Desassossego

"O mundo como idéia" reúne 40 anos de poesia de Bruno Tolentino
Bruno Tolentino não se rendeu ao rapapé que norteia o cenário poético do Brasil
01/12/2002

Passei na livraria para comprar o livro. Para variar, contei com a total ignorância da vendedora. Quando fiquei sabendo do preço do volume, hesitei. Por fim, desembolsei R$ 50 e saí, feliz da vida, com O mundo como idéia, de Bruno Tolentino, sob o braço, saboreando-o já ainda no caminho.

Saboreando, eu disse? Sim, mas o sabor que senti não foi doce nem tampouco etílico. Foi algo acre já ao primeiro soneto In Limine. O ofício, contudo, manda que não se desista ao primeiro tropeço. Antes de bater com a cara numa árvore do Passeio Público, fechei o livro disposto a saboreá-lo com um copo de coca-cola ao lado, logo mais à noite.

E foram quatro noites de leitura. Poema após poema, verso após verso, a dúvida se instalava em mim. Afinal, eu havia lido A balada do cárcere, do mesmo Tolentino, e o que encontrava era um poeta mais maduro e sereno nesta compilação que se faz crer definitiva. São 40 anos de poesia reunidos num volume sóbrio, pelo qual nenhum leitor — corajoso, há que ser — passa incólume.

Talvez por isso mesmo a imprensa tenha feito um esforço tremendo para ignorar o lançamento de O mundo como idéia. Sim, porque é preciso um esforço enorme para tratar com tamanho desprezo 40 anos de produção literária deste homem que é reconhecido internacionalmente como um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos.

Aliás, o desprezo, a meu ver, começa pela Editora Globo. Não sei como foi a negociação em torno da publicação deste livro, mas sua divulgação foi, no mínimo, pífia. Para se ter uma idéia, fiquei sabendo do lançamento do livro por meio de um site — nem de longe o ideal meio de comunicar um acontecimento desta monta. Além disso, o preço estipulado é proibitivo. Livros de poesia não têm apelo comercial, mas ao preço de R$ 50 eles se tornam praticamente inviáveis. Pode-se pensar que a editora não tem mesmo muito interesse em se dedicar a um escritor tão odiado nos círculos literários. Ademais, se o livro foi lançado somente no final de 2002, por que ele traz impressa a data de lançamento como 2001?

Bruno Tolentino é, sim, odiado. E odiado porque é bom, vale dizer. Bruno Tolentino não se rendeu ao rapapé que norteia todo o cenário poético do Brasil. Desde seu surgimento para as letras, há quarenta anos, bateu de frente com a tradição falsamente vanguardista da poesia brasileira, que naquele tempo vivia sob a ditadura do concretismo, esta aberração estética criada entre um vômito e uma diarréia pelos irmãos Campos e Décio Pignatari. Pelo contrário, ao perceber que as coisas iam muito mal das pernas por aqui, Tolentino pegou o primeiro avião rumo à Tradição. Foi lecionar na prestigiosa universidade de Oxford, rodou a Europa toda na companhia de literatos do mais alto gabarito, como Yves Bonnefoy e Auden, para desaguar no Brasil trinta anos mais tarde.

Voltou em grande estilo — para usar um termo comum de colunas sociais. Aquelas páginas amarelas da revista Veja, a Bíblia da classe-média brasileira, jamais viram figura tão acima das palavras ali confinadas. Sob a batuta mais que imperfeita de Geraldo Mayrink, Bruno Tolentino arranjou amigos e inimigos ao tocar em pontos cruciais de nossa tradição cultural. Para quem não se lembra, vale lembrar. Para começar, o poeta ousou falar bem de Olavo Bilac, poeta parnasiano que é o horror de qualquer poeta modernoso, em contraposição a Caetano Veloso. Podada pelo rigor jornalístico em relação ao espaço, a declaração de Bruno Tolentino soou como provocação vazia, ainda que traga em si aspectos estéticos para lá de pertinentes. A tradição desta nova velha MPB de querer se impor como alta cultura é algo realmente repugnante. Depois, falou mal da poesia concreta. Ah, a “adorável” poesia concreta, marca maior desta nossa cabeça infantil, capaz de admirar grunhidos de Arnaldo Antunes, hoje em dia, e de admirar garranchos gráficos de Pignatari, num passado recente. E, para coroar a entrevista, falou mal das universidades brasileiras, este antro de idéias marxistas para boi dormir.

Foi, para o grande público, o apogeu e o ocaso do poeta, transformado em apenas mais um polemista para se rir no picadeiro das idéias. Um pecado, claro, porque, se ouvido, Tolentino teria muito a acrescentar neste marasmo que é a cultura brasileira, feita de canapés e vinho branco suave nacional oferecido em noites de autógrafos.

Paralelamente, continuou a escrever seus versos, para os poucos que queriam ouvi-lo em sua ânsia por manter viva a tradição do poeta cerebral. A balada do cárcere chegou a ganhar o agora prestigiado Concurso Cruz e Souza e teve uma boa colhida nos meios literários privilegiados, excluindo-se, aí, os botequins onde se reúnem os adoradores da já tradicional poesia de guardanapo, movida pelo mais vagabundo dos álcoois etílicos.

Para retornar às estantes (poucas e seletas, na verdade) com este O mundo como idéia. Que e agente compra, lê e vê a cabeça toda ser bagunçada. Todas as convicções ficam amortecidas, esperando uma solução que não acontece. Uma epifania, pelo amor de Deus!, a gente clama nas horas de maior desespero. Depois de ficar rodando feito barata tonta no quarto-e-sala, um cigarro atrás do outro, querendo entender o que é que há, o que é que há, a gente resolve pegar o livro na estante, para uma segunda e caótica leitura. E o abismo aos poucos fecha-se.

É o parto da Idéia se avolumando. Doloroso como qualquer outro parto. Tolentino, poeta que publica este seu mundo em pleno século 21, retoma a Tradição dos grandes poetas, de versos cerebrais, galgados em um raciocínio aristotélico, em contraste com a grande tradição platônica de nossa poesia. Não, Tolentino não invalida esta outra poesia (apenas parte dela, como argumentarei a seguir); por outra, retoma o poder de dissertação de versos forjados no frio da solidão e na subordinação à forma.

Na noite insone, dias depois de ter lido O mundo como idéia e às vésperas de escrever este texto, fui tomado pela Dúvida da Diferença. Então a aceitação da Tradição passa pela aceitação de um diferente máximo, que nos toca em coisas as mais profundas e a longo prazo. Bem ao contrário da poesia que nos tira lágrimas se declamada assim, entre um conhaque e outro.

A partir da leitura de Tolentino, mentalmente compreendi que a poesia brasileira é um vértice do qual se originam três segmentos. O primeiro, mais à esquerda, é aquele composto por todas as besteiras de vanguarda, que não vingaram ou que vingaram por um tempo e depois sumiram. Ali estão reunidos os poetas concretos, os versejadores bêbados, os publicitários trocadilhistas e quase todos os poetas contidos na coletânea Na virada do século, organizada por Claudio Daniel e Frederico Barbosa. No segmento central está a poesia de qualidade ligada a um fazer poético mais orgânico, intuitivo, platônico. Estão ali Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e, para citar um poeta bom da nova geração (se não eu fico parecendo um velho mais rabugento do que o velho rabugento que sou), Fabrício Carpinejar. É a poesia que nos leva fácil, fácil às lágrimas, porque remete a situações cotidianas e a sentimentos pequenos (mas não medíocres) que nos assolam no dia-a-dia. Por fim, no segmento mais à direita, temos Olavo Bilac, João Cabral de Mello Neto e Bruno Tolentino, donos de obras expressas pela razão e pelo cerceamento saudável da forma. Em comum, têm certo amor pelas origens do fazer poético, que remonta ao saber clássico.

Não que uma poesia queira se impor sobre a outra, claro. A convivência é permitida (a não ser com o lixo vanguardista) e saudável para enriquecer tanto uma quanto outra. E eis aqui o senão de O mundo como idéia para alguém que, como eu (e, tenho certeza, 90% dos meus leitores), está acostumado ao lirismo rasteiro, brejeiro, com um pé na pieguice, dos grandes poetas do Brasil. É que Bruno Tolentino, por vezes, nos soa inalcançável. Há que se debruçar sobre um sem-número de referências para se chegar à completude de algumas idéias contidas em seus poemas. Não foram poucas as vezes que, confesso, bocejei durante a leitura. E menos por cansaço e mais por necessidade de oxigenar os neurônios, reorganizar as idéias, puxar da gaveta lá debaixo, lá do canto, aquele nome ali citado e por ele dissecado em um adjetivo exato.

Não é um problema da poesia de Tolentino, obviamente, e sim de nós, leitores comuns, pouco acostumados a esta exaltação da Tradição, tanto pela forma quanto pelo conteúdo. Os aspectos aristocráticos em O mundo como idéia estão presentes em detalhes simples, que às vezes soam como pedantismo. Como no soneto In Limine, por exemplo. Lá está ela, a epígrafe — em grego.

E aqui se instala um debate sobre a subserviência da poesia ao conhecimento pequeno. Bruno Tolentino, é evidente em seus ensaios, crê num poeta acima dos mortais, de preocupações mais elevadas que a vida comezinha que vive aqui, entre o baixo clero da inteligência. Muitos com ele concordam e não posso negar que, pelas páginas deste O mundo como idéia, fui introduzido num universo que a mim era hostil, graças aos versos milimetricamente construídos pelo poeta. Em outras páginas, contudo, senti-me intimidado a dar uma boa lida numa enciclopédia antes de continuar. Repito: não é culpa da poesia de Tolentino, que se nega a baixar a cabeça e falar comigo olho-no-olho. Então há que se fazer um esforço por vezes sobre-humano, levantar os olhos para encará-la e.

Eu sou um leitor normal; não um nobre de larga estirpe. O ócio se me revela como uma dádiva e não como algo que me é de direito. Talvez o leitor ideal de Bruno Tolentino seja mesmo formado por homens destinados à contemplação do Tempo que escorre em sua sábia monotonia, alheios aos problemas mundanos sobre os quais teimo em me debruçar. Não há outra coisa que se fazer a não ser resignar-se.

Ou, por outra, talvez o leitor ideal de Bruno Tolentino seja mesmo o de jovens entusiastas, que o adoram como um semideus. Tenho percebido que várias pessoas passaram pelas páginas deste O mundo como idéia do mesmo modo que nelas entraram, ou seja, sem em nenhum momento duvidarem de suas próprias convicções. Pelo contrário, para os jovens entusiastas (que, por sinal, existem também para o concretismo e aquela poesia platônica de que falei) as quatro centenas de páginas de Tolentino só serviram para corroborar suas convicções anteriores. Não há, para estes adoradores que pululam a cada ode a seu ídolo, o abismo que é, para mim, parte essencial da obra de Tolentino, a saber:

Pascal levava o próprio abismo dentro dele.
É tudo abismo para mim — desejo, ação,
sonho, linguagem… Sinto arrepiar-me a pele
as lufadas do pânico e, em qualquer direção,
no alto, embaixo, entorno, sofro por toda parte
o silêncio, o sem-fundo, o espaço que me atrai
e me aterra… Ah, Senhor, com que requinte e arte
Teu multiforme pesadelo pesa, ó Pai!
O sono para mim é um bueiro maldito
levando não sei onde, entre horror e negrumes.
De todas as janelas eu só vejo o infinito.
Cercado de vertigem, roído de ciúmes
do nada e do insensível, ó meu débil espírito,
sonhas jamais sair dos seres e dos números!
[in Três Líricas para Baudelaire, p. 101]

A admiração deste O mundo como idéia passa por algo muito caro a nosso espírito inegavelmente maniqueísta: pela aceitação de uma Tradição perene, que nasce em Dante e passa por todas as pequenas revoluções da literatura, até desaguar neste conturbado século 21. Passa, sobretudo, por uma leitura séria e ponderada, sem os arroubos de fanatismo que tenho notado em alguns leitores do poeta.

Que não é Mestre, vale dizer; e sim um poeta. A iluminação também se alcança pela negação de certas verdades que parecem fáceis. Parece-me, aliás, que O mundo como idéia quer propor exatamente este choque de uma verdade previamente concebida com a verdade individual, única e por vezes conflitante. Por isso, não vou ficar aqui de frases laudatórias com relação a este livro de Tolentino. Que se lê com o esforço típico daqueles que correm atrás de um prazer maior que a fugacidade dos versos. Aos trancos e barrancos, vale dizer. Com noites de insônia, entre bocejos e releituras necessárias. Para, no fim, constatar-se que há alguma coisa pulsante na Tradição (pedante, vá lá) evocada por Tolentino. Alguma coisa, contudo, que a simples sucessão de palavras neste texto não quer nem pretende reduzir a um amontoado de observações que preencheriam um único abismo: o meu.

Sugiro, portanto, que vossa senhoria o leitor gaste seu precioso dinheirinho no volume (procure não se irritar com a vendedora, tadinha) e, antes de sentar-se na poltrona ou deitar na cama com ele na mão, crie vales profundos na alma e deixei-os ser preenchido com a sapiência acre de Tolentino.

O mundo como idéia
Bruno Tolentino
Editora Globo
443 págs.
Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho