Um franco-atirador que sabia dizer as coisas

Ruy Espinheira Filho retrata o perfil intelectual de Mário de Andrade, um dos ícones literários brasileiros
01/07/2002

Nas comemorações dos 80 anos da Semana de Arte Moderna, que ainda estão em pauta, a publicação de um livro como Tumulto de amor e outros tumultos: criação e arte em Mário de Andrade, no qual Ruy Espinheira Filho se propõe modestamente a “repor em discussão o pensador Mário de Andrade”, é um acontecimento que não devemos perder de vista — ao lado desse outro acontecimento intelectual que é o recém-lançado volume 2 da Correspondência, as cartas de Mário e Tarsila do Amaral, organização de Aracy Amaral (Edusp). Antologia admirável daquilo que podemos chamar o apostolado da arte em Mário de Andrade, Tumulto de amor e outros tumultos apresenta ainda outras qualidades: é um manual sobre arte e sobre criação para o iniciante com pretensões literárias, e um ensaio que se lê com prazer, sobretudo porque escrito por uma sensibilidade de poeta.

Distante do jargão acadêmico, Ruy Espinheira Filho se empenhou em realizar o perfil intelectual de um de nossos maiores ícones literários e por meio dele elucidar os problemas cruciais da arte do nosso tempo. Repetindo a proposta de Lêdo Ivo há cinqüenta anos (secundado por Drummond em 1982), o que Ruy nos sugere é uma revisão urgentíssima da “lição” de Mário de Andrade, que disse ao fim da famosa conferência de 1942: “Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição”. É provável que uma das suas grandes lições seja mesmo a da censura aos excessos do movimento modernista, lição que, para Ruy Espinheira Filho, talvez se consubstancie hoje no ressurgimento do lirismo diante dos impasses da técnica versus intuição criadora, ou, como apontou Antonio Candido, de algumas “experiências técnicas” presas mais aos domínios da poética do que da poesia.

Ao contrário de Ruy, que atribui apenas aos ecos do parnasianismo os desacertos em que naufragou grande parte da poesia do nosso tempo, prefiro ver essa questão de uma maneira mais elástica: além dos cacoetes parnasianos, há os cacoetes modernistas e, último porém primeiro, a dos neo-românticos de hoje e também a dos adeptos de uma das mais antigas fórmulas da poesia universal — os concretistas. Cada qual defende o seu território, pois cada época, cada movimento ou mesmo cada geração produz seus paladinos e seus franco-atiradores. Todas as vanguardas se parecem e no universo da literatura são os planetas e os seus satélites, os eventuais cometas e os meteoros, todos no seu espaço e no seu tempo, que vão formar o todo orgânico que chamamos literatura. De maneira que cada época tem o paladino ou o franco-atirador que merece. O início do século 20 foi para os brasileiros um momento de sorte, pois tivemos um Mário de Andrade e “seu muito e desprendido amor”, nas palavras de Drummond.

A obra de Mário, todavia, não permite o engano: não se trata exatamente de um paladino mas de um franco-atirador que sabia dizer as coisas, sabia se valer do artifício ou da blague para bem divulgar uma idéia, sabia ver além das diretrizes de escola e das modas, com um conhecimento que não era de um diletante mas de um pensador da arte, multiplicado em atividades quase díspares sem perder a unidade, criador com a “coragem de errar”, ou a “coragem de criar livremente, o exercício da sua personalidade”, como ele próprio escreveu a respeito do II Salão da Família Artística Paulista, em 1939. Sem falar nas atitudes generosas, na abertura para o outro, marcas indissociáveis de sua vida de homem e de artista.

Mais que “um esforço de pesquisa e discussão de idéias”, Ruy Espinheira Filho escreveu um livro que se define como “um gesto de esperança” contra a voga formalista e a tendência simplista de enquadrar a arte numa camisa-de-força conceitual, seja demasiadamente presa ao passado, seja demasiadamente crédula nos paraísos artificiais da modernidade. É nesse sentido que ele parece ter oxigenado a discussão em torno do que há de mais vital no pensamento de Mário, baseado sobretudo na correspondência e em alguns textos que tiveram pouca divulgação até agora. Tumulto de amor e outros tumultos é, pois, uma antologia exemplar de tudo que Mário de Andrade nos disse a respeito da arte, de seus processos, de sua validade, de sua realização estética e ética. Livro que trata dos mistérios da criação, nele cabem discussões sobre o plágio, sobre os limites entre lirismo e arte ou entre coração e inteligência, técnica e “inspiração”. Mais que uma radiografia da personalidade literária de Mário de Andrade, é um espaço aberto ao debate sobre os problemas da arte em geral e do homem em particular, a função da arte na sociedade e do papel, mesmo que involuntário, do artista no seu tempo.

