O desconcerto do mundo

Entrevista com Carlos Felipe Moisés
Carlos Felipe Moisés, autor de “O Desconcerto do Mundo”
01/01/2002

Na verdade, o livro ia chamar-se Desconcerto n.1 para Clavícula e Zabumba, mas acabou saindo como O Desconcerto do Mundo (Editora Escrituras, 350 págs.). Carlos Felipe Moisés, poeta, crítico literário e ensaísta, acredita que o primeiro não seria um mau título, “mas nos desviaria do objetivo principal, qual seja sugerir que o árduo tema do desconcerto pode interessar não só ao especialista, mas também ao amador de literatura”. Sendo assim, melhor o segundo, até porque — como diz Carlos Felipe — nem todo o amador ama clavícula ou zabumba: “Podendo até duvidar que o primeiro seja um instrumento musical, optei por um título mais modesto, e direto. Além do que, zabumba e clavícula, conjugadas, remeteriam abruptamente às estripulias surrealistas, ou arredores”.

O Desconcerto do Mundo é uma longa viagem do Renascimento ao Surrealismo, um ensaio vigoroso que passa por Camões, Bocage, Gonzaga, Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Eça de Queirós, Cesário Verde, Fernando Pessoa, Mário Cesariny, José de Alencar, Machado de Assis, Marcel Proust e um dos expoentes da Geração 60 de poetas de São Paulo, Roberto Piva, além de um capítulo dedicado à pintura, enfocando Gauguin, Cézanne e Van Gogh.

Quanto a Roberto Piva, trata-se de um dos ensaios mais belos escritos sobre a poesia de um poeta que até hoje tenta romper com tudo, e isso inclui com ele próprio. Já em relação a Marcel Proust, Carlos Felipe se detém no primeiro livro do autor de Em busca do tempo perdido: Les plaisirs et les jours, volume em que Proust reuniu, em 1896, alguns textos esparsos, prefácio de Anatole France. Proust tinha, então, 25 anos. Os elogios de Anatole France não impediram que o livro naufragasse num mar de raivas e críticas, algumas com palavras doces sem convicção. Jean Lorrain comentou o livro de estréia de Proust escrevendo: “Qualquer um, hoje, se considera escritor e vem incomodar a imprensa e a opinião pública com sua pequena glória, a golpe de jantares, influências mundanas, pequenas intrigas de ventarolas.(…) Todos os esnobes querem ser autores.(…) Os prazeres e os dias, do senhor Marcel Proust: melancolias graves, frouxidões elegíacas, pequenos nadas de elegâncias e sutileza, ternuras vãs, flertes inanes em estilo precioso e pretensioso”. Proust sentiu-se tão ofendido que desafiou o crítico para um duelo. A arma escolhida foi a pistola. Cada um teria direito a um tiro. O duelo foi realizado com pequena platéia aos arredores de Paris. Os dois tiros foram disparados. Nenhum foi certeiro. Os contendores continuaram vivos. Fora isso, a vida de Proust conta com um equívoco brutal de André Gide, cometido em 1912, quando Gide, que na época era consultor da Gallimard, recusou Du cote de chez Swann. Sequer leu o manuscrito enviado por Proust, alegando que o autor era “um esnobe, um diletante e um mundano”. Entre 1890 e 1910 Proust deu à poesia parte de sua dedicação, como diz Carlos Felipe Moisés, fazendo versos “mais ou menos bem metrificados”.

• Por que “desconcerto”?
De saída, o tema me atrai por ser substancialmente dialético. “Desconcerto”, no sentido de desordem, confusão, desarmonia, que é o sentido em que o termo aparece no título e no livro, é uma noção que não pode sequer ser pensada sem que se tenha em mente, o tempo todo, o seu contrário: concerto, ordem, harmonia. No livro, eu parto do Renascimento (Camões) e chego até o Surrealismo (Magritte, Cesariny), dirigindo aos escritores e artistas aí estudados, basicamente, a mesma pergunta: na imagem de mundo revelada (ou inventada) em suas obras, o que prevalece é concerto ou desconcerto? É uma viagem sem compromisso a cinco séculos de literatura, nas suas relações com o contexto de época em que essas obras e visões foram sendo gestadas, e sobretudo em suas relações com o tempo presente.

• Você falou em viagem sem compromisso?
É, viagem com roteiro bem flexível, livre, guiada pelo prazer da descoberta, sem aquele excesso de preocupação “técnica” que poderia resultar de uma concepção mais ortodoxa de crítica literária.

