Tentos e tropeços de um escritor que escolheu o povo

Resenha do livro "Plínio Marcos — a crônica dos que não têm voz", de Javier Aranciba Contreras, Fred Maia e Vinícius Pinheiro
Javier Aranciba Contreras, autor de “Plínio Marcos — a crônica dos que não têm voz”
01/06/2002

Se o biógrafo não pode fugir de sua opinião sobre o biografado, por mais que recolha um vasto material de pesquisa, documentos e relatos, uma visão pessoal exagerada pode render um grande equívoco. Martin Esslin, quando escreveu sobre Brecht, defendeu com unhas e dentes que as técnicas do dramaturgo e diretor alemão não passaram de uma teoria que morreu junto com ele. Esslin escreveu um texto de fôlego, mas subjugou todas as leituras que fez às suas convicções (e, por que não dizer, à maneira como a inteligência norte-americana encara Brecht).

Desse mal não sofreram os três jornalistas e autores de Plínio Marcos — a crônica dos que não têm voz, um estudo sobre Plínio Marcos publicado na imprensa, mas que abrange o dramaturgo, seu conflito com a ditadura, a paixão pela cultura popular e pela sua cidade, e termina com uma coletânea de crônicas. Nelas, encontramos o contador de histórias, onde o Porto de Santos tornara-se o mundo; o torcedor (e jogador de rápida passagem) apaixonado pelo pequenino Jabaquara; o repórter dos artistas mambembes, dos tipos que encontramos em certas ruas e na prosa de João Antônio.

Uma obra tinha diversas razões de ser na vida de Plínio Marcos: sobrevivência financeira, protesto e válvula de escape de quem possuía, mais que o interesse pela linguagem, a necessidade de contar histórias. Também um texto, para ele, não era um diretório ou gaveta de sua vida, era o seu começo, meio e fim, e ele fazia questão de participar de todo o processo. Devemos imaginá-lo vendendo seus livros de mão em mão, ou vibrando quando conseguia um espaço para uma peça.

Esse ânimo é visível em seus personagens. O que move uma peça como Quando as máquinas param é a oscilação do personagem Zé em busca de um emprego. Há uma fronteira nítida que divide a alegria e a tristeza, sentimentos inocentes, como num jogo de futebol, uma de suas maiores influências. Na crônica, Cadê o Tom Mix?, novamente torcemos: para que os moleques da infância de Plínio Marcos consigam roubar a bola do menino rico.

No jornal, além do público mais abrangente, é curiosa a diversidade de veículos que o publicaram. Colaborou tanto com jornais santistas quanto nacionais, também passou pela crônica esportiva na revista Veja, em 1975, onde mal ficou um ano e foi demitido. Plínio Marcos usava esses espaços para declarar guerra, entre outros, aos empresários do futebol e à postura da teledramaturgia. Uma briga boa foi causada, em 1979, pela novela da Globo A cabana do Pai Tomás, quando o ator Sérgio Cardoso tingiu-se de negro para interpretar um dos papéis. Plínio Marcos, revoltado, resgatou o nome de atores negros sem emprego, e puxou uma polêmica que envolveu Nelson Rodrigues, que não via nada de errado na atitude da emissora.

O pensamento de Camus, de que o estádio é o único lugar onde ainda se sentia inocente, veste bem a crônica esportiva de Plínio Marcos. Ele se ressentia pelo crescimento do futebol como indústria. O prazer de jogar com os amigos, na várzea, num campeonato do bairro, se acabava pela falta de campos de várzea, e pelo desejo dos jovens boleiros virarem milionários do dia para a noite. Plínio Marcos foi um dos primeiros a criticar uma situação que hoje mal nos damos conta. Sua crônica é um dos relatos de um tempo quando o homem se afasta do seu meio.

