Ou me amas ou destruo a Europa!

Resenha do livro "O segredo de Hitler — A vida dupla de um ditador ", de Lothar Machtan
01/01/2002

Hitler = genocídio. Hitler = ditadura militar. Hitler = Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Hitler = bigodinho esquisito com cabelinho engomado. Hitler = nazismo. Hitler = homossexualismo?

Adolf Hitler, ditador da Alemanha entre 1933 e 1945 e um dos principais responsáveis pela Segunda Guerra Mundial, a pior de todas enquanto não houver a próxima, é uma das pessoas mais conhecidas da história. Muito já foi dito sobre ele, e muito ainda provavelmente há de ser dito. Lothar Machtan, professor de História Contemporânea e do Tempo Presente na Universidade de Bremem, na Alemanha, afirma que há um detalhe que passou despercebido nestes 56 anos desde a morte a morte do ditador, e que seriam uma das principais explicações para as barbaridades que o ditador cometeu: Hitler era gay. (Será que Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia, incluiria mais este personagem em sua lista de celebridades homossexuais ao longo da história?)

Esta é a tese do livro de Machtan, O segredo de Hitler — A vida dupla de um ditador, um dos destaques da Feira de Frankfurt de 2001. O pesquisador afirma ter encontrado novos documentos sobre a vida de Hitler, e que o teor destes documentos confirmariam a sua tese, a de que o Führer alemão era homossexual. E que este aspecto seria uma das causas — não a única — que teriam levado Hitler a liderar uma das maiores tragédias da humanidade.

O autor do livro divide sua obra de acordo com os diversos momentos da vida de Hitler, dando atenção especial para o período entre o início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a tomada do poder por Hitler em 1933. Isso porque, segundo o pesquisador, esse período estaria registrado em documentos que não foram todos destruídos pelos nazistas após a tomada do poder. O período entre 33 e 45 tem pouca documentação, seja originada por Hitler ou por seus seguidores próximos, pois Machtan afirma que houve uma “devassa” das diversas polícias nazistas em busca de documentos que pudessem comprometer o Führer, e poucos escaparam.

A questão do homossexualismo de Hitler seria fundamental para compreender o ditador, de acordo com Machtan, pois tal opção sexual era frontalmente contrária à orientação 175, o artigo da constituição nazista que retirava dos homossexuais o seu direito à cidadania, e os condenava no mínimo a um campo de concentração. A história nos conta que não apenas os judeus, mas também os homossexuais, os ciganos e outras minorias morreram nesses campos.

O homossexualismo de Hitler, no entanto, não tem provas definitivas. Machtan afirma que concluiu isso com base nos documentos encontrados. Em todos eles, no entanto, não há frases definitivas sobre a homossexualidade de Hitler, ou mensagens de seus supostos amantes como “eu te amo”, ou “sinto tua falta”, pequenos refrães que todos os apaixonados, independentemente do sexo, utilizam em seus recados. Machtan utiliza um intrincado e complexo jogo de dedução para afirmar que houve uma tendência homoerótica no nazismo, que colocaria o amor entre os homens como mais forte e mais nobre que aquele entre o homem e a mulher. Este homoerotismo já era uma tendência de Hitler, e após a sua tomada do poder teve que ser escondido. Isso porque, ciente de que essa posição lhe seria bastante desconfortável (se o homossexualismo ainda é visto com ressalvas pela maioria da sociedade, imagine nos anos 30!), Hitler procurou apagar todos os traços de seu passado homossexual e silenciar os que poderiam falar alguma coisa sobre o assunto, seja aliciando com subornos seja matando.

Um dos que teriam sido mortos por Hitler por saber “demais” de seu passado homossexual foi Ernst Röhm, que junto com o Führer foi o responsável pela ascensão do partido nacional socialista ao poder alemão, e que foi o principal líder dos primeiros tempos da SA, uma das temidas polícias nazistas. Röhm era homossexual praticamente confesso, e era um dos mais fiéis colaboradores de Hitler. Seu assassinato aconteceu em julho de 1934, e junto com ele foram mortos outros 150 oficiais da SA, todos por estarem incomodando o poder de Hitler. A história oficial nos conta que a morte de Röhm estaria ligada a uma disputa de poder interna dos nazistas, e que Hitler, temendo a influência de um líder tão popular quanto ele, eliminou a concorrência. Machtan afirma que a morte de Röhm foi provocada principalmente pelo conhecimento que este tinha do homossexualismo do Führer.

Machtan lista diversos supostos casos românticos do ditador alemão. O mais longevo deles seria de Ernst Schmidt, que com ele serviu na Primeira Guerra Mundial. Usando de uma lógica um tanto quanto tortuosa, Machtan afirma que Hitler nunca quis ser promovido a sargento, mesmo tendo sido condecorado com a Cruz de Ferro de I Classe, por temer uma transferência de seu batalhão, que seria composto em sua maioria de homossexuais. Em tempo: a Cruz de Ferro também teria sido concedida como um favor de um homossexual a Hitler.

Depois da guerra, o futuro Führer tentou seguir uma carreira artística. Suas aquarelas, no entanto, nunca fizeram sucesso. Machtan afirma que, na Munique do pós-guerra, onde Hitler morava, era comum que prostitutos usassem a arte como estratégia para se aproximar dos homossexuais ricos. Primeiro o “artista” oferecia o quadro a um provável mecenas, este dizia que naquele momento não tinha dinheiro, mas que gostaria que o “artista” o visitasse com outras obras. O encontro sexual se daria então em um local reservado, sem alarde. Machtan vai além e diz que, como Hitler era um artista medíocre, e que na Munique daquela época havia milhares de artistas, o Führer necessariamente teve que se prostituir para sobreviver.

