De céus e infernos

Edgar Telles Ribeiro escreve um romance cheio de memórias e esquecimentos; e de amores e ódios
Telles Ribeiro: loucura das boas
01/12/2002

Quando a mulher de vestido verde o conheceu, ele era o homem mais triste do mundo. Da janela de sua casa, só conseguia ver lágrimas e gritos e dor. Só lamentos e olheiras. Cada dia via um grupo novo de pessoas com roupas pretas, segurando caixas com alças que eram levadas em cortejos chorosos para que um homem de chinelos de dedo as colocasse dentro de buracos cobertos de tijolos e cimento. Às vezes umas flores por cima. Não via sorrisos. Nem no espelho, porque se esqueceu. Esqueceu de que foi feliz um dia. E de que se olhava no espelho e sorria.

Também era a pessoa mais sozinha que já pisou nessas terras. Não tinha amigos, e os vizinhos não eram muito de papo. Viveu durante anos sem falar com ninguém. Não queria. Não tinha nada a dizer e não queria saber o que os outros tinham para falar. Acreditava que todas as pessoas que ele já havia conhecido eram suficientes. Não precisava de outras. E afogava-se em sempre os mesmos dez livros que recebeu de herança do pai, para tentar se sentir em boa companhia.

A mulher de vestido verde, conheceu em uma terça-feira de muito sol. Ela estava na caixa que, depois de uma noite de vigília, foi coberta por tijolos e cimento. E flores. Muitas. Dois dias depois da choradeira e do buraco coberto de terra e cimento, a viu novamente. Estava linda, com borboletas coloridas nos cabelos longos e pretos. Com o mesmo vestido verde. E sorria, a mulher. Um sorriso que ele nem sabia que poderia existir, de tão brilhante. Eles se encontraram quando espiavam um moço loiro conversando com o homem que faz os buracos na terra. O loiro perguntava de quem era o osso que estava lá dentro. E o homem, de dentro do buraco:

Do bobo, ora.

O loiro, com cara de espanto:

Seria o bobo que conheci? Um bobo de nome estranho que, certa vez, me carregou nas costas. Acreditava ser um cavalo, o pobre!

E emendou, com voz de canastrão teatral:

“Sinto engulhos. Era aqui que se encontravam os lábios que eu beijei não sei quantas vezes. Onde estão agora os chistes, as cabriolas, as canções, os rasgos de alegria que faziam explodir a mesa em gargalhadas? Não sobrou uma ao menos, para rir de tua própria careta? Tudo descarnado!”

A moça bateu palmas efusivas e gargalhou.

Adoro Hamlet. E você?

Não conheço.

Vá até a biblioteca e pegue o livro do inglês, meu bom homem.

Por quê?

Porquê.

E o homem foi. Trouxe o livro debaixo do braço. Leu. Várias vezes. Decorou as frases todas. Vez ou outra, a mulher de vestido verde aparecia por lá. E ele contava a história do príncipe dinamarquês que falou com o espírito do pai. Mas continuava triste. Porque o moço do livro era triste, triste. E não tinha mais pai, como ele. Se ao menos o espírito dele aparecesse… Mas teria de se contentar com a mulher de vestido verde. Bonita, mas desconhecida. Sem nenhuma ligação mais intensa.

Quando leu O manuscrito, de Edgar Telles Ribeiro, surpreendeu a mulher de verde. Teve uma idéia roubada do livro: ia pedir para a mulher ser sua fantasma. Só sua. E ia escrever livros! Propôs na primeira noite em que ela apareceu. A mulher riu. E ele:

Já pensou, eu escrevendo coisas como: ‘Anjos do céu, correi em nosso auxílio! Quer sejas um bom gênio ou alma penada, quer tragas ar do céu ou sopro infecto, quer tenhas intenções ruins ou amoráveis, tão duvidosa é a forma que assumiste, que resolvo falar-te’ Hamlet, Ato 2, Cena 2.

Você não vai fazer isso. Primeiro porque eu não serei sua fantasma. Tenho outras pessoas para atender. E segundo, porque você não é nenhum Shakespeare. Nenhuma musa poderia transformá-lo em um escritor.

O homem ficou ofendido. Não teria sequer seu próprio fantasma… E fechou mais ainda a carranca. Não queria mais saber dessa história de ler, ler, ler. Achava que isso não o levaria a lugar nenhum. Precisava, agora, escrever. Resolveu, então, escrever uma carta para Telles Ribeiro. Caprichou, porque o homem é embaixador, diplomata, jornalista e cineasta. Ficou com a carta, durante muito tempo, na gaveta do criado-mudo. Um dia, sonhou que a mulher de verde tomava um café com ele e dizia “sim”, olhando para a carta. Decidiu que aquilo era um aviso e a depositou na caixinha do correio.

“Caro Edgar

Acabo de ler seu romance. Devo dizer que me impressionou muito. Tanto pela história — divertida, misteriosa, com uma pitada de poesia, até — quanto pela forma de escrever — cheia de idas e vindas e explicações do texto no próprio texto, e detalhes, muitos detalhes. Tanto que fiquei tomado por uma vontade imensa de ter um fantasma só para mim. Até tentei convencer a mulher de vestido verde a fazer isso. E me ajudar a escrever. Mas ela me desanimou. Disse que eu não tenho talento. Foi muito mais cruel do que Gretta, a fantasma do seu livro que dizia que Paulo Valadares — escritor, embaixador e feliz morador de Wellington, Nova Zelândia — não tinha um texto lá muito bom e que no Brasil, sua pátria, ninguém sabia de sua existência. A minha mulher de verde sequer seria minha fantasma. Não sou suficientemente interessante para ter um “anjo da guarda” ou coisa que o valha. E não sou bom escritor. Na vida real, meu caro Edgar, os fantasmas são ainda mais duros e críticos. Porque lêem — sempre no original, como você sabe —, e muito. É só o que se tem a fazer lá no céu deles. Ler. Gosto de ler. Mas o que eu queria mesmo era escrever. Colocar em um papel todas as idéias embaralhadas que a gente tem, todas as frases soltas que anotamos em nossos cadernos. E ordená-las. Creio que essa deva ser a parte mais difícil. Ordenar pensamentos. Porque as palavras, essas vêm meio soltas. Talvez em blocos de idéias bem gerais. Pelo menos para mim. Mas não sou escritor. Já estou divagando. Veja como para mim é difícil ordenar pensamentos…

Quero dizer que seu livro me agradou. É isto. Quando comecei, achei que ele não ia a lugar nenhum. Um homem que pede a uma mulher doente que seja sua fantasma inspiradora, assim que desencarnar… Tive dúvidas. Conversei com a mulher de verde. Ela, como se fosse uma daquelas professoras de ginásio, pediu para que eu fizesse um resumo do livro. “É para eu ver onde estou me metendo, se resolver ser fantasma de escritores, sabe?”, ela me disse.

Obedeci. Não sei por que sempre obedeço a essa mulher. “O livro conta a história de Paulo Valladares, um escritor e geólogo brasileiro que mora na Nova Zelândia, e pede para que Gretta, a mulher de um companheiro de trabalho seja, ao morrer, a fantasma que o inspire a escrever melhor. Na verdade, não se sabe se essa mulher existiu ou não, se os dois tiveram um romance ou não, se ela morreu ou não. O que não importa, na verdade. Valladares é internado em uma daquelas casas de repouso, pouco depois de sua separação. Irene (a ex-mulher) e os filhos voltam para o Brasil. Lá, a mulher encontra um novo amor. E ele, interno no sanatório. Toda a história é permeada de cartas escritas por médicos psiquiatras que tratam de Valladares, críticos de literatura e a editora que reluta em publicar o romance”, é o que conto a ela. Não digo tudo, para não estragar a surpresa, certo? A mulher fica confusa. “É um romance? Um policial? Um livro espiritualista?”, pergunta. “Nem uma coisa, nem outra, nem outra. Mas todas, também”, respondo.

Digo a ela que é um livro em que realidade e ficção andam lado a lado, sem nenhuma estranheza. Há memórias e esquecimentos. Amores e ódios. Não sei se você me entende, Edgar. Ou me acha louco — o que não é de todo mal. Porque a loucura, como você demonstra bem em seu livro, pode ser muito boa coisa. Os loucos podem criar um mundo perfeito. As pessoas normais é que complicam tudo.

A idéia de inserir as cartas dos personagens secundários em toda a trama foi uma ótima saída. Várias vozes, várias visões sobre um mesmo tema. E todas esclarecem algum ponto da trama que pode ter ficado obscura. Foi o colorido do livro. Apesar de, às vezes, essas cartas serem explicativas demais. O livro se explica quase que o tempo inteiro. Mas isso não compromete, não. Facilita a leitura, para alguns. Esse “jogo de empurra” dos críticos, médicos e amigos — cada um passa para o outro a responsabilidade em encontrar o que há de verdade dentro do livro de Paulo, como se nenhum deles a tivesse — é muito saboroso.

Também preciso destacar a leveza da história. Há livros densos que são, sim, excepcionais. Mas há muita beleza e talento em leves romances. E tudo isso — a beleza, a leveza — surgem ao mesmo tempo em que há uma relação tensa entre os personagens, em seu livro. Sem contar com a doença, a loucura que permeia todo esse palavrório. Loucura causada pelo fantasma. Ou vice-versa. Não importa. Acredito que ninguém fique frustrado por tentar entender o que veio primeiro, para Paulo Valladares: se a loucura ou o fantasma.

Aliás, esse fantasma é extremamente engenhoso. O uso de um “personagem” tão nebuloso para servir como alter-ego do narrador é extremamente eficaz. Gretta, a fantasminha camarada, pode ou não ter existido. Assim como Johan. A mulher (Isaura) e os filhos são, nesse caso, os verdadeiros fantasmas que povoam o sono e a vida do atormentado escritor e diplomata, que acaba em um sanatório na Nova Zelândia.

Gostaria de ter tido essa idéia antes de você. Mas não tive. E olhe que convivo com fantasmas. Muitos.

Abraços.

P.S. – Mando também um texto em que estou trabalhando para que comente, se puder.”

Depois que largou a carta na caixinha, arrependeu-se. Fez de tudo para tirar o papel lá de dentro. Mas não conseguiu. Não esperava que um homem ocupado como aquele escritor tivesse tempo de ler uma correspondência daquela. E com todas aquelas coisas (mal) escritas! Mas mesmo assim, sentiu vergonha. Muita. Ficou arredio e começou a se esconder da mulher de verde. Ela riria até o fim dos tempos da bobagem que ele fez.

Imagine, publicar aquilo. Ninguém em sã consciência iria gostar do que você escreveu…

Fugia, então, da mulher. Até o dia em que a carta chegou.

“Meu caro

Fico feliz que tenha gostado do romance. É meu terceiro.

Quanto a seu livro: o personagem está pouco definido. É triste, sabe-se. E lê. Só. Acho que o primeiro e o segundo parágrafos são repetitivos. É certo que há escritores que usam da repetição de palavras e frases como estilo. Mas é preciso saber como fazer. E aqueles todos aqueles “es”? — “e lágrimas e gritos e dor”. O homem do cemitério, o loiro, surgiu de onde, foi para onde, quem era, por que declamava? O final é terrível. É preciso trabalhar muito nesse texto. Mas há salvação. A mulher de verde foi, realmente, exagerada com você. Há como você escrever algo, sim. Não um livro, por enquanto. Mas um conto ou uma crônica, quem sabe?

Abraços.”

Pegou a correspondência, o original do que tinha escrito, e mandou enquadrar. Chamou a mulher de verde, mostrou os quadrinhos. E sorriu.

O manuscrito
Edgar Telles Ribeiro
Record
254 págs.
Edgar Telles Ribeiro
58 anos, é brasileiro, filho de diplomata. Passou parte de sua infância e adolescência entre a Suíça, França, Grécia, Turquia e o Brasil. Entre 1967 e 1970, no Rio de Janeiro, publicou artigos sobre cinema, música e literatura no Correio da Manhã, em O Jornal e na Revista do Diner’s. Na carreira diplomática serviu em Los Angeles, Guatemala, Quito, Nova York, Wellington. Atualmente é embaixador na Malásia. Durante a década de setenta, produziu e dirigiu alguns curta-metragens para cinema. Seu romance de estréia foi Criado-mudo (1991). Também publicou O livro das pequenas infidelidades (contos), As larvas azuis da Amazônia (novela), Branco como o arco-íris (romance) e No Coração da Floresta (contos). Um de seus contos foi incluído em uma antologia sobre a literatura latino-americana contemporânea, lançada nos Estados Unidos pela Plume/Penguim Books.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho