O poema como ato de fidelidade

Paulo Hecker Filho revisita os poetas, a família e a própria obra
Paulo Hecker Filho: “Cada autor tem a sua temática. A minha enfrenta a realidade”
01/12/2002

Quando lança Fidelidades, seu 14o livro de poemas, Paulo Hecker Filho cumpre uma trajetória quase circular, retornando ao tema de seu segundo livro do gênero, Cartas de amor. Na coletânea de 1986, a fidelidade do poeta aos amigos, aos autores, aos temas recorrentes, à cidade, é o fio condutor de uma poética que se abre tornada — toda sua anatomia — um coração corajoso na espinhosa tarefa de entregar-se (haverá outra tarefa para quem escreve versos?). Na coletânea lançada agora, os quase 90 poemas divididos em dez sessões são espécies diferentes de uma capacidade de amor sempre renovada. Amor como condição humana essencial, como linguagem para o reconhecimento do outro.

O poeta é um observador febril, profunda e comovedoramente admirado frente às pessoas, os animais, os eventos, sua memória, suas sensações muitas vezes inatingíveis pelas palavras. Ainda assim, o poeta acha a voz desse segundo, onde o mistério se acende (melhor dizendo, se cristaliza ainda mais) e a palavra, que em alguns vira o próprio mistério, em Hecker serve antes para esclarecer.

Um pouco por causa de sua vocação de crítico (dos mais implacáveis, diga-se de passagem); um pouco porque seu poema quer a todo custo flagrar o instante em vez de obscurecê-lo.

Fidelidades abre com as justas homenagens a Cecília (“Não alteavas teu sussurro de lago/ entre pinheiros tímidos e aflitos”), a Mário de Andrade, um dos favoritos de Hecker, merecedor de dois poemas, um deles ponto alto do livro (A xícara, que abre assim: “Vivo, não te encontrei, mas foi em ti/ que mais eu dei por mim no livro brasileiro./ As tuas opções me anteciparam,/ ouvi tua fala como se a soubesse,/ elegi tua razão como juiz.”) e Otto Maria Carpeaux, o autor do monumento crítico que é História da literatura ocidental: “Um livro assim desmoraliza a morte.”

A lista é grande. Darcy Ribeiro, Fernando Pessoa, Drummond (o leitor que leia, releia, volte a reler e mais uma vez Um amor, outro ponto alto do livro), os surrealistas (poema que é um prodígio de imagens, já publicado em Araponga, de 1988), Borges, García Lorca, Benedito Nunes, Manuel Bandeira, Quintana, B. Lopes (até o B. Lopes, gente!), Voltaire, Leon Bloy… chega.

Hecker não pára de lembrar, de chamar à cena, e isso sem falar nas dedicatórias, cheio de amigos e poetas e vice-versa, muitos as duas coisas ao mesmo tempo. O título do livro, aliás, bem que poderia ser Dedicatórias.

Se a primeira parte é dedicada aos poetas e não-poetas-porém-cheios-de-poesia, a segunda é menos direta e busca a alma dos líderes — que vão além da experiência precária da individuação e chegam à força descomunal de uma raça inteira, um povo, uma cultura. Na terceira sessão do livro, “Os contornos”, temos a geografia, o Brasil, cidades, bairros, ruas, crepúsculos de Porto Alegre, o campo. (“Campo, campo,/ coração exposto do Rio Grande,/ não te engana o sol nem a chuva/ nem mesmo os temporais./ Igual a ti, a tudo sobrevives/ com as ondas detidas das coxilhas.”) A transcendência, único olhar lírico à mão, busca reconhecer-se no espaço que Hecker acha no poema Pátria: “Este sol brasileiríssimo/ sempre aí ou que já volta/ é a nossa primeira pátria”.

Pulemos (nada disso, arrastemo-nos) para outra sessão, a sobre crianças, aberta por Ressurreição, um poema em prosa dentro do estilo mais praticado pelo autor, com aquele poder de encontro e abraço que nos deixa sem fôlego para ir adiante. Relembrando a experiência de quase ter perdido a filha de cinco anos num acidente na rua, Hecker fustiga a alma do leitor com o terrível — mesmo ilusório — espectro da morte anunciada. Passado o perigo, uma outra morte houve. E um renascimento também. Numa área onde muitos autores resvalam no piegas, ele, sobretudo com Felipe, também poema em prosa, nos oferece imagens de uma força capaz de jogar por cima do leitor o peso quase insustentável do afeto.

A seguir, em As lindas, é hora das musas. A beleza dá as cartas mais do que nunca, e termina com a ternura de versos que buscam, nos seios, a essência maternal. Em A dança e A música temos duas sessões dedicadas à arte. Naquela, Depois da dança fecha com um achado. Nesta, em Verdi o poeta reconhece que o músico revelou sua alma, do poeta, antes do tempo.

O futebol, outra sessão, migra do poema para a crônica, não quer nem saber. A crônica é mundana, sim, mas nela, se quem a escreve tem poesia nas veias, o visto e narrado chega longe e dá com tensão lírica. Hecker, em O que é o futebol, tenta, para começar, o impossível, definir o esporte. Mas poetas buscam isso mesmo, o impossível. E futebol, pelo menos em Fidelidades, cabe nas quatro linhas do texto.