Contudo, dos pontos de vista que podem fragilizar o livro, destaco primeiramente o da reiterada crença na total limitação dos poetas parnasianos. Se é certo que “o poeta parnasiano era mais poeta quanto menos parnasiano fosse”, não creio que se possa repetir o lugar-comum segundo o qual o movimento não produziu grandes poetas. Sim, porque temos que reavaliar o Parnaso com o devido distanciamento, conforme a consideração recente de Antonio Carlos Secchin (cf. Claufe Rodrigues e Alessandra Maia – orgs, 100 anos de poesia, O Verso, 2001), a qual, diga-se de passagem, nestes tempos inóspitos, e por sua alta voltagem crítica, merece releitura permanente. Sobretudo reavaliar o Parnaso com o devido distanciamento dos postulados modernistas, podemos acrescentar agora, sugestão que é do próprio Mário em carta a Manuel Bandeira, datada de 11 de maio de 1929: “Porque não pense que imagino ser perfeitíssimo em meus atos morais, Manuel. Sou como todos os outros, já confessei publicamente erros morais meus, desfazendo um mal que fizera antes (caso dos “Mestres do Passado” que depois pela América Brasileira confessei ser falso porque de propósito eu apresentara os defeitos e ocultara as qualidades dos em questão)…” Carta esta que Ruy Espinheira Filho cita em nota de pé de página. Nesse passo, é importante ressaltar que a triste herança do parnasianismo atualmente divide o mesmo espaço com a triste herança do modernismo, ou seja, a confiança ingênua nas facilidades do verso livre, a total ignorância das regras básicas da metrificação etc., fatos que não passavam despercebidos à inteligência crítica de Mário de Andrade, sem nenhum favor um de nossos melhores e mais aparelhados analistas de poesia, bem como ao próprio Ruy: “… escrever sem métrica e rima não faz caminho livre para o trânsito da pureza lírica. A não-obrigatoriedade desses recursos enganou — e ainda engana — muita gente, mas nunca os poetas propriamente ditos.”

Outro aspecto que merece um olhar distanciado — melhor seria dizer desconfiado — é o dos expurgos de trechos e de cartas inteiras na correspondência marioandradiana, cuja publicação se intensificou nos últimos vinte anos. Para Ruy Espinheira Filho, esses eventuais cortes “…não tiveram muita importância. Na maioria das vezes, certamente nenhuma.” (p. 85). Talvez contrariando essa afirmação, ao que tudo indica de maneira involuntária, à página 228 o autor reproduz carta de Mário a Prudente de Moraes, neto, não incluída na conhecida correspondência (Cartas de Mário de Andrade a Prudente de Moraes, neto: 1924/36, Nova Fronteira, 1985), e divulgada posteriormente por Flávia Camargo Toni (1987). O teor das críticas que Mário faz a Villa-Lobos pode justificar plenamente a ausência dessa carta no volume publicado em 1985. Na dúvida, as controvérsias em torno do que se publica e do que não se publica dessa correspondência, que não são recentes, merecem um tratamento cauteloso.

Nada disso, é claro, compromete a excelência do livro. É sabido que todas as gerações e movimentos produzem grandes artistas e artistas menores, a despeito dos vícios e das regras que tais gerações e movimentos engendram. É isto, afinal, o que Tumulto de amor e outros tumultos exemplifica magistralmente ao fazer um levantamento admirável de tudo que um criador do porte de Mário de Andrade pensou sobre criação e arte. Um livro que passa a integrar a biblioteca básica dos estudos sobre o autor de Amar, verbo intransitivo e, conseqüentemente, do modernismo.

André Seffrin

Nasceu em Júlio de Castilhos (RS), em 1965. É crítico literário, ensaísta e antologista. Autor, entre outros livros, de O demônio da inquietude (2023).

Rascunho