Ele também acolhia a cultura nacional como legítima, superior aos produtos importados e, usando outra vez seu empirismo — ele foi durante anos o palhaço Frajola —, criticou a aceitação passiva da cultura estrangeira: “A formação do intelectual brasileiro é toda importada. E aí é que a chata faz água. Resulta que qualquer pivete vai recebendo pelos olhos e ouvidos os guinchos e imagens do Pato Donald, do Mickey, do Pateta, e esquecendo as histórias que deviam ser passadas de pai para filho, porque nesses babados estão plantadas as raízes de um povo…” (p. 47)

Outras idéias de Plínio Marcos, sobre a função da arte junto ao povo, são questionáveis. De fato, ele fazia parte da população marginalizada do porto de Santos, que se faz presente pelo país inteiro. Foi um dos que ajudaram o samba paulista a crescer, organizando apresentações como Plínio Marcos e os Pagodeiros — os pesquisadores o consideram peça chave na ascensão do samba paulista. Desde o início, construiu uma visão de mundo voltada para os que sofrem o peso da História, e armou conflitos a partir de personagens amorais, encadeados, porém, pela falta de condições para viver e que vêem no outro um adversário com as mesmas limitações.

Uma postura que poucos jornalistas tomam, trancafiados em suas redações, ou se achando juizes populares nos jornais vermelhos. Mas a visão de Plínio Marcos sobre a arte para o povo é ilusória, como se o povo fosse o mito romântico do “bom selvagem”, e dividia o público da arte entre o popular de um lado (os puros) e os intelectualóides (os ruins) de outro. “Sou contra as discussões estéticas que, nos dias que correm, resultam sempre em puro escapismo de intelectualóide, marginal da classe média, que faz das tripas coração para ganhar status pela cultura” (p. 24).

Plínio Marcos talvez não tivesse a dimensão histórica de que a indústria cultural destroçou essa relação. O “popular” de programas, filmes, músicas e literatura é fruto de uma automatização, de uma diluição de linguagem, em que, no final, alguns gatos pingados faturam em cima. Leminski acertou quando escreveu que o texto simples não é sinônimo de naturalidade, é um recurso estilístico como qualquer outro, que pegou carona no crescimento do jornalismo.

Em outro momento, Plínio Marcos afirmou: “O povão não gosta do que não entende. Só intelectualóide de país subdesenvolvido gosta do que não entende”. Sempre acho estranho, quando ouço de poetas que perambulam vendendo poemas nas ruas, que “escrevem poemas simples para o povo, não para os críticos”. Em nosso país (subdesenvolvido, onde vinte anos de escola não convencem o sujeito da importância da leitura, e outra enorme parte da população não pode sequer pensar em algo além do trabalho diário), se os críticos são os únicos que lêem, é justo que se escreva para os críticos.

Como uma pessoa pode entender um livro, sem um contato anterior com a leitura? Ou alguém irá dizer que já nascemos prontos para o uso da linguagem, como se ela viesse de dentro de nós, e não do meio. O que é entender uma obra literária? O não-entender, banido da vida moderna, não instiga em nós a dúvida, a dúvida, por sua vez, não incita a mudança? Concordo com João Antônio, que defendia a presença do escritor nas escolas, sem abdicar, em livros como Leão-de-chácara, de seu projeto literário e sua visão de mundo. João Antônio não foi didático, e didatismo é uma das metáforas da palavra imposição.

As peças de Plínio Marcos têm a relevância de ter fugido dos espaços oficiais, buscando novos públicos. Ele foi popular ao expor a visão de mundo dos marginalizados. Porém, três anos após sua morte, passadas algumas e frente a outras ditaduras, pergunto: o que o povo fez das obras de Plínio Marcos? Gostaria de receber uma resposta. Criou um time com seu nome, fundou um grupo de samba ou enredo sobre a obra do autor; não deixa seus livros um segundo parados nas estantes das bibliotecas? Tenho medo de pensar, mas às vezes acho que coube a esses três intelectuais — e tantos outros — sujarem-se na poeira dos arquivos, socorrerem o escritor ralado de esforço, e cuidar dele, da sua obra, com um carinho materno de intelectual.

Plínio Marcos — a crônica dos que não têm voz
Javier Aranciba Contreras
Fred Maia
Vinícius Pinheiro
Boitempo
190 págs.
Pedro Carrano
Rascunho