• E qual é o resultado dessa viagem?
Além do prazer de viajar, que já é muito bom, em si, quem sabe tenha ficado a idéia de que, no ponto de partida (o ponto de partida arbitrário, por mim escolhido, que é o Renascimento), o mundo aparece para o artista, predominantemente, como um todo organizado e coeso, lógico, pleno de sentido — a “máquina do Mundo”, como diz Camões — e o desconcerto é apenas entrevisto, aqui e ali, como elemento estranho e esporádico, potencialmente perturbador da ordem vigente. Quando Camões expõe a sua visão de mundo ordenado e harmonioso, o que está em causa é a confiança absoluta que, a partir da Renascença, o homem passa a depositar na Razão e na Ciência. Trata-se, portanto, de um ideal, de uma esperança, a ser concretizada pela natural evolução e pelo progresso — científico, tecnológico, espiritual etc. Já quando Camões abre umas frestas para a hipótese indesejada, e perturbadora, de o mundo ser só desordem e confusão — um “sistema de erros”, como ele também diz — o que aí se manifesta é apenas o vago receio, pessoal e excêntrico, do poeta clássico, de que aquele ideal de ordem e harmonia talvez nunca viesse a ser atingido.

• E daí por diante, como é que fica?
À medida que avançamos na direção do tempo presente, a literatura e a arte que vão sendo produzidas parecem inverter a equação camoniana e renascentista. Desordem, confusão e desconcerto vão-se tornando dominantes e o seu contrário, quer dizer, o ideal de ordem e harmonia, é cada vez mais utópico. Camões teve receio de que, um dia, o mundo fosse virado do avesso e perdesse o sentido. O artista moderno, pelo menos o de estirpe surrealista, sabe que esse perigo não existe: na sua visão, este nosso mundo sempre esteve virado do avesso, nunca chegou a fazer sentido, a não ser nas ilusões e utopias forjadas pelo medo do desconcerto. O Surrealismo não inventa o absurdo, apenas mostra que o rei está nu.

• E a poesia? Qual é o papel da poesia nessa visão de “desconcerto do mundo”?
Eu acho que a poesia autêntica, de qualquer época ou estilo, é sempre sinônimo de insubordinação. Desse modo — e até em Camões isso se verifica — a idéia de mundo ordenado é incompatível com a poesia. Por essa razão, aliás, é que Platão expulsou o poeta da sua República. Na sociedade ideal, concebida por Platão, regida por leis certas e infalíveis, não há lugar para o poeta, não porque este seja inútil, mas por ser perigoso. Deixado à solta, o poeta continuaria a espalhar a gratuidade de suas imaginações e fantasias, doses maiores ou menores de inquietação, que acabariam por minar a estabilidade da República.

• Dá para explicar melhor?
O ideal de um mundo ordenado, pleno de sentido, que é o ideal camoniano e renascentista, mas continua a ser partilhado por todos nós, ao longo dos séculos, sob as formas mais variadas… O que eu quero dizer é que parece natural o ser humano, em qualquer tempo, sonhar com a solução definitiva de todos os problemas, todas as dúvidas, todos os conflitos. Qualquer um de nós, acho, gostaria de poder olhar para o mundo, e para dentro de si mesmo, e descortinar um conjunto harmonioso, onde tudo tivesse explicação e onde cada coisa estivesse no seu devido lugar. Para Camões, graças às formidáveis conquistas do Renascimento, este sonho esteve, ou pareceu estar, muito próximo de sua concretização plena; para nós, é um sonho cada vez mais utópico. No entanto — e este paradoxo é que explica o fascínio da literatura — continuamos a sonhar com algo assim, embora nosso ceticismo não nos permita acreditar na possibilidade real de que isso venha a acontecer. Caso acontecesse, como na República platônica, por exemplo, tudo no mundo, em todas as dimensões, passaria a ser previsível. Aí está, a meu ver, a idéia-chave: mundo concertado é, ou seria, um mundo regido pela lei tirânica da previsibilidade. Neste ponto é que entra a insubordinação do poeta. Para o poeta (e isto vale para Camões ou para Roberto Piva, para Tomás Antônio Gonzaga ou Fernando Pessoa, vale enfim para todo poeta genuíno), nada que seja previsível tem o menor interesse. A poesia — esforço permanente no encalço do desconhecido e do inexplorado, dos paradoxos e da ambigüidade — está sempre à beira do caos e do desconcerto.

• A poesia, então, é sempre subversiva?
Eu acho que sim, desde que não tenha a intenção declarada, ostensiva, de subverter seja o que for, em nome de qualquer “programa” preestabelecido, porque aí vira panfleto — sempre absolutamente previsível, aliás — e não subverte nada.

• Mudando um pouco de assunto, você acaba de traduzir poemas de Marcel Proust — um dos capítulos deste O desconcerto do mundo, aliás, trata justamente dessa questão. Quem é que sabia da existência desse livro de estréia de Proust (Os prazeres e os dias, 1896), que contém uma série de oito poemas?
Para começo de conversa, eu não sabia. Fiquei surpreso quando a editora (Editora do Brasil) me encomendou a tradução desses poemas. Eu nunca tinha ouvido falar. Andei conversando com várias pessoas bem informadas, inclusive alguns leitores assíduos do escritor francês, e ninguém tinha ouvido falar desse Proust poeta, anterior a Em busca do tempo perdido (1913). A genialidade do romancista obscureceu completamente o poeta, que aliás não reincidiu, ou pelo menos não voltou a publicar poesia, embora continuasse a versejar até quase o fim da vida.

• Quem é, então, o poeta Marcel Proust?
É um poeta que provavelmente decepcionará os leitores familiarizados com sua prosa. Enquanto o Proust de Em busca do tempo perdido é um artista refinado, criador de um dos marcos mais avançados da moderna prosa de ficção, o Proust poeta é apenas um discípulo aplicado de Théophile Gauthier, o líder do Parnasianismo, e de Paul Verlaine, por exemplo, um dos principais adeptos do Simbolismo. A prosa proustiana é uma das pontas-de-lança da literatura do século 20; já a sua poesia está ancorada, timidamente, no século 19 — não o século 19 precursor do Modernismo, como em Baudelaire, Rimbaud ou Mallarmé, mas o século 19 acomodado e convencional, como em Gauthier ou Verlaine.

• Você traduziu os poemas conservando a métrica e a rima. Como foi esse trabalho?
O trabalho teve duas etapas. Primeiro eu li uma quantidade de vezes os poemas e daí brotou, de modo mais ou menos espontâneo, uma tradução corrente, centrada na estrita fidelidade aos sentidos, e o resultado, é claro, não tinha nada a ver com as estruturas versificatórias do original. Isso não seria uma tradução; embora fiel aos sentidos, ou justamente por isso, seria só uma aproximação do “conteúdo” do texto. Aí começou a segunda etapa, a tentativa de reproduzir o casamento possível entre forma e sentido, expressão e conteúdo. Na tradução de poesia (aprendi-o com José Paulo Paes, Augusto de Campos, Ivan Junqueira e outros, e procurei seguir a lição dos mestres) o que se traduz não é o simples sentido, mas o efeito obtido pelo cruzamento de ritmos, formas, quantidades e cargas semânticas. No caso, me pareceu evidente que a identidade dos poemas parnasiano-simbolistas de Proust é indissociável da métrica e da rima. Aí começou o trabalho para valer: conseguir, em português, a mesma uniformidade do metro alexandrino, o mesmo jogo resultante da regularidade das rimas, mantendo o máximo de fidelidade ao sentido — um duplo objetivo, que eu considero virtualmente impossível. Assim, tomei algumas liberdades, umas ligeiras adaptações de sentido, para que o efeito antes referido resultasse fiel ao original. Espero pelo menos ter chegado perto.

• Foi mais uma experiência de desconcerto?
Foi, sem dúvida. Terminada a tradução, uns meses atrás, escrevi um longo ensaio a respeito desses poemas proustianos, logo incorporado ao livro sobre o tema do desconcerto, que estava quase pronto. É que me intrigou muito este fato: um prosador avançadíssimo convivendo com um poeta extremamente conservador. Cheguei à conclusão de que isso não é uma idiossincrasia de Marcel Proust, mas um traço característico do desconcerto geral do mundo moderno.

Chopin

Marcel Proust

Chopin, mer de soupirs, de larmes, de sanglots
Qu’um vol de papillons sans se poser traverse
Jouant sur la tristesse ou dansant sur les flots.
Rêve, aime, souffre, crie, apaise, charme ou berce,
Toujours tu fais courir entre chaque douleur
L’oubli vertigineux et doux de ton caprice
Comme les papillons volent de fleur em fleur;
De ton chagrin alors ta joie est la complice:
L’ardeur du tourbillon accroît la soif des pleurs.
De la lune et des eaux pâle et doux camarade,
Prince du désespoir ou grand seigneur trahi,
Tu t’exaltes encore, plus beau d’être pâli,
Du soleil inondant ta chambre de malade
Qui pleure à lui sourire et souffre de le voir…
Sourire du regret et larmes de l’Espoir!

Chopin

Chopin, mar de soluços, lágrimas, suspiros,
Que um vôo de ágeis borboletas atravessa,
A brincar com a tristeza, a apascentar seus giros.
Seduz, aquieta, sofre, agita, grita, apressa,
Ama ou embala, e faz rolar em meio às dores
O doce olvido do capricho teu, fugaz,
Como as borboletas embriagadas de flores:
Tua alegria é cúmplice da dor tenaz,
O alado torvelinho amaina os dissabores.
Das águas e da lua meigo confidente,
Príncipe da aflição ou grão-senhor traído,
Quanto mais pálido mais belo, entretido
Com o sol a inundar teu quarto de doente,
Tu te exaltas com a luz, a bem-aventurança
Da luz que chora o seu sorriso de Esperança.

(Tradução de Carlos Felipe Moisés)

Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho