A publicação, no ano passado, pela Imprensa Oficial do Paraná, de uma Antologia poética de Foed Castro Chamma (1927), mais do que significar pela inquestionável expressão poética do autor, contribui para revelar uma condição lamentável de nosso mercado editorial e, na raiz, do próprio estado de dispersão medida de nossa cultura. Se evocarmos a publicação, no mesmo ano, de uma Antologia pessoal, pela brasiliense Thesaurus Editora, do gaúcho José Santiago Naud (1930), e somarmos duas outras edições anteriores, os poemas reunidos da amazonense Astrid Cabral (1936) e da paulista Dora Ferreira da Silva (1918), respectivamente circulados, sob o auspício de um programa editorial da Biblioteca Nacional, pelas cariocas Sette Letras (1998) e Topbooks (1999), impossível não concluir pela ausência de uma compreensão crítica de vários de nossos importantes poetas.
Os quatro nomes mencionados possuem obra substanciosa e renovadora o suficiente para que nossos críticos se empenhem em situá-las condignamente em uma tradição lírica brasileira. Igualmente deveriam despertar, da parte de nossos editores, um interesse que não fosse justificado apenas por convênios estatais. A propósito dos volumes dedicados à poesia de Astrid Cabral e Dora Ferreira, é vergonhosa essa condição de buscar em convênios uma maneira de engordar o saldo corrente das editoras, às custas dos poetas, despreocupando-se de uma difusão mínima que seja da obra publicada. Os valores recebidos pelas editoras deveriam ser melhor acompanhados e haver mesmo uma exigência contratual de empenho na difusão dos livros em circulação.
A menção que fiz a quatro poetas em momento algum esgota o assunto, e caberia falar de outros tantos que não receberam ainda uma leitura do conjunto de obra, a exemplo do cearense Francisco Carvalho (1927) ou do paulista Roberto Piva (1937) — deste último uma antologia publicada em 1985, pela gaúcha L&PM, é referência já perdida no tempo. E todos estes poetas, apesar das diferenças de idade, possuem em comum o convívio com um período de radicalismo formal da poesia brasileira, não no sentido de uma concordância estética, mas apenas no de coincidência de época. De distintas maneiras, foram na contramão de exacerbação formal que ligava a vanguarda à tradição, ou seja, o Concretismo à Geração de 45, com antecedentes ilustres desde o Parnasianismo.
No caso de Foed Castro Chamma, este poeta aproxima como poucos no Brasil os conceitos de sensibilidade e vigilância, de percepção e artesanato, compreendendo bem a confluência essencial de tais termos. Sabe que o homem não permanece pela forma, mas antes pela capacidade de fazer relacionar-se entre si vida e arte. Não abre mão do potens de transmutador, mas sabe que o mesmo só alcança substância no componente filosófico. Sua poética defende que o amálgama existencial que acaso busque o homem não pode fundamentar-se em um mero artifício de linguagem. Escutemos então o que tem este poeta a nos dizer, não sem antes confessar uma grande honra minha de tê-lo como interlocutor.
• São palavras tuas: “Minha poesia tem como sentido a captura do real. Realizar a plenitude da imagem, fundando uma nova realidade que nasça dos dados mais imediatos do cotidiano e se alce à categoria de mito.” Esse exagero que define a perspectiva mítica o aproxima tanto da exuberância barroca quanto do sentido de excesso da mais realidade defendida pelo Surrealismo. Como surge o poeta Foed Castro Chamma descobrindo-se na mais completa contramão da tradição lírica de nosso país?
A intenção de fundar uma realidade, paralela, que nasça dos dados imediatos do cotidiano e se alce à categoria do mito, implica rebeldia no sentido de individuação, usurpada pelo Logos. O poeta pretende chegar à consciência de Si. O Maneirismo, que Curtius vê nas Odes de Píndaro, ao estender-se ao barroco na fulguração emblemática de Teresa de Ávila, configura o neopanteísmo precursor desse pretenso desvelamento da realidade no emaranhado da linguagem poética, retomado pelo Surrealismo, e que na minha iconografia poética manifesta-se na sombra como um duplo de mim mesmo que o Outro representa. Na trilha de Ludwig Wittgenstein se pode pensar na poesia entremeada à filosofia da linguagem na busca de entendimento, em cujo aparato e perplexidades me descubro poeta. O campo da poesia, anterior a Homero, não era o dos fatos e do relato, era antes cosmológico, no sentido de captura da Unidade, da qual a consciência é o eixo de indagação sobre o ser e o mundo. Uma questão ontológica, portanto. Homero antecipa-se ao Logos e à História ao resgatar a lenda de Menelau e o rapto de Helena, o qual motivara a guerra de Tróia e a fundação do Império Romano, dando início assim à dinastia dos Cesares. A vocação ática de domínio da Razão exclui a Essência em função de uma geometria que não comporta o mito, antes se volta para a produção como pressuposto de um relato que culmina, em Homero, na teologia das rapsódias imortais precursora da História. Nesta medida, o parâmetro da linguagem poética continua ao lado da notícia o da manipulação do simbólico. Ao colocar-se como afirmação, a linguagem é uma ponte entre o ser e pensar. Tal inquietação abarca a angústia existencial, cujo fim se torna religião na Antigüidade (taoísmo) ou instrumento de meditação (Nibana ou Nonada) ponto de partida da visão dramática de contendas e mesmo da lenda hodierna de Diadorim. Um censo de rebeldia coloca o poeta em confronto com o Logos. O território do mito, o real, é sacralizado na Época Arcaica, de modo a fundar uma realidade epifânica, em cujo domínio a linguagem poética se exerce, elucidando com a matemática do simbólico o engenho que se ergue da negação e transforma-se em afirmação do ser. Vejo no Surrealismo a retomada da Arché. A imagem fundada no real constrói na mente a realidade. Possui anotações críticas tanto em Teresa de Ávila como em Cervantes e o delírio de D. Quixote, que Michel Foucault coloca em As palavras e as coisas ao lado de Velasquez, no espelho, interpretando assim a retórica da Semelhança que colide com uma das faces do antropocentrismo renascentista abordado por Lope de Vega, Góngora e, mais recentemente, por André Breton.
• Uma outra declaração tua, acerca da gênese de Pedra da transmutação (1984), destaca que, durante a escritura deste livro, foste “perseguido por toda sorte de alucinações”. Tais alucinações se davam à revelia ou eram fruto daquele sentido radical de um abandono ao maravilhoso que Breton defendia como sendo “a única fonte de comunicação eterna entre os homens”?
O “abandono ao maravilhoso”, sendo “a única fonte de comunicação eterna” é um ato de transgressão à imposição do Logos, a cujo código o poeta ao rebelar-se se volta, instaurando um discurso espiralado, que Platão antevira como curva do tempo e as teorias da relatividade o comprovam, negando a linearidade da física newtoniana em relação à circularidade do eterno retorno.
• Uma reação crítica aos primeiros livros mencionava uma “vocação para o satânico” (Mário Peixoto, 1953), um “espírito barroco e místico” (Walmir Ayala, 1959), “poesia de iniciado” (José Roberto Teixeira Leite, 1959), e Hélio Pólvora chega a falar de tua busca de uma onisciência. Hoje, aceitarias alguma definição de tua poética? Qual?
As definições em epígrafe são a meu ver de uma coerência definitiva em relação à minha arte poética. Não vacilo em confirmar o sentido de tentativa de um heliocentrismo de Copérnico a determinar uma centelha do pensamento a abarcar o universo ao meu redor. A extensão do pensamento ao passar pelo “espírito barroco e místico” em função de um satanismo baudelairiano configura uma iniciação que culmina naquilo que Hélio Pólvora antevê como uma “onisciência”.
• Talvez se possa entender a criação artística como uma forja dos metais do espírito. No entanto, acaba revelando-se alheia à busca, ou seja, a concretude do objeto de arte (poema, escultura, canção) será sempre surpreendente, por mais que o artista se declare senhor completo do ofício. Haveria algum caso de ruptura entre o buscado e o encontrado em teus poemas? Poderias nos falar um pouco a respeito disso?
A entrega ao poema envolve uma mediação do Todo Uno que culmina na concretude do objeto de arte, na “forja dos metais do espírito”, de maneira a não se poder declarar o poeta senhor completo do ofício, na medida em que entre o sujeito e a linguagem paira a relação de espírito e matéria, que os metalúrgicos acádicos cultuavam entremeando à forja dos metais o casamento dos opostos. Que sei sobre o que advirá dessa relação entre linguagem e Essência? Somos oficiantes e servos da representação. O domínio sobre Cronos pertence ao fogo do Espírito que delineia a fulguração do objeto de arte, a Beleza, filha de Hélios.
• De alguma maneira te consideras vinculado à Geração de 45?
A Geração posterior a 30 se volta para uma linguagem alegórica vinculada à Forma numa reação ao iconoclástico, ao antropofágico, de maneira a se pensar num suporte parnasiano que culminará no Acontecimento do Soneto, voltado para uma tradição que Jorge de Lima quase chega a esgotar e que encontrará na Geração de 56 continuidade, a cuja constelação julgo pertencer. As Gerações se sucedem atendendo a uma dialética que evolui em direção ao ponto de partida da indagação sobre o Ser. Houve época em que se pensou em Virgílio superior a Homero. Não se cogitava então de que a grandeza de Homero, ao lado do mosaísmo, está na transposição da teologia astronômica da Suméria para o antropocentrismo teológico que antecede a Renascença.
• O silogismo aristotélico e o orfismo pitagórico são zonas de conflito na tradição lírica brasileira, ou acaso esta se encontra inteiramente dominada por um esvaziamento ético, uma anulação de princípios ontológicos, de tal forma que mergulhamos em um continuísmo formal que despreza as raízes ferozes da existência humana?
O conceito de identidade em Aristóteles, apesar da grandeza da cultura greco-romana, salva em Bizâncio, colide no Renascimento com o Romantismo, ressurgindo todavia sob o critério órfico da Verdade na tessitura ética de restauração do Nume, dessacralizado na tradição lírica brasileira em função de uma metodologia que levou Byron, em contrapartida, a exclamar no início do século 18: “down Aristóteles”. O critério ético da linguagem corresponde a meu ver a uma geometria intrínseca do significado, da qual o sujeito não pode prescindir, na medida em que a prática do saber, vinculada ao uso estético da razão, é antecedida de uma ordem gramatical de domínio dos Estóicos, que a lírica brasileira parece ignorar, voltada para o epocal, o historial, na acepção de Martin Heidegger, reincidindo assim sobre um equívoco mergulhado como dizes no “continuísmo formal que despreza” a qüididade, “as raízes ferozes da existência humana”.
• Qual teria sido a influência do Concretismo em tal processo?
A meu ver o Concretismo se voltou para o processo semiológico de “desconstrução” do vocábulo, incorrendo em uma prática de ruptura com a retórica tradicional de maneira a provocar uma alta tensão, alta voltagem na construção do poema, de fundamental importância para o poeta novo.
• O reconhecimento de tua poesia, a exemplo de um outro poeta, José Santiago Naud (1930), por exemplo, de que maneira teria sido comprometido por essa situação?
Na verdade, existe um pressuposto hierárquico de valores que aparenta ignorar qualidades em função de uma imediatidade imposta pela cultura. Penso percorrer um caminho de descondicionamento do que pretende se impor em detrimento de uma prática a priori do saber. Um processo, portanto, de invenção e de contracultura.
• Quero retornar a teu Pedra da transmutação, por uma simples razão: a estrita relação que guarda com outro livro, Filosofia da arte (1999). Não me refiro à vinculação temática, mas a um aspecto curioso: a disposição formal entre verso e prosa. Rigorosamente o que se apresenta em verso em Pedra da transmutação poderia ser um capítulo, em prosa, de Filosofia da arte, sem perda de comunicação alguma. Como defines essa forja do verso e da prosa?
Houve a partir dos 2.000 primeiros versos de Pedra da transmutação uma inclinação natural para o acompanhamento crítico do poema, passando por questionamentos do realismo hegeliano e a tentativa de elucidar o alucinatório em função de uma arte que emergia do cotidiano concentrada na geometria da sombra como um duplo, cuja física encontraria na linguagem o Ícone a dar sustentação emblemática a uma figura que rompia o espelho da semelhança e se impunha junto a mim projetado no outro como linguagem criptográfica. Filosofia da arte é uma biografia do poema que reflete o incêndio na floresta. O texto em prosa percorre a floresta do imaginário à procura da clareira. Porfírio diz, em As sensações, que a imagem está na mente e se transforma em realidade.
• Parece-me que o homem não existe aquém ou além do mistério. Magritte tem uma frase brilhante neste sentido: “o mistério é a necessidade absoluta para que a existência seja possível”. No Brasil, a idéia de modernidade coincidiu com uma certa erradicação do mistério, e praticamente se impôs um determinismo que ainda hoje reflete-se no esvaziamento de confronto entre poesia e realidade.
Penso em um axioma filosófico: a liberdade é a necessidade. A liberdade é o mistério que a poesia percorre como necessidade de elucidação do ser na negação. No Brasil, o futurismo em voga na Itália em 22 exerceu forte influência na Semana da Arte Moderna sob o critério de desenvolvimento industrial, apesar de Gabriele D’Annunzio e da tradição Simbolista italiana, da influência sobre Borges e em toda a América latina do que seria a extensão de uma conquista individual renascentista tardia. Por outro lado, tal realismo esbarra num pressuposto de escola que sucede ao naturalismo e remete o intelectual brasileiro à herança cartesiana a qual, por sua vez, acolhe Victor Hugo, Gerard de Nerval, Baudelaire, Laforgue, Rimbaud, ao lado de um Rilke, um Rodin, enquanto se permanece preso a pruridos epigonais de “desconstrução” da sintaxe. O cartesianismo exerce desde o século 17 um esvaziamento castrador do Antropocentrismo responsável pelo Renascimento italiano, iniciado com Dante no século 13, e que deu a Roma o traçado moderno de Miguel Ângelo, e que levaria Descartes a conceber o Discurso do método em relação ao antigo emaranhado de vielas de Paris. Nossa modernidade está presa a uma herança cultural contrária ao projeto literário de Allan Poe que deu origem ao Simbolismo e se impõe desde o realismo sucessor do naturalismo no século 18 em detrimento do surreal.
• A publicação, no ano passado, pela Imprensa Oficial do Paraná, de uma Antologia poética de Foed Castro Chamma (1927), mais do que significar pela inquestionável expressão poética do autor, contribui para revelar uma condição lamentável de nosso mercado editorial e, na raiz, do próprio estado de dispersão medida de nossa cultura. Se evocarmos a publicação, no mesmo ano, de uma Antologia pessoal, pela brasiliense Thesaurus Editora, do gaúcho José Santiago Naud (1930), e somarmos duas outras edições anteriores, os poemas reunidos da amazonense Astrid Cabral (1936) e da paulista Dora Ferreira da Silva (1918), respectivamente circulados, sob o auspício de um programa editorial da Biblioteca Nacional, pelas cariocas Sette Letras (1998) e Topbooks (1999), impossível não concluir pela ausência de uma compreensão crítica de vários de nossos importantes poetas.
Os quatro nomes mencionados possuem obra substanciosa e renovadora o suficiente para que nossos críticos se empenhem em situá-las condignamente em uma tradição lírica brasileira. Igualmente deveriam despertar, da parte de nossos editores, um interesse que não fosse justificado apenas por convênios estatais. A propósito dos volumes dedicados à poesia de Astrid Cabral e Dora Ferreira, é vergonhosa essa condição de buscar em convênios uma maneira de engordar o saldo corrente das editoras, às custas dos poetas, despreocupando-se de uma difusão mínima que seja da obra publicada. Os valores recebidos pelas editoras deveriam ser melhor acompanhados e haver mesmo uma exigência contratual de empenho na difusão dos livros em circulação.
A menção que fiz a quatro poetas em momento algum esgota o assunto, e caberia falar de outros tantos que não receberam ainda uma leitura do conjunto de obra, a exemplo do cearense Francisco Carvalho (1927) ou do paulista Roberto Piva (1937) — deste último uma antologia publicada em 1985, pela gaúcha L&PM, é referência já perdida no tempo. E todos estes poetas, apesar das diferenças de idade, possuem em comum o convívio com um período de radicalismo formal da poesia brasileira, não no sentido de uma concordância estética, mas apenas no de coincidência de época. De distintas maneiras, foram na contramão de exacerbação formal que ligava a vanguarda à tradição, ou seja, o Concretismo à Geração de 45, com antecedentes ilustres desde o Parnasianismo.
No caso de Foed Castro Chamma, este poeta aproxima como poucos no Brasil os conceitos de sensibilidade e vigilância, de percepção e artesanato, compreendendo bem a confluência essencial de tais termos. Sabe que o homem não permanece pela forma, mas antes pela capacidade de fazer relacionar-se entre si vida e arte. Não abre mão do potens de transmutador, mas sabe que o mesmo só alcança substância no componente filosófico. Sua poética defende que o amálgama existencial que acaso busque o homem não pode fundamentar-se em um mero artifício de linguagem. Escutemos então o que tem este poeta a nos dizer, não sem antes confessar uma grande honra minha de tê-lo como interlocutor.
• São palavras tuas: “Minha poesia tem como sentido a captura do real. Realizar a plenitude da imagem, fundando uma nova realidade que nasça dos dados mais imediatos do cotidiano e se alce à categoria de mito.” Esse exagero que define a perspectiva mítica o aproxima tanto da exuberância barroca quanto do sentido de excesso da mais realidade defendida pelo Surrealismo. Como surge o poeta Foed Castro Chamma descobrindo-se na mais completa contramão da tradição lírica de nosso país?
A intenção de fundar uma realidade, paralela, que nasça dos dados imediatos do cotidiano e se alce à categoria do mito, implica rebeldia no sentido de individuação, usurpada pelo Logos. O poeta pretende chegar à consciência de Si. O Maneirismo, que Curtius vê nas Odes de Píndaro, ao estender-se ao barroco na fulguração emblemática de Teresa de Ávila, configura o neopanteísmo precursor desse pretenso desvelamento da realidade no emaranhado da linguagem poética, retomado pelo Surrealismo, e que na minha iconografia poética manifesta-se na sombra como um duplo de mim mesmo que o Outro representa. Na trilha de Ludwig Wittgenstein se pode pensar na poesia entremeada à filosofia da linguagem na busca de entendimento, em cujo aparato e perplexidades me descubro poeta. O campo da poesia, anterior a Homero, não era o dos fatos e do relato, era antes cosmológico, no sentido de captura da Unidade, da qual a consciência é o eixo de indagação sobre o ser e o mundo. Uma questão ontológica, portanto. Homero antecipa-se ao Logos e à História ao resgatar a lenda de Menelau e o rapto de Helena, o qual motivara a guerra de Tróia e a fundação do Império Romano, dando início assim à dinastia dos Cesares. A vocação ática de domínio da Razão exclui a Essência em função de uma geometria que não comporta o mito, antes se volta para a produção como pressuposto de um relato que culmina, em Homero, na teologia das rapsódias imortais precursora da História. Nesta medida, o parâmetro da linguagem poética continua ao lado da notícia o da manipulação do simbólico. Ao colocar-se como afirmação, a linguagem é uma ponte entre o ser e pensar. Tal inquietação abarca a angústia existencial, cujo fim se torna religião na Antigüidade (taoísmo) ou instrumento de meditação (Nibana ou Nonada) ponto de partida da visão dramática de contendas e mesmo da lenda hodierna de Diadorim. Um censo de rebeldia coloca o poeta em confronto com o Logos. O território do mito, o real, é sacralizado na Época Arcaica, de modo a fundar uma realidade epifânica, em cujo domínio a linguagem poética se exerce, elucidando com a matemática do simbólico o engenho que se ergue da negação e transforma-se em afirmação do ser. Vejo no Surrealismo a retomada da Arché. A imagem fundada no real constrói na mente a realidade. Possui anotações críticas tanto em Teresa de Ávila como em Cervantes e o delírio de D. Quixote, que Michel Foucault coloca em As palavras e as coisas ao lado de Velasquez, no espelho, interpretando assim a retórica da Semelhança que colide com uma das faces do antropocentrismo renascentista abordado por Lope de Vega, Góngora e, mais recentemente, por André Breton.
• Uma outra declaração tua, acerca da gênese de Pedra da transmutação (1984), destaca que, durante a escritura deste livro, foste “perseguido por toda sorte de alucinações”. Tais alucinações se davam à revelia ou eram fruto daquele sentido radical de um abandono ao maravilhoso que Breton defendia como sendo “a única fonte de comunicação eterna entre os homens”?
O “abandono ao maravilhoso”, sendo “a única fonte de comunicação eterna” é um ato de transgressão à imposição do Logos, a cujo código o poeta ao rebelar-se se volta, instaurando um discurso espiralado, que Platão antevira como curva do tempo e as teorias da relatividade o comprovam, negando a linearidade da física newtoniana em relação à circularidade do eterno retorno.
• Uma reação crítica aos primeiros livros mencionava uma “vocação para o satânico” (Mário Peixoto, 1953), um “espírito barroco e místico” (Walmir Ayala, 1959), “poesia de iniciado” (José Roberto Teixeira Leite, 1959), e Hélio Pólvora chega a falar de tua busca de uma onisciência. Hoje, aceitarias alguma definição de tua poética? Qual?
As definições em epígrafe são a meu ver de uma coerência definitiva em relação à minha arte poética. Não vacilo em confirmar o sentido de tentativa de um heliocentrismo de Copérnico a determinar uma centelha do pensamento a abarcar o universo ao meu redor. A extensão do pensamento ao passar pelo “espírito barroco e místico” em função de um satanismo baudelairiano configura uma iniciação que culmina naquilo que Hélio Pólvora antevê como uma “onisciência”.
• Talvez se possa entender a criação artística como uma forja dos metais do espírito. No entanto, acaba revelando-se alheia à busca, ou seja, a concretude do objeto de arte (poema, escultura, canção) será sempre surpreendente, por mais que o artista se declare senhor completo do ofício. Haveria algum caso de ruptura entre o buscado e o encontrado em teus poemas? Poderias nos falar um pouco a respeito disso?
A entrega ao poema envolve uma mediação do Todo Uno que culmina na concretude do objeto de arte, na “forja dos metais do espírito”, de maneira a não se poder declarar o poeta senhor completo do ofício, na medida em que entre o sujeito e a linguagem paira a relação de espírito e matéria, que os metalúrgicos acádicos cultuavam entremeando à forja dos metais o casamento dos opostos. Que sei sobre o que advirá dessa relação entre linguagem e Essência? Somos oficiantes e servos da representação. O domínio sobre Cronos pertence ao fogo do Espírito que delineia a fulguração do objeto de arte, a Beleza, filha de Hélios.
• De alguma maneira te consideras vinculado à Geração de 45?
A Geração posterior a 30 se volta para uma linguagem alegórica vinculada à Forma numa reação ao iconoclástico, ao antropofágico, de maneira a se pensar num suporte parnasiano que culminará no Acontecimento do Soneto, voltado para uma tradição que Jorge de Lima quase chega a esgotar e que encontrará na Geração de 56 continuidade, a cuja constelação julgo pertencer. As Gerações se sucedem atendendo a uma dialética que evolui em direção ao ponto de partida da indagação sobre o Ser. Houve época em que se pensou em Virgílio superior a Homero. Não se cogitava então de que a grandeza de Homero, ao lado do mosaísmo, está na transposição da teologia astronômica da Suméria para o antropocentrismo teológico que antecede a Renascença.
• O silogismo aristotélico e o orfismo pitagórico são zonas de conflito na tradição lírica brasileira, ou acaso esta se encontra inteiramente dominada por um esvaziamento ético, uma anulação de princípios ontológicos, de tal forma que mergulhamos em um continuísmo formal que despreza as raízes ferozes da existência humana?
O conceito de identidade em Aristóteles, apesar da grandeza da cultura greco-romana, salva em Bizâncio, colide no Renascimento com o Romantismo, ressurgindo todavia sob o critério órfico da Verdade na tessitura ética de restauração do Nume, dessacralizado na tradição lírica brasileira em função de uma metodologia que levou Byron, em contrapartida, a exclamar no início do século 18: “down Aristóteles”. O critério ético da linguagem corresponde a meu ver a uma geometria intrínseca do significado, da qual o sujeito não pode prescindir, na medida em que a prática do saber, vinculada ao uso estético da razão, é antecedida de uma ordem gramatical de domínio dos Estóicos, que a lírica brasileira parece ignorar, voltada para o epocal, o historial, na acepção de Martin Heidegger, reincidindo assim sobre um equívoco mergulhado como dizes no “continuísmo formal que despreza” a qüididade, “as raízes ferozes da existência humana”.
• Qual teria sido a influência do Concretismo em tal processo?
A meu ver o Concretismo se voltou para o processo semiológico de “desconstrução” do vocábulo, incorrendo em uma prática de ruptura com a retórica tradicional de maneira a provocar uma alta tensão, alta voltagem na construção do poema, de fundamental importância para o poeta novo.
• O reconhecimento de tua poesia, a exemplo de um outro poeta, José Santiago Naud (1930), por exemplo, de que maneira teria sido comprometido por essa situação?
Na verdade, existe um pressuposto hierárquico de valores que aparenta ignorar qualidades em função de uma imediatidade imposta pela cultura. Penso percorrer um caminho de descondicionamento do que pretende se impor em detrimento de uma prática a priori do saber. Um processo, portanto, de invenção e de contracultura.
• Quero retornar a teu Pedra da transmutação, por uma simples razão: a estrita relação que guarda com outro livro, Filosofia da arte (1999). Não me refiro à vinculação temática, mas a um aspecto curioso: a disposição formal entre verso e prosa. Rigorosamente o que se apresenta em verso em Pedra da transmutação poderia ser um capítulo, em prosa, de Filosofia da arte, sem perda de comunicação alguma. Como defines essa forja do verso e da prosa?
Houve a partir dos 2.000 primeiros versos de Pedra da transmutação uma inclinação natural para o acompanhamento crítico do poema, passando por questionamentos do realismo hegeliano e a tentativa de elucidar o alucinatório em função de uma arte que emergia do cotidiano concentrada na geometria da sombra como um duplo, cuja física encontraria na linguagem o Ícone a dar sustentação emblemática a uma figura que rompia o espelho da semelhança e se impunha junto a mim projetado no outro como linguagem criptográfica. Filosofia da arte é uma biografia do poema que reflete o incêndio na floresta. O texto em prosa percorre a floresta do imaginário à procura da clareira. Porfírio diz, em As sensações, que a imagem está na mente e se transforma em realidade.
• Parece-me que o homem não existe aquém ou além do mistério. Magritte tem uma frase brilhante neste sentido: “o mistério é a necessidade absoluta para que a existência seja possível”. No Brasil, a idéia de modernidade coincidiu com uma certa erradicação do mistério, e praticamente se impôs um determinismo que ainda hoje reflete-se no esvaziamento de confronto entre poesia e realidade.
Penso em um axioma filosófico: a liberdade é a necessidade. A liberdade é o mistério que a poesia percorre como necessidade de elucidação do ser na negação. No Brasil, o futurismo em voga na Itália em 22 exerceu forte influência na Semana da Arte Moderna sob o critério de desenvolvimento industrial, apesar de Gabriele D’Annunzio e da tradição Simbolista italiana, da influência sobre Borges e em toda a América latina do que seria a extensão de uma conquista individual renascentista tardia. Por outro lado, tal realismo esbarra num pressuposto de escola que sucede ao naturalismo e remete o intelectual brasileiro à herança cartesiana a qual, por sua vez, acolhe Victor Hugo, Gerard de Nerval, Baudelaire, Laforgue, Rimbaud, ao lado de um Rilke, um Rodin, enquanto se permanece preso a pruridos epigonais de “desconstrução” da sintaxe. O cartesianismo exerce desde o século 17 um esvaziamento castrador do Antropocentrismo responsável pelo Renascimento italiano, iniciado com Dante no século 13, e que deu a Roma o traçado moderno de Miguel Ângelo, e que levaria Descartes a conceber o Discurso do método em relação ao antigo emaranhado de vielas de Paris. Nossa modernidade está presa a uma herança cultural contrária ao projeto literário de Allan Poe que deu origem ao Simbolismo e se impõe desde o realismo sucessor do naturalismo no século 18 em detrimento do surreal.
FOED CASTRO CHAMMA
(Paraná, 1927)
Obra poética
Melodias do estio. S/d. 1953.
Iniciação ao sonho. Brand. 1955.
O poder da palavra. Edições Jornal de Poesia. 1959.
Labirinto. Porta de Livraria. 1967.
Ir a ti. O Debate. 1969.
O andarilho e a aurora. Livros do Mundo Inteiro/Instituto Nacional do Livro. 1971.
Pedra da transmutação. Ed. Melhoramentos. Rio de Janeiro. 1984.
Sons de ferraria. S/e. 1989.
Antologia poética. Imprensa Oficial do Paraná. Curitiba. 2001.