As máscaras escandalizadas

Resenha do livro "As máscaras singulares", de Luiz Ruffato
Luiz Ruffato, autor de “As máscaras singulares”
01/12/2002

James Ensor: “com alegria confinei-me no lugar solitário em que domina a máscara feita de violência, de luz e de esplendor. A máscara me diz: frescor de tons, expressão acentuada, cenário suntuoso, grandes gestos inesperados, movimentos desordenados, turbulência refinada”. Estas palavras do pintor e a resenha do novo livro de Luiz Ruffato, As máscaras singulares, estaria pronta. Não fosse a vontade de acrescer umas dúvidas aqui.

Ruffato retorna à poesia. Desde Cotidiano do medo, de 1984, o autor de Eles eram muitos cavalos, romance que ganhou os principais prêmios literários do País, não se aventurava pelo verso. Deveria passear mais vezes por estes cenários.

Ruy Espinheira Filho sugere, na orelha do livro, “morte e condição humana em toda a sua crueza”. Mais do que condição, trata da comédia humana. Por isso o livro inicia-se com o surgimento da própria vida, “No abismo da hora a ingente/ infância a espinha percorre-nos” e finda-se com a morte, “Porque o barro que nos compõe,/ é esse que nos desintegra”. A vida de todos, máscaras que indagam o espectador, umas medrosas, outras irônicas, patéticas, idiotas, mas o olhar a perquirir aquele que as criou, mostrassem a indignação diante da falta de explicação.

Daí a peleja constante com “Deus: que é Deus”. A humanização dessas criaturas superiores, nós, abandonados, “aqueles cujos deuses nos deserdaram”, é a questão mineira, sugere-nos uma Minas Gerais inteira insurgindo contra a tirania católica, monstro que cuspiu seus pecados e dilemas em cima dessa gente honesta. “Mentiram-nos, desde o sempre: Deus/ não o há, e nem demônios. Sós,/ nossas noites chuleamos e a mão/ da manhã arrebata-nos o arremate”. Já que é essa a solidão, que a construamos ao lado da amiga, que aparece ali pelas arqueologias, garimpando destroços, quando adulto: “Por que a convidaste, amiga,/ esta indesejável criatura?”.

E misturam-se Edgar Allan Poe, mitologia grega, cultura hebraica, numa amálgama de crenças que não é senão a busca do homem pela sua origem e isso não quer dizer ateísmo, coitado de quem assim o crer, é a questão, a que enobrece o ser humano e o expurga de sua própria comédia. “Pacientemente despetalas o sorriso/ dente após dente”.

É uma poesia refinada, desconfiei logo no início do pequeno número de páginas, do anjo surdo a pregar suas máximas, sabia-me na presença de um livro difícil, cheio de truques, trapaças, artimanhas, como o cotidiano, esse que Ruffato tão bem descreve e com o qual nos presenteia.

A terminar com os jogos da morte e a plena escuridão.

As máscaras singulares
Luiz Ruffato
Boitempo
78 págs.
Whisner Fraga

Nasceu em Ituiutaba (MG), em 1971. É autor de As espirais de outubro (2007), Abismo poente (2009), O que devíamos ter feito (2019), entre outros. Tem contos traduzidos para o inglês, o alemão e o árabe. É responsável pelo canal Acontece nos livros (YouTube), em que fala sobre obras da literatura contemporânea.

Rascunho