Três retratos

Três contos de Ana Miranda
01/06/2002

Caravaggio
Levantei os olhos para a vocação de são Mateus, o martírio, e o encontro com o anjo. Esses personagens, banhados por uma luz divina e refinada, de uma beleza absurda, eram a imagem da vida daquele pintor. Tive tanto medo dele, que me apaixonei.

A sua luz é trágica. Também sua composição, seus campos negros, seus elementos e sua alma. Ele pintou são Mateus com o aspecto de um lavrador rude, e cujo analfabetismo é sugerido pela mão do anjo que o faz escrever. Esse quadro foi rejeitado, e substituído por um novo, no nicho da igreja. Ele pintou a decapitação de Oloferne, o sacrifício de Isaac, a cabeça da Medusa, a crucificação de são Pedro, Davi com a cabeça de Golias ou Salomé com a de Batista, momentos dramáticos da história sagrada.

Inquieto, nômade, o pintor era um inconformista. Quando conseguia algum dinheiro, saía pela cidade vestido no maior luxo, atrás de alguém que aceitasse provocações. Não conseguia dominar seu temperamento, e tinha um desejo descontrolado de ferir. Envolveu-se em episódios de violência com uma impressionante regularidade e agravamento progressivo, culminando num assassinato. Passou a vida ou nas prisões, ou fugindo. Como não tinha dinheiro para pagar modelos, ele se olhava no espelho e pintava seu próprio moreno e lascivo rosto, e nesse rosto mergulho, com tanto medo, tanta paixão. Sua pintura fica nas igrejas. Mas nada em sua pintura induz à religiosidade nem se desvia da condição humana. Ela me leva a pensar no quanto a arte pode nos redimir.

Villon
Ele levou uma vida desregrada de boêmio, e fazia parte de um bando de malfeitores. Em 1455 matou um padre e foi perdoado por esse crime, mas em seguida envolveu-se num roubo a um colégio, o que o obrigou a fugir. Passou um tempo vagabundeando por seu país, e acabou preso e condenado à morte, mas a sentença foi anulada e ele, desterrado de sua cidade. Um de seus poemas mais conhecidos e belos, sua obra-prima e epitáfio, foi escrito para os enforcados — Frères, humains, que après nous vivez. Sua poesia examina sua dissipada vida e expressa um interesse macabro pela ruína física e pela morte, mas também uma compaixão pelos padecimentos dos seres humanos, anotados com uma indiferença irônica.

Genet
Ele era mendigo, ladrão, homossexual, e foi diversas vezes condenado por delitos graves. Escapou da prisão perpétua graças a alguns escritores que articularam um movimento por sua libertação. Nasceu como filho ilegítimo, e abandonado pela mãe cresceu em orfanatos dirigidos por padres. Passou a adolescência em reformatórios e a juventude em prisões. Inscreveu-se numa espécie de exército, mas desertou, e viveu perambulando, entregue ao roubo e à prostituição. Quando cumpria uma de suas penas, um dos muitos presos políticos que ali se encontravam deu-lhe um livro de Proust. Impressionado com a leitura ele passou a escrever, ali mesmo na cela, suas recordações da infância e da adolescência e sua experiência no mundo do crime. Foi capaz de escrever uma obra grandiosa. Mas não foi a terrível realidade descrita, nem o mergulho profundo em suas obsessões pessoais, o que fez dele um dos maiores escritores e dramaturgos da literatura universal, e sim a sua capacidade de transformar tudo isso em uma aventura literária, mítica e poética, uma escrita descarnada, com os ossos à mostra, em que celebrava o triunfo do mal, a realização dos desejos mais primitivos e espontâneos. Mas do fundo de sua prisão criava ambiciosas metáforas de concepção do mundo, num idioma ritual e suntuoso.

Ana Miranda

Nasceu em Fortaleza (CE), em 1951. Autora de diversos romances premiados, como Boca do Inferno (1989), Yuxin (2009) e Musa Praguejadora: a vida de Gregório de Matos (2015), publicou os livros de poesia Anjos e demônios (1979), Celebrações do outro (1983) e Prece a uma aldeia perdida (2004).

Rascunho