Dupla face

Resenha do livro "Meu diário de Lya", de Elvia Bezerra
Elvia Bezerra, autora de “Meu diário de Lya”
01/12/2002

Meu diário de Lya, de Elvia Bezerra, é um ensaio de mão dupla: biografia de Lya Cavalcanti e livro de confissões da autora. Obra de natureza mista, o que nela vamos encontrar não é exatamente um diário íntimo, à maneira (pouco difundida entre nós, diga-se de passagem) de Amiel ou dos irmãos Goncourt, mas um registro cotidiano em função de um relato biográfico, de maneira que o registro não parece ter sido “diário”, e sim concebido e realizado apenas para vincular-se estruturalmente ao ensaio proposto. Seja como for, é um recurso ousado conduzido com mestria.

As páginas desse suposto diário, sem data muito precisa, assemelham-se às memórias ou às anotações casuais, embora a disposição do texto insinue, quase sempre, a existência de um caderno de escritos íntimos regulares. À recomposição de alguns fatos relevantes do seu convívio amical com Lya juntam-se comentários em torno de suas pesquisas para a redação do seu livro de estréia, A trinca do Curvelo (Topbooks, 1995), e do seu convívio com escritores e livros, sem falar em algumas observações de cunho metafísico, próprias do diário como gênero. O contraponto entre o percurso de Lya Cavalcanti, que recua no tempo, e os encontros Lya/Elvia, na atualidade, caminham no sentido de estabelecer uma ponte e uma unidade: um retrato escrito com delicadeza e afeto. Mais que isso, contudo — por meio dele, Elvia também se procura. E nessa procura ela descobre que, na gênese de seu primeiro livro, nas entrevistas que realizou para a sua composição, há a revelação de um jardim secreto que chamamos literatura. Um reino de antípodas que aos poucos passa a ser também o seu.

Ao escrever A trinca do Curvelo, sua intenção era abordar apenas a figura de Manuel Bandeira. Ao lado do autor de Mafuá do malungo, insinuaram-se Nise da Silveira e Ribeiro Couto. O que se percebe agora, em Meu diário de Lya, é que outros personagens se manifestam nas entrelinhas, de maneira quase subliminar. Em busca de um perfil de Lya Cavalcanti, um pássaro difícil de cativar, Elvia se encontra consigo mesma no caminho que a conduz à literatura, paixão que parece subjugá-la cada vez mais. O relato de um sonho à página 39 é paradigmático: “Eu me movia num mar muito escuro, com metade do corpo apoiado numa balsa. Não havia desespero ou angústia. Havia a imensidão do mar, a escuridão e o amparo frágil que a balsa me proporcionava. Via surgir devagar, posicionada mais para o lado esquerdo, uma construção impressionantemente sólida e clara. (…) Era, na verdade, uma grande biblioteca (…)”. É a partir desse momento que o livro passa a ganhar em perspectiva e mergulho.

Claro, também a história de Lya Cavalcanti tem o seu viés literário. Apesar do personagem não estar diretamente vinculado à literatura, seus passos se confundiram com os de muitos dos grandes escritores brasileiros do século 20, entre os quais Antônio Callado, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Podemos ainda citar Villa-Lobos, Antonio Bandeira, Pascoal Carlos Magno e Nise da Silveira, gente com a qual ela conviveu. Mas convívio estreito mesmo foi com Drummond, seu amigo dedicado e paciente.

“Não são os tempos mais alegres que deixam as melhores lembranças, mas os tempos mais intensos”, afirmou mais tarde Antonio Callado a respeito daquele tempo e lugar: Segunda Grande Guerra, BBC de Londres. A ensaísta esmiuça o tema e traça um admirável painel de época. Depois das atividades na BBC, de volta ao Brasil, Lya fez tradução para o editor José Olympio e exerceu, entre outras atividades temporárias, a de cronista de rádio (Rádio Ministério da Educação). Dessa sua atuação nasceu o célebre Tempo vida poesia: confissões no rádio (1986), em que Drummond reúne o seu “papo radiofônico” com Lya. De repente, seu espírito itinerante fez com que se voltasse exclusivamente para a proteção dos animais, função para a qual parecia mesmo predestinada. Uma trajetória cheia de aventura, de muitas lutas inglórias, de posicionamentos polêmicos e incidentes desagradáveis. Sua presença nos meios intelectuais do Rio de Janeiro dos anos 50, 60 e 70 foi lateral e se deu sobretudo por meio dessa sua militância ininterrupta em favor dos animais abandonados ou explorados.

Para traçar o perfil dessa mulher que poucos quiseram entender, Elvia lançou mão de uma artimanha, entre tantas, notável: textos de Carlos Drummond de Andrade, de várias crônicas suas dedicadas a Lya e da correspondência que eles mantiveram através dos anos. Assim, Meu diário de Lya evoca esse passado brasileiro recente com um senso de medida e uma fidelidade documental exemplar. Lya foi absurda, escreve Elvia ao fim de seu percurso. Um percurso que vai muito além da biografia de uma mulher, chegando afinal ao horizonte generoso e confortador das grandes descobertas humanas.

Meu diário de Lya
Elvia Bezerra
Topbooks
263 págs.
André Seffrin

Nasceu em Júlio de Castilhos (RS), em 1965. É crítico literário, ensaísta e antologista. Autor, entre outros livros, de O demônio da inquietude (2023).

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