dos melhores poetas brasileiros
Manoel de Barros, autor de “Memórias inventadas”
01/01/2002

Vou confessar uma coisa, mas não espalhe: Manoel de Barros é um dos melhores poetas brasileiros. Sei que o estilo dele nada tem a ver com o de Bruno Tolentino, por exemplo, outro nome que admiro, mas Manoel de Barros, a despeito do que se fale por aí, é um destes nossos homens mais caros. Obviamente que vamos desperdiçá-lo em vida, conquanto prevejo que o louvaremos a partir do dia da morte — isso se um astro pop qualquer não inventar de morrer na mesma semana, como aconteceu com Mário Quintana. Reza, Manoel.

Minha relação com o poeta não é pessoal. Nunca o vi sequer dando uma entrevista. Li num livro de José Castello a narrativa de uma entrevista com ele, o que me deixou desconcertado. Um homem bebendo um bom uísque definitivamente não combinava com os versos que eu lia com o prazer de um menino traquinas que bebe seu primeiro gole de cachaça à beira do rio, aos precoces onze anos. É que Manoel escreve sobre passarinhos — e não há nada mais bucólico que um passarinho. Apesar de morar bem no centro de uma metrópole com 1,5 milhão de habitantes, sou acordado todos os dias por um sábia que às vezes xingo de maldito, para, no átimo seguinte, lembrar de Manoel de Barros e maldizer meu mau humor matutino.

Agora, contudo, é mister que eu escreva sobre e para Manoel de Barros. Porque, meu caro, vem chumbo grosso por aí. Nunca a prosa do poeta foi uma unanimidade, claro. Até porque a sua exaltação da natureza vai contra os princípios extremamente urbanos da “inteligência” que tomou conta dos cadernos literários do País.

Na década de 60, Manoel de Barros foi descoberto como uma espécie de gênio enclausurado no sertão do Brasil. Sua poética era simples e direta, e sua ligação com o eterno enraizado na Natureza algo realmente pungente. Descobriram Manoel de Barros como descobriram que Riobaldo não era somente um Jeca monteirolobatiano lutando contra as palavras. Alçado ao cargo pesaroso de gênio, lá estava Manoel de Barros, pois, naqueles idos anos de valorização do poema e não do poeta.

Só que nas décadas seguintes o peso de um que outro idiota fez-se sobre a obra do poeta. Deitaram e rolaram sobre a falsa inocência da poesia de Manoel de Barros o triunvirato de nossos versos, a pior ditadura que nossa literatura jamais viu. Pignatari e os irmãos Campos, com seus versos (o termo não é exato) imagéticos, com suas teorias estapafúrdias para justificar a falta de talento, tripudiaram sobre a infantilidade madura do poeta, rotulando-o como um simples capinador de palavras, um poeta do Pantanal, como se só fosse possível fazer poesia em cima de concreto. Morto e ressurrecto do ostracismo várias vezes, Manoel de Barros completa 85 anos em que o que se comemora, na verdade, é um luta surda para a maioria, entre um espírito pautado pela livre associação e outros pautados pelo rigor mortis do raciocínio em hora inoportuna.

Ler os poemas de Manoel de Barros dá nisso: seu balão voa alto demais e o chão fica pequenininho. Se não há nestas palavras poesia, só pode haver algo de errado com as palavras (que meus olhos são muito bons, sim, senhor): (…) Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos./ Outras de palavras./ Poetas e tontos se compõem com palavras.

Gosto particularmente de um ensaio do poeta José Paulo Paes, que num momento de desvario também flertou com esta obliqüidade literária que é o concretismo, no qual o poeta, travestido de ensaísta, diz que a linguagem da poesia, em seus melhores momentos, se aproxima bastante da linguagem das crianças. Por favor, não confundir com a linguagem comumente usada em livros infantis de baixa qualidade. Isso se aplica perfeitamente a Manoel de Barros, apesar de não ser regra que se siga à risca. Afinal, que criança medonha seria capaz de escrever versos tão ríspidos e tão maduros como estes: A lesma influi muito em meu desejo de gosmar sobre as palavras/ Neste coito com letras!/ Na áspera secura de uma pedra a lesma esfrega-se/ Na avidez de deserto que é a vida de uma pedra a lesma/ escorre. . ./ Ela fode a pedra./ Ela precisa desse deserto para viver.

Meu palpite é que Manoel de Barros incomoda tanto porque isolado. Os poetecos modernos não conseguem mais imaginar a solidão como propulsora da criação. Pior: os poetinhas de hoje, guturais, cheios de parafernálias eletrônicas e cabelos multicoloridos e versos, claro, claudicantes, não conseguem perceber o hedonismo da melancolia do regime das águas, que dá um tom ameno a esta busca desenfreada e vã atrás da eternidade. E quem não consegue perceber nos versos de Uma Didádica da Invenção o real (e não o vulgar) sentido da beleza, está fadado ao versinho comestível num show de rock. Assim é que rezam os versos: Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:/ a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca/ b) 0 modo como as violetas preparam o dia para morrer/ c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos/ d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação/ e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos/ f) Como pegar na voz de um peixe/ g) Qual o lado da noite que umedece primeiro./ Etc./ etc./ etc./ Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho