Refluxo do olhar

Resenha do livro "Deixe o quarto como está", de Amilcar Bettega Barbosa
Amilcar Bettega Barbosa, autor de “Deixe o quarto como está”
01/06/2002

É moeda corrente definir o autor justamente por aquilo que ele não é. Cobrar sua produção a partir de referenciais autorizados e efígies avalizadas pela história literária. O novo livro de Amilcar Bettega Barbosa, escritor gaúcho, 38 anos, corre o risco de ser falsamente interpretado. Deixe o quarto como está pode ser visto como parente do realismo fantástico de José J. Veiga, os contos Crocodilo I e II taxados superficialmente de kafkianos, Julio Cortázar apareceria em O rosto, no qual um homem persegue a si mesmo dentro de sua casa, Albert Camus talvez fosse usado para A cura, que lembraria a catástrofe coletiva que assola o povoado do romance A peste. A obra deixaria de ser de Amilcar para se constituir numa antologia de clássicos. O que não é coerente. O importante é encontrar nela o que a separa dos escritores consagrados. Tudo bem que se pretenda decodificar a genealogia, mas não se deve reduzi-la à própria cultura e ao tamanho da bagagem. Antes da celebração de antepassados, o grande escritor se faz pelas ausências que cria, até que se tornem ausências necessárias no futuro.

Deixe o quarto como está tem como subtítulo Estudos para a composição do cansaço. O nome é emblemático, implica em aceitação do caos, de uma realidade bruta, sem filtros e hierarquia. Amilcar apresenta uma singularidade no cenário do conto brasileiro: transformou a objetividade em alta subjetividade. Não interfere, apenas coleciona contrastes. Do adensamento das observações, verifica-se a expansão simbólica. Monta uma coreografia sonâmbula, reproduzindo o “barulho da cidade dormindo”. Ocorre a predominância de ambientes noturnos, espaços abertos mas claustrofóbicos, aguçados pela vigilância e mal-estar dos habitantes.

Seus personagens adoecem de um excesso de lugar, um excesso de presente, talvez mostrando que não há maior doença hoje em dia do que não conseguir se distrair, de aceitar passivamente o bombardeio de informações e solicitações, de querer acompanhar todos os canais ao mesmo tempo. Os protagonistas não tomam decisões, são atentos em demasia para formular algum juízo ou sentença. A inércia decorre da riqueza de possibilidades, que intimida a escolha. Presos demais aos detalhes, ao desperdício da vida, não reparam no conjunto. “A casa jamais se entrega totalmente”, diz uma das narrativas. Desconfiam da esperança ou da memória (“não há nada mais inquietante do que não poder confiar nas lembranças”). Não conseguem enxergar a totalidade do cotidiano, porque se refletem no que vêem. São narcisos subtraídos do espelho, solitários, absortos, na maioria das vezes perseguindo ou fugindo das verdades. Estão decifrando uma individualidade que não compreendem e nem vão compreender. O Hereditário sintetiza as permanentes dúvidas. Filho herda uma esfera, parecida com uma geléia, que se torna extensão de seu corpo e o isola da convivência.

A naturalidade com que o escritor conta as histórias termina por apagar o estranho e o sobrenatural. Nada mais real e assombroso do que seres entranhados na rotina. Um comerciante tenta fechar a loja em O exílio, porém não consegue sair de sua cidade. O trem em que embarca nunca atravessa as fronteiras. Assim como pivetes buscam assaltar uma casa em Auto-retrato, apanham do morador, são expulsos e o cenário em instantes volta a absoluta tranqüilidade inicial. As ações desistem do movimento, os homens de seus projetos. “Enlouqueceria dentro da mais pura normalidade”, avisa o personagem de O crocodilo I. Identifica-se um terrorismo psicológico, onde Amilcar atua como perito dos desvios, fomentando as alucinações de olhos abertos. Privilegia a sonoplastia, o ritmo, mais do que a imagem. De uma linhagem sonora, não visual, demonstra talento em explorar o suspense pelos ruídos, optando pela caracterização mediante a respiração, a tosse, o alarido e a música. “Fico sem saber se a sua voz está de fato distante ou se é ela que está cantando a própria distância.”

Predomina a estabilidade narrativa inclusive no estopim da violência, exemplificada de modo corriqueiro em Insistência. Um jovem entra na briga pelo domínio de um espaço nunca sabendo os motivos de estar ali. Segue os comandos da tribo e, mesmo se negando a participar, arruma sempre encrenca pela frente. Independentemente do lado e da turma que aderir, precisará superar a resistência. A morte também não traz alternância de quadro emocional, seja em A cura, em que os pacientes terminais são cobaias em nome de uma pesquisa salvadora, ou em Aprendizado, que o rapaz assiste à chuva negra de uma cafeteira pouco interessado no obituário da mãe.

O livro traz um conjunto homogêneo, compacto e que se sustenta da primeira à última página. Os contos obedecem um movimento inverso do tradicional: partem do ápice em direção ao esvaziamento. Os primeiros parágrafos dos 14 textos antecipam o desfecho e o clímax. Com rara habilidade, mantém a surpresa na falta de surpresa, a tensão na monotonia. Autor de Vôo do trapezista (WS Editor, 1995), premiado com Açorianos e com a Bolsa da Fundação Biblioteca Nacional, Amilcar não merece ser reboque dos figurões ou receber os adereços de “jovem” e “ promissor”. Ele já aconteceu faz tempo. Basta escutar o que tem a dizer.

Fragmento do conto O rosto, do livro Deixe o quarto como está “Não sei quanto tempo disporei dessa sala. Assim como alguns cômodos brotam da noite para o dia, outros desaparecem sem explicação nenhuma, numa espécie de balanceamento que a casa faz, como que possuída por um rigor matemático. Já pensei em encarcerar o rosto em uma das peças condenadas ao desaparecimento. Mas como descobrir quais são essas peças? Tenho intuição, mas não basta.”

Deixe o quarto como está
Amilcar Bettega Barbosa
Companhia das Letras
124 págs.
Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho