Se você aprecia pornografia visual, aquela da revista Playboy, levante a mão esquerda. Quem prefere a pornografia imaginativa, aquela descrita em forma de texto, levante a mão direita. Quem ergueu as duas bata palmas para os escritores Pedro Juan Gutiérrez e Gay Talese. O cubano e o norte-americano (aparentemente Gay só no nome) voltam às livrarias brasileiras com chumbo grosso, em obras de fazer corar até o mais pedófilo dos padres.
A mulher do próximo, de Talese, é um relançamento, mas não poderia ocorrer em hora mais oportuna, quando o comportamento sexual é discutido até no Vaticano. A crônica da permissividade americana antes da era da aids (subtítulo) foi originalmente lançada em 1980. Talese levou nove anos para fazer o livro, mas foi a fundo nas raízes do comportamento sexual dos americanos, que o mundo inteiro adora copiar.
O foco da crônica de Talese é a pornografia visual e o sexo livre, que fez questão de conferir in loco (trabalhou como gerente de uma “casa de massagens” e passou alguns dias em comunidades nudistas). Talese relata como surgiram e se estabeleceram com sucesso as principais revistas de mulheres nuas, disfarçadas com informação.
O material de Talese é uma caudalosa e muito bem escrita reportagem, afinal, o autor é considerado o pai do new journalism.
Além de figuras manjadas, mas interessantes, como Hugh Hefner, criador e dono da revista Playboy, e Larry Flynt, pai da polêmica Hustler Magazine, Talese revela que desde o século 19 já havia, espalhadas pelos Estados Unidos, comunidades onde o sexo era livre, o nudismo era moda, e o guru (sempre eles) de cada comunidade era o que mais se aproveitava das próprias regras (transava sem parar com as mulheres dos outros integrantes e de vez em quando era premiado com algumas virgens).
O contraponto de Talese é o relato da luta de puritanos, entre eles os ex-presidentes Lyndon Johnson e Richard Nixon, no combate à pornografia. Acreditem, Johnson chegou a criar, em 1968, uma Comissão Presidencial sobre Obscenidade e Pornografia, mantida e reforçada por Nixon quando assumiu no ano seguinte. A hipocrisia seria tragicômica se não fosse real. Da mesma Casa Branca, célebre pelas orgias de Kennedy no início dos anos 60, e dos charutos de Clinton na década passada, vinha, com Nixon, a maior repressão contra a pornografia, que invadia a vida americana e faturava milhões.
As trapalhadas de Nixon com a Comissão só perdem para os seus desatinos em Watergate. Depois de finalizados os trabalhos, a opinião da maioria dos integrantes da Comissão era de que a pornografia não configurava um problema social e que a maneira mais sábia de lidar com ela seria, simplesmente, ignorá-la. Enquanto Nixon e seus norvejos conservadores tentavam abafar os resultados das investigações da Comissão, os americanos recebiam pelo correio um panfleto anunciando uma edição do relatório que incluía não apenas o texto da Comissão, mas todo o material por ela analisado, como fotografias de casais no ato, de grupos de orgia, de freiras medievais fornicando com velas, e por aí vai. O Relatório Ilustrado, com 352 páginas e 546 ilustrações, teve uma tiragem de 100 mil exemplares, esgotada em poucos dias nas bancas. O único erro do editor William Hamling foi incluir fotos no panfleto postado. O governo não conseguiu evitar legalmente a venda do Relatório, mas enquadrou Hamling pela distribuição de material pornográfico pelo correio. Num julgamento histórico na Suprema Corte, ele pegou quatro anos de cadeia e multa de 87 mil dólares.
O caso Hamling comprovou de vez o interesse dos americanos pela pornografia, que Talese já percebera no sucesso de obras precursoras, bem como suas dificuldades para circular legalmente. Clássicos como O amante de lady Chatterley, de D.H. Lawrence, Lolita, de Nabokov, ou Trópico de câncer, de Henry Miller, enfrentaram processos nos tribunais americanos para poderem ir às prateleiras das livrarias.
Trinta anos após o julgamento de Hamling, chega a ser engraçada a comparação entre as épocas. Perto de Animal tropical, de Pedro Juan Gutiérrez, a pornografia discutida por Talese não passa de cartilha de educação sexual para alunos de primeiro grau. O cubano tem mais imaginação que todos os autores relembrados por Talese, juntos. Gutiérrez é um animal pornográfico, dos mais nojentos. Mas é tão bom escritor que chega a fazer muita gente acreditar que ele é mesmo o protagonista das idéias e peripécias sexuais relatadas, as quais até me envergonharia de reproduzir aqui. Bem, vamos a um pequeno trecho, dos mais leves, sobre os velhos:
“São uns safados. Gostam de se manter em forma até o túmulo. Muitos morrem trepando com uma putinha. Dizem que essa é a morte perfeita: uma parada cardíaca com o pau duro, fodendo com uma putinha por uns poucos pesos. A última vagina da sua vida. E você nem sabe que é a última. O pau duro. E de repente a bomba nega fogo. Você faz uma careta e morre. As putinhas, que sempre cobram adiantado, fazem o sinal da cruz com a mão direita e com a esquerda tiram o pau de dentro, e saem correndo. Eu queria morrer assim.”
Por esse trecho “leve”, percebe-se que Gutiérrez voltou de mão cheia, e mais ousado do que nunca. Depois de conquistar o mundo com Trilogia suja de Havana (Companhia das Letras, 1999 ) e O rei de Havana (Companhia das Letras, 2001), Gutiérrez arriscou-se até a criticar a política cubana de forma mais direta (“Nenhum político é decente, ninguém é decente, o que é a decência?”; “Quando as pessoas puderem comer outra vez neste país você aprende a cozinhar, a questão é ter comida.”)
Nas obras anteriores, Gutiérrez narrava fielmente as dificuldades de Cuba, mas nunca procurou levantar bandeiras contra o governo. Simplesmente descrevia a vida numa ilha decadente e miserável, mas da qual se recusa a sair, mesmo que seus livros sejam proibidos por lá, o que o torna praticamente desconhecido, como escritor, em seu país.
De qualquer forma, por mais pornográfica que seja, a obra de Gutiérrez sempre revelou uma Cuba diferente da contada pelos turistas que voltam de lá embasbacados com os charutos, as praias e a foto tirada com Fidel. As revelações continuam em Animal tropical, no qual o autor se transforma em personagem principal de um caliente romance com Gloria, dona de casa, amante e prostituta nas horas vagas. Gloria e Pedro Juan, no livro, são dois animais sexuais. A relação entre os dois é desprovida de amor, como o autor deixa claro a todo instante. Mas eles são unidos pela cumplicidade do nojo (“Isso, porra, me cospe, me bate, me fode, vagabundo, quero ser sua escrava, veado, me bate de cinta, louco de merda”). Gloria pede e Pedro Juan bate, fode e cospe o tempo todo. Para ele, é essa lascívia que faz a diferença entre a mulata e a sueca com quem também exercita sua imaginação durante alguns meses em Estocolmo. O autor-protagonista não resiste e acaba voltando para Havana, louco de saudade e ciúmes de sua jinetera preferida.
Enquanto Gutiérrez descreve a sordidez da vida cubana, pornográfica por natureza, Talese faz um tratado que parece justificar a pornografia americana. Comparando-se os livros, tem-se a impressão que Cuba é pornográfica porque é suja. Já o sexo nos Estados Unidos é tão lindo que merece ser visto, falado, mostrado.
Um exemplo é o perfil do dono da Playboy, traçado por Talese com todos os detalhes que o criador da revista mais famosa do mundo merece. A vida de Hugh Hefner é a própria luxúria. Relaciona-se com praticamente todas as playmates, além de manter duas delas como esposas. Uma em cada mansão, é claro. A descrição das casas (Chicago e Los Angeles) e casos de Hufner é tão bonita que não há espaço para o que ele mais fazia além de editar a revista Playboy: sexo com as garotas que nela apareciam. Há o caviar, a piscina, o champanhe, as roupas, jóias, os presentes, a beleza das playmates, a cama maravilhosa para onde Hufner as levava, mas aí se fecham as cortinas. A biografia de Hufner é elegante (e invejável) demais para ser manchada com cenas desse tipo. Desse ângulo, o nojo na ficção de Gutiérrez soa mais verdadeiro que a realidade da luxúria de Talese, que no último capítulo também vira personagem e conta suas aventuras nas casas de massagens e colônias de nudismo. Afinal, escritor não é de ferro.