Os limites do romance

Resenha do livro "O livro do apocalipse segundo uma testemunha", de Angela Dutra de Menezes
Angela Dutra de Menezes, autora de “O livro do apocalipse segundo uma testemunha”
01/01/2002

Com Mil anos menos cinqüenta (Imago, 1995), Angela Dutra de Menezes foi buscar na Bíblia e na epopéia clássica alguns elementos por assim dizer paradigmáticos do romance. Definiu-se logo como uma romancista das peripécias da condição humana, do destino do homem sobre a terra, procurando o sentido dos acontecimentos, humanizando-os contra o frio registro das datas e dos fatos vazios do sangue e do suor dos dias — como cabe a todo ficcionista digno desse nome. Revelou-se, nesse primeiro livro, uma filha dileta de uma família cujo patrono é José Saramago, com um pouco de artificialismo estilístico, embora numa fatura — para uma estreante — bem acima da média. Nessa época, ela ainda se assinava Angela Abreu. Publicou logo em seguida Santa Sofia (Record, 1997), talvez o seu melhor romance até agora, no qual recria o ambiente escravocrata das Minas Gerais do século 19, com uma construção muito próxima ao domínio mágico-verbal de Autran Dourado.

Santa Sofia é um avanço considerável em relação ao primeiro romance: o desenho dos personagens ganha mais nitidez e contorno, a construção do enredo é prismática, matizada, de modo que não passam despercebidos certos dotes singulares de técnica narrativa. A partir de O avesso do retrato (Record, 1999), quando passou a assinar-se Angela Dutra de Menezes, houve mudança considerável de rumo, que de certa forma a encaminhou para a publicação deste seu quarto romance, O livro do apocalipse segundo uma testemunha (Objetiva, 2001). Publicou ainda um ensaio, O português que nos pariu (Relume Dumará, 2000), passeio leve e divertido “ao mundo de nossos antepassados”.

O tom deliberadamente irônico e até sarcástico de O avesso do retrato parece ter desmagnetizado aquela aura conquistada nos dois primeiros livros, principalmente em Santa Sofia. O que prepondera em O avesso… é uma procura frustrada do que há de encantatório em Santa Sofia, um maneirismo de linguagem e de enredo. Isso lembra os piores momentos de Jorge Amado (um romancista de gênio, vale assinalar, contra todo preconceito acadêmico) ou os movimentos desfibrados e desconectados dos romances de Gilberto Amado, aos quais a posteridade fez justiça, contra o equivocado entusiasmo crítico de Oswaldino Marques. Uma receita de romance que já malogrou há décadas: estereótipos ocupam o lugar dos personagens, numa trama artificial e retórica.

Agora, com O livro do apocalipse segundo uma testemunha, Angela Dutra de Menezes se afasta de tudo que realizou anteriormente, embora sempre próxima de uma de suas fontes primordiais de criação (leia-se “textos bíblicos”). Trata-se de uma crônica divertida, escrita com a garra de um humorista, na linha de nossos melhores cronistas. Sem se aventurar numa tentativa de reescritura dos textos bíblicos, tão comuns na literatura de hoje e de sempre, a autora procura criar uma fábula dos acontecimentos que marcaram um hipotético juízo final, com início previsto para dezembro de 2001. O livro é escrito em primeira pessoa por uma testemunha que soube do Juízo Final por sua tia, que o intuiu. Prevalece um tom de quase-diário, onde, conseqüentemente, são feitos os registros dos acontecimentos da atualidade, num mundo em sintonia com todos os avanços tecnológicos, os descalabros da modernidade etc. As epígrafes, extraídas do Apocalipse de João, permitem um contraponto do qual a romancista se utiliza estruturalmente. Na linearidade narrativa cabem crítica social, paródia dos textos bíblicos, quase sempre em passagens repassadas de ironia. Nesse sentido, não me parece que O livro do apocalipse seja mais que um divisor de águas em sua obra, uma sonata cuja função é a pausa necessária para a volta aos planos sinfônicos, vastos e tensos, que parecem ter encontrado a boa medida nas páginas de Santa Sofia.

Resta assinalar que, no que diz respeito a esta sua nova modalidade de apropriação dos textos bíblicos, faltou à autora um pouco daquela verve apocalíptica do Dalton Trevisan de um conto como Lamentações de Curitiba ou do Rubem Braga de uma crônica como Ai de ti, Copacabana. Angela Dutra de Menezes chega a fazer uma referência velada a Guimarães Rosa, que chama de o seu “poeta da linguagem”, de maneira que não estamos longe de imaginar que a sua intenção seria a de criar uma história que encantasse o leitor pela imaginação fabulosa e a magia da palavra. Talvez o estilo muito próximo do jornalismo diário, intencionalmente frívolo e jocoso às vezes, tenha prejudicado um pouco o projeto. Numa visão de conjunto, seus cinco livros publicados podem indicar um leve desfibramento da sua matéria. Resta torcer para que o próximo livro nos devolva a romancista no pleno exercício das suas potencialidades, já por demais provadas nos romances iniciais.

O livro do apocalipse segundo uma testemunha
Angela Dutra de Menezes
Objetiva
181 págs.
André Seffrin

Nasceu em Júlio de Castilhos (RS), em 1965. É crítico literário, ensaísta e antologista. Autor, entre outros livros, de O demônio da inquietude (2023).

Rascunho