As duas últimas partes, A rua e O filho, desenham o mundo cotidiano do poeta e recuperam capítulos de sua autobiografia. Na penúltima parte, o poema de abertura serviria de epígrafe para um estudo panorâmico da poesia de Hecker, Com os outros: “No que ando pela rua/ evidente é a humanidade/ e em seguida eu faço parte/ e nem me procuro mais”. Na derradeira (que outra palavra usar?) parte, o longo poema que fecha o livro, Os olhos. A enfermidade e a morte da mãe legando ao poeta o olhar de desespero, dor, finitude, incredulidade, prostração e, até, indiferença. “Chamava pela vida que de ti se saía/ com o trabalho de um parto./ Oito filhos tiveste, mas nenhum/ difícil como o nada.”

Fidelidade é isso, guardar o olhar da mãe e tentar decifrá-lo, mesmo anos depois. Não os olhos, mas o olhar, o mais intenso dos gestos, quando toda mão é inútil. Menos a do poeta, que escreve sua carta de amor, isto é, seu poema fiel àquilo que ele mais vê: a fugacidade do mundo, a perenidade da vida, o desvio dos caminhos, e apesar disso tudo, os encontros.

“O verso que não teme dizer tudo”
Pouco conhecido acima do Rio Grande do Sul, Paulo Hecker Filho já foi saudado por Erico Verissimo como uma das grandes vocações de sua terra. A vocação se cumpriu, mas o público ficou à margem, as editoras comeram mosca e a crítica, bom, teve uma época em que a crítica era quase que somente o próprio Hecker, crítico e ficcionista, além de poeta. O temperamento 100% sincero do escritor lhe granjeou desafetos e certamente dificultou o caminho, coisa de que ele não se queixa.

• Tudo bem, Mário de Andrade, Bandeira, Drummond, Quintana… Mas você é um leitor voraz, que não perde nada. Quem são os poetas contemporâneos que fazem diferença? E dos novos, quais chamam sua atenção?
Importa é que determinado poema nos atinja e assim são muitos os contemporâneos a nomear ou ainda a conhecer. Evitando o insatisfatório de uma relação nominal apressada, prefiro lembrar as versões, com notas biográficas, de “Só poema bom”. Os novos de todo Brasil surpreendem não só com bons achados, como pelo número. Assim, antes de apontar um ou outro, é de esperar que a turma se afirme nas obras a virem.

• Se a crítica é um áspero ofício (e você tem sido um crítico constante e nada condescendente), o poeta é um desbravador e soldado numa guerra, de certa forma, perdida. Que escolhas, hem, que escolhas…
A pergunta: o que ser, o que fazer da vida, me surgiu cedo, aguçada sem dúvida pelo contexto social e familiar. Comecei a ler atrás das escolhas certas e logo, como leitor persistente, a comentar, fiel assim à minha reação lendo ou à lucidez de que era capaz; ainda que pequena e ameaçada, não tinha outra. Surgiram restrições aos lançamentos e ninguém topa a menor restrição. Não foi mole. Mas tentei me conservar fora das políticas personalistas pelo poder literário e seguir dizendo o que de fato lera.

• A questão ficcional-autobiográfico foi sempre ambígua, porém, está cada vez mais misturada, hoje quase uma coisa só. Nos seus livros, os poemas quase nunca são ficção e a autobiografia chega ao extremo de o poeta colocar fotos suas e dos familiares nos volumes. É um método ou uma forma de testamento ou exercício de memória?
Todo lirismo é autobiográfico, ainda que o disfarce com recursos da tradição ou inovadores. As fotos foram um meio de facilitar a compreensão imaginária dos textos. Cada autor tem a sua temática. A minha, dependendo da opção original de me descobrir uma vida válida, enfrenta a realidade.

• O seu verso nunca parece aquela frase talhada a seco, quase com violência. Ele é frase mesmo, e além de cantar, fala. Beira a prosa e se o leitor não conhece poesia de fato até se distrai e pensa que está diante de uma crônica lírica.
O verso que não teme dizer tudo é comum desde o Modernismo mundial ou o nosso. Busca fazer maior, porque irrefutável, o auge lírico. Há que olhar o poema como um todo.

• Publicar poesia exige do poeta atitude de editor. Faltam editores ou o poeta é que sempre vai além?
Faltam editores, é sabido, e o poema custa a encontrar a melhor forma. Revisões, melhoras são possíveis e, nesse caso, só o autor.

• Cinema, artes plásticas, música — qual dessas artes mais invadiu os temas e a forma na poesia que você escreve?
Sou um filho do cinema, como em geral a minha geração e as seguintes. O cinema nos abriu e segue abrindo a imaginação e a vida. Escrevi sobre música e artes plásticas, mas mais críticas sobre cinema e, eventualmente, breves roteiros e algum poeminha.

Busto de homero

Paulo Hecker Filho

É uma reprodução industrial,
mas ficou muito parecida.
Sentem-se os séculos.
Aquiles, Agamenon, o sirigaita do Ulisses
já estão mais para eles mesmos.
Homero, este, conserva nos ombros o peso do mundo
e aos olhos baixos não iludem as loucuras humanas.
A cópia pode não ter valor,
mas é o poeta, essa pobre criatura.

Fidelidades
Paulo Hecker Filho
Alcance
94 págs.
Paulo Bentancur

É escritor. Autor de A solidão do diabo, entre outros.

Rascunho