Os argumentos utilizados por Machtan chegam a ser quase convincentes, mas falta alguma coisa. A partir do terceiro capítulo, desconfia-se das verdadeiras intenções do autor. Isso porque ele simplesmente pega as informações que lhe convém e que servem para confirmar a sua tese, e descarta automaticamente aquelas que lhe são desfavoráveis. O uso de citações parciais de diversos trechos de documentos corrobora essa impressão. Fora do contexto, um “eu te amo” pode significar muitas coisas, até mesmo uma declaração de amor sexual entre um homem e outro. Mas Machtan não dá o contexto de onde foram tiradas as citações, apenas indica o documento sem reproduzi-lo na íntegra. Apenas uma carta de Ernst Hanfstaengl, que segundo Lothar foi um dos amantes de Hitler, aparece em fac-símile.

Todos os supostos denunciantes de Hitler têm contra si um passado de mentiras. Não é o caso de estar defendendo o ditador alemão, mas de apontar as falhas de um livro que pretende trazer à tona uma verdade definitiva.

Portanto, é temeroso dizer que Hitler, por ser homossexual e por necessitar esconder isso da opinião pública, cometeu muitos dos crimes mais bárbaros da história. As razões da Segunda Guerra Mundial, da perseguição aos judeus, aos homossexuais, aos ciganos são várias, e não podem ser resumidas em apenas uma opção sexual. No entanto, fica o mérito do livro de tentar ver aquele que é considerado o maior facínora da história pelo lado humano, sem no entanto tentar inocentá-lo. Se O segredo de Hitler não consegue realizar isso por inteiro, talvez sirva como uma boa primeira tentativa.

Há muito mais em uma guerra que bombas e batalhas

Terminada a guerra, os vencedores contarão a sua história, já que aos vencidos não lhes é dada a palavra. E os vencedores se ocuparão, basicamente, de narrar seus grandes feitos, suas maiores virtudes, e principalmente nomear os principais vilões dos crimes inenarráveis que os perdedores praticaram. Geralmente é isso que acontece. Poucas vezes se conta a guerra do lado do cidadão, aquele que não foi para a frente de batalha, e ficou em casa sofrendo com a falta de comida, com a tensão de ser convocado para o front, ou então com medo de ser bombardeado.

Se levarmos isso em conta, Os diários de Victor Klemperer — testemunho clandestino de um judeu na Alemanha Nazista (1999, Companhia das Letras, 896 págs.) é um livro excepcional. Em primeiro lugar, Klemperer é judeu, e sofreu na pele a discriminação dos nazistas desde a ascensão destes ao poder, em 1933. Em segundo lugar, Klemperer é um filólogo, e com sua erudição e cultura tenta fugir do lugar comum de dizer apenas que a guerra é ruim. Isso todos sabem. Klemperer procura analisar a sua situação de uma maneira racional, e tenta prestar fiel testemunho de suas experiências. Em terceiro lugar, Klemperer não foi para um campo de concentração, pois tinha 60 anos em 1941, quando as deportações começam em Dresden, cidade onde viveu, e era casado com uma ariana pura. Todos esses itens somados tornam o professor Klemperer uma testemunha rara e única destes tempos de triste memória.

Os diários começam em 33, pouco antes da Noite dos Cristais, que marcou a tomada do poder pelos nazistas. Ao longo dos dias e dos anos, Klemperer vai narrando a degradação progressiva da condição de vida dos alemães como um todo, e da sua e dos judeus em particular. Ele narra, por exemplo, o início das perseguições aos judeus nas escolas, e o afastamento tanto dos alunos como dos professores de toda e qualquer atividade didática. Klemperer narra também a discriminação na hora de pagar impostos, sempre maiores para os judeus. Como o ápice da derrocada pessoal, ele conta a sua expulsão de sua casa própria, pois os judeus não podiam ter posses, e a vida nas casas comuns de judeus. Daí em diante vem apenas a angústia diária, o medo constante de ser deportado para um campo de concentração, ou morto sem motivos pela SA, ou pela SS, ou ainda pela Gestapo, ou, por que não?, por algum cidadão comum meio nervoso.

Irônico, se é que se pode achar ironia em meio à desgraça, é que Klemperer não se considerava judeu, e nunca se considerou. Apesar de o pai ter sido um dos rabinos mais conhecidos e influentes da Alemanha pré-nazista, Klemperer nunca foi um religioso praticante. Seu casamento com Marta significou para ele uma outra tentativa de se “arianizar”. Em todo o diário, ele afirma e reafirma que sempre se sentiu acima de tudo alemão. Ele se descobriu judeu apenas por causa dos nazistas. E durante todo o seu calvário, registrou suas impressões.

Boa parte dos diários está dedicada à análise dos termos utilizados pelos nazistas, o que Klemperer batizou de Lingua Tertii Imperii (do latim Linguagem do Terceiro Reich), que após o final da guerra deu origem a um livro. Muitos discursos que eram divulgados pelos nazistas têm a análise do ponto de vista lingüístico, feita por um filólogo. A relativa distância que Klemperer tinha tanto dos nazistas como dos judeus lhe permite afirmar que, diversas vezes, os termos anti-semitas são os mesmos utilizados pelos sionistas, mudando-se apenas a direção do ódio.

Testemunho clandestino é uma obra pesada e longa. Sabemos desde o início que o autor sobreviveu ao pesadelo que foi a Segunda Guerra. No entanto, não conseguimos pular um dia sequer da narrativa de Klemperer, pois precisamos saber como e, principalmente, por que ele sobreviveu e não quis dar a si mesmo a solução mais fácil, que seria o suicídio. (AK)

O segredo de Hitler — A vida dupla de um ditador
Lothar Machtan
Objetiva
352 págs.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho