Aforismos fora de hora

A terra, sob meus pés, não é mais do que um imenso jornal desdobrado
01/07/2002

Peixe solúvel
A terra, sob meus pés, não é mais do que um imenso jornal desdobrado. Às vezes passa uma fotografia, é uma curiosidade qualquer, e sobe das flores, uniformemente, o cheiro, o cheiro bom da tinta de imprensa. Quando eu era jovem ouvi dizer que o cheiro de pão fresco era insuportável aos doentes, mas repito que as flores cheiram a tinta de imprensa. As próprias árvores são apenas notícias de menor importância, mais ou menos interessantes: um incendiário aqui, um descarrilamento acolá.

O nome do monstro
Literatura não é apenas a arte do absurdo. É, antes de tudo, a arte do inútil. A ela só se dedica o rebotalho da humanidade. Principalmente nos dias que correm, em que já não é mais possível falar sequer de literatura didática, à maneira de Homero e Dante. Prosa e poesia a serviço da ética e do intelecto? Nevermore. Baudelaire e Joyce desbancaram a literatura “a serviço de”. Deus está morto — Nietzsche. Se Deus está morto, tudo é permitido — Dostoievski. Se tudo é permitido, vamos ao pacto — Klaus Mann (depois de Goethe). Literatura é o pacto xamânico com o diabo, sendo o pandemônio o último reduto do pensamento cognitivo. Literatura é morder o próprio rabo — em público. E há senhores que fazem isso há tanto tempo — às favas o pudor! — que já passaram a embolsar, sem enrubescer, altas somas de dinheiro pelo espetáculo. Literatura é pão e circo — instante em que o grotesco deixa de ser obsceno. Conseqüentemente, o pior vício que um escritor pode alimentar chama-se Crença na Educação pela Arte. Auto-engano também é um bom nome para essa impostura desumana. Literatura não passa de vaidade, na melhor acepção da palavra. Ainda mais quando o escritor faz pose de humilde diante das câmeras de tevê. De escritor há dois tipos: o jovem e o velho. Segundo o senso comum (Nelson Rodrigues), o grande pecado do jovem escritor é não ter paciência de esperar pela senilidade. Quando velho, no entanto, há escritores que lançam mão de truques francamente juvenis. Também há escritores jovens que fazem pose de escritor maduro (entenda-se aqui “sábio”): cara de poucos amigos, cheia de empáfia, prenhe de profundidade filosófica. O escritor jovem sempre entende de literatura, mesmo quando não entende. Por isso não tem vergonha de opinar sobre os rumos da literatura de seu país, ora na imprensa, ora nas faculdades de Letras. O escritor velho, ao invés, mal se lembra das vinte e tantas regras de acentuação. Exceto os que se consideram jovens. O escritor jovem é apaixonado pelo escritor maduro que não dá entrevistas (o mesmo que desdenha de toda a raça humana e não perde a oportunidade de achincalhar os escritores que não pensam como ele). No entanto, o escritor jovem que idolatra o escritor misantropo costuma adular meio mundo e dar entrevistas sempre que pode. E nelas não perde a oportunidade de achincalhar os escritores que não professam sua fé — que não são apaixonados pelo escritor misantropo, não desdenham da raça humana e deixam passar todas as oportunidades de achincalhar os escritores que não pensam como ele. Levando-se em consideração tão-só a qualidade, há, mais uma vez, dois tipos de escritor: o medíocre e o genial. O escritor medíocre é fácil de reconhecer. Basta ler duas linhas, dois versos, e lá está ele: inteiro, acabado, cheio de viço. Em cada sílaba, a mesmice juramentada. Já o escritor genial não é fácil de reconhecer. Dele não basta ler duas linhas, dois versos. Cada página, um ponto de interrogação. Será que é? Será que não é? Titubeamos linha após linha, verso após verso. Aborrecidos, deixamos sua obra de lado. Dias depois, quando tornamos a ele, mais uma vez a insegurança. Será? Trocamos impressões com os amigos — tão indecisos quanto nós — e… sim! Trata-se de vinho, não de água. Soltamos foguetes e transformamos o novo gênio em patrimônio da humanidade. Mas por que o barulho? A genialidade é um acidente biológico que não deve ser perseguido a qualquer preço. Tanto o escritor medíocre quanto o genial procuram com sua obra granjear a estima da tribo. Por isso gastam apenas parte do tempo escrevendo. A outra parte usam para desocupar as estantes, a fim de colocar no lugar das obras do passado a sua. Algumas destas obras injetam sangue novo na cultura. A maioria, não. Mas quem se importa? Amor e morte, sexo e assassinato — os mesmos cinco ou dez textos primordiais têm sido reescritos e descartados há milênios. Descartados não, devorados. O nome do monstro? Literatura.

Peixe solúvel
Somos prisioneiros da orgia mecânica a que se dá prosseguimento na terra, pois cavamos minas, subterrâneos pelos quais nos introduzimos em bando debaixo das cidades que queremos fazer ir pelos ares. A Sicília e a Sardenha já estão em nossas mãos. Os sismos registrados por esses aparelhos deliciosamente sensíveis somos nós que os provocamos ao nosso bel-prazer.

Faltam satanistas na literatura contemporânea.
Quem foi o último? No Brasil, Campos de Carvalho. Pelo menos era assim que se autodenominava. E o que é o autor satanista, afinal? Alguém que acende velas ao demônio, que prega a violência contra as instituições e o mal absoluto? De jeito nenhum. O satanista que está em falta é o fino humorista que, por debochar da indecência da nudez real, é levado pelos cardeais de vossa majestade a morrer de rir (quase sempre na fogueira do Santo Ofício). Noto que isso vem acontecendo com Marcelo Mirisola. Será ele, afinal, o tão necessário anticristo?

Antes tarde do que nunca
No ano passado, na esteira da mostra promovida pelo Centro Cultural Banco do Brasil realizada no Rio de Janeiro, a editora Nau lançou os Manifestos do surrealismo. Já era mais do que tempo de o Brasil ter sua versão desses textos doutrinários e principalmente do antológico Peixe solúvel, poema em prosa que também integra o volume. Portugal já tem a sua, com o característico acento lusitano, desde 1969. Nossa tradução é de Sérgio Pacha. Peixe solúvel, violento choque do acaso objetivo com o humor negro, é a soma do sonho e da realidade — a supra-realidade — perpetrada por André Breton no final dos anos 20. É ainda, ao lado do romance biográfico Nadja, traduzido por Ivo Barroso e lançado pela Imago, a prova de que muitas vezes mais vale a prática do que a teoria, no âmbito da arte.

Nocaute
“Um escritor argentino muito amigo do boxe me dizia que, no combate que se dá entre um texto apaixonante e seu leitor, o romance sempre ganha por pontos, ao passo que o conto precisa ganhar por nocaute”. Se Cortázar recebesse R$ 10,00 cada vez que essa sentença aparecesse no prefácio de uma antologia de contos, seus herdeiros triplicariam sua fortuna. Também cometi esse crime, não nego; toma lá as dez pratas. Nossa sorte é que o próprio Cortázar, malandro que era, jamais seguiu à risca todas as diretrizes que levantou, as mesmas que, anos depois, os tolos insistem em enfiar nas fuças dos contistas. Qual a novidade nisso? Enquanto o gênio aponta a lua e as estrelas, o idiota olha para o dedo.

Peixe solúvel
Esta mulher, conheci-a numa vinha imensa, alguns dias antes da vindima, e segui-a, uma noite, ao redor do muro de um convento. Ela estava de luto fechado e eu me sentia incapaz de resistir a esse ninho de corvos que o relâmpago de seu olhar fizera-me evocar, há pouco, quando eu tentava, atrás dela, a ascensão das vestes de folhas vermelhas nas quais sacudiam guizos noturnos.

Tentei ler e ver Harry Potter
Mas por não encontrar a diversão que esperava, dormi em cima do livro e no cinema. Devo estar ficando velho. Ainda não fui assistir à versão cinematográfica d’O senhor dos anéis, que já saiu de cartaz (fica para o vídeo). Isso não significa que concorde com certa crítica apocalíptica, que vê na fantasia mística e na ação excessiva, construída à base de efeitos especiais, algo negativo. No vidro do meu carro não há adesivos do tipo “Eu acredito em duendes”, mas minha filha de sete anos tem todo o direito de vê-los no cinema. Talvez assim, quando adulta, não perca seu tempo procurando-os nos jardins públicos.

A linearidade cronológica na prosa de ficção
Essa é a prova de fogo para o escritor. Os menos habilidosos mal conseguem ir da infância do protagonista ao seu crepúsculo sem matar o leitor de tédio, que direi do movimento salteado: o passado no futuro, o presente no passado, o futuro do pretérito. Brincar com o cronômetro, nem pensar! A fratura da linha temporal, a mudança na ordem dos fatores, parece ter sido definitivamente banida da caixa de ferramentas do prosador contemporâneo. É no cinema que os melhores e mais bem sucedidos resultados dão o show de bola: Amnésia, de Christopher Nolan, e Corra, Lola, corra (não me lembro do nome do diretor). Nesses dois filmes, o tempo traz em si algo do eterno retorno e da teoria especial da relatividade aos quais todo escritor, iniciante ou não, deveria obrigatoriamente prestar contas.

Peixe solúvel
Fizemos amor por longo tempo, ao modo dos estalos que se produzem no móveis. Fizemos amor assim como o sol bate, como os caixões se fecham, como o silêncio chama, como a noite brilha. E em nossos olhos, que nunca estavam abertos ao mesmo tempo, nada se debatia senão nossas mais puras sortes.

Curiosa relação
Os críticos de vinte, trinta anos, não raro escrevem sobre os autores de vinte, trinta anos; já os críticos de sessenta, setenta anos, só têm olhos para os autores de duzentos, trezentos anos ou mais.

Paulo Leminski foi é um poeta barroco?
E Dalton Trevisan, é um contista barroco? Ou, quem sabe, maneirista? Ernst Curtius e Gustav Hocke, professor e aluno, em livros distintos — Literatura européia e Idade Média latina e Maneirismo: o mundo como labirinto — dizem que sim, que na história da criação artística sempre houve apenas dois movimentos antagônicos. Ambos sugerem, por exemplo, o emprego do termo maneirismo para caracterizar “todas as tendências literárias que se opõem ao classicismo, sejam elas anteriores, contemporâneas ou posteriores a este período”. Quer queiramos ou não, os modernos e modernistas, ao rejeitar a pureza e o equilíbrio em nome da desarmonia e do grotesco, nos tornamos todos maneiristas.

Acho engraçado os americanos
Ficaram — e ainda ficam — se descabelando porque um punhado de gente morreu no atentado ao WTC. Será que não se dão conta de que o sistema de guerrilha de Bin Laden era, é, no mínimo, medieval? Jogar avião em prédio não está com nada, parece estratégia da Guerra de Tróia… Quero ver quando começarem a apagar do mapa cidades inteiras, com um simples toque no teclado de um computador doméstico. Não digo apagar fisicamente, digo virtualmente. As pessoas continuarão lá, mas seus nomes, RGs, CICs e dados bancários desaparecerão por inteiro, como se nunca tivessem existido. Imaginem o caos, quando puderem fazer isso com Nova York, Londres, Tóquio…

Televisão?
Não sou contra nem a favor, muito pelo contrário. O problema é esse: como ser contra a televisão sem cair no discurso rasteiro do apocalíptico oitocentista? É claro que a nosso favor temos O auto da compadecida e outros programas do mesmo quilate. Mas, convenhamos… Big Brother Brazil é o fim da picada! Pegaram o 1984, um dos melhores romances que li na adolescência, e… Cara, o que fizeram com o livro do Orwell foi pior do que chutar a santa